"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Alguns erros dos desarmamentistas

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Em nosso último artigo, registramos que, tanto em 2018 quanto em 2019, houve no Brasil uma expansão do número de armas registradas (6,35% e 29%, respectivamente), ao mesmo tempo em que o número de homicídios sofreu uma significativa retração (13% em 2018; e 22% nos primeiros nove meses de 2019, não havendo ainda dados consolidados do ano todo).

Apontamos ao final do texto o que reputamos alguns dos equívocos mais recorrentes entre os argumentos de grupos que defendem legislações que dificultam a autodefesa do cidadão: “1) confundir em estatísticas armas lícitas e ilícitas; 2) utilizar experiências internacionais que acreditamos impassíveis de serem replicadas no Brasil (e explicaremos por quê); 3) o ‘argumento histérico’, que busca manipular o medo tentando fazer crer que qualquer legislação que não seja totalmente desarmamentista implicaria em fornecer armas a qualquer um, sem qualquer critério.”

Vejamos, brevemente, nesse texto, cada um desses pontos.

Inicialmente, é comum que matérias que tratam de incidentes envolvendo violência armada – de modo deliberado ou não – tratem de modo indiscriminado de armas sem diferenciar as lícitas das ilícitas.

É comum, por exemplo, artigos de imprensa ou mesmo manifestação de órgãos públicos supostamente técnicos, ao se manifestarem sobre a modificação da legislação de armas no Brasil invocarem o número de “homicídios cometidos com armas de fogo”, sem especificar quantos ocorreram com uso de armamento lícito (o que seria mínimo) ou ilícito (que responderiam pela imensa maioria dos casos).

Também quando há incidentes dos chamados mass shootings, ou seja, pessoas que invadem locais públicos e efetuam disparos a esmo, atingindo inocentes, é comum reportagens não deixarem claro se o crime foi cometido com armas lícitas ou ilícitas, apenas registrando en passant que o revólver tinha sua numeração raspada, fenômeno específico de armamentos de proveniência ilegal.

Há pesquisas que apontam como argumento favorável ao desarmamento o fato de que campanhas para recolhimento de armas ocorridos por força do Estatuto aprovado no Brasil em 2003 reduzem a criminalidade na região no período imediatamente posterior. Mas esse argumento oculta que, em geral, essas campanhas alcançam donos de armas desprovidas de registro. Ou seja, é a redução no número de armas não legalizadas que tem um impacto direto sobre a criminalidade.

De fato, o fenômeno das armas ilícitas é muito diferente das lícitas e devidamente registradas. Basicamente são dois temas distintos. Do ponto de vista da segurança pública, armas não devem ser tratadas como um todo homogêneo. É necessário fazer um recorte claro entre armas ilegais e armas legais. Aliás, isso deveria ser óbvio. Adquirir armas para a polícia, por exemplo, terá um impacto bem diferente de traficantes faccionados adquirirem fuzis ilegais. Embora abstratamente você possa considerar em ambos os casos que o número de “armas” cresceu, são dois fenômenos distintos com efeitos diferentes sobre a segurança pública.

Com efeito, armas ilegais são adquiridas, basicamente, por pessoas profundamente envolvidas com a criminalidade e com o propósito premeditado de auxílio em futuros delitos. A redução do número de armas ilegais sem dúvida alguma reduz a criminalidade violenta. É indubitável que se houvesse algum modo de retirar todos os fuzis das mãos do crime organizado nas favelas do Rio de Janeiro, todas essas localidades se tornariam bem mais seguras.

Mas isso é totalmente diferente de quando um cidadão comum adquire uma arma lícita, depois de atender a uma série de exigências legais. Nesse caso, em primeiro lugar, a pessoa tem de demonstrar aptidão moral (mediante comprovação de ausência de registros criminais), aptidão técnica (por meio de prova de capacidade de manusear armas) e aptidão psicológica (através de exames psicotécnicos adequados).

Esse é um ponto que o “argumento histérico” tenta ocultar. Os que combatem o direito de defesa do cidadão tentam alegar que revogar a legislação brasileira atual, brutalmente restritiva e desproporcional, equivaleria a instituir uma regulação sem qualquer controle, em que qualquer faccionado do PCC poderia entrar numa padaria e sair com um fuzil regular na mão. Só para citar um exemplo recente, quando o militante de extrema-esquerda Adélio Bispo esfaqueou o candidato Jair Bolsonaro, alguns desarmamentistas tentaram capitalizar o atentado do próprio companheiro de militância, alegando que o presidenciável havia tido sorte de que “armas não eram permitidas no Brasil”. Mas isso, além de uma insensibilidade desumana, é uma total falsificação dos fatos. Adélio jamais conseguiria obter o registro legal de uma arma: em primeiro lugar, possuía antecedentes criminais por crime violento; além disso, não seria capaz de ser aprovado num exame de aptidão mental.

Por isso, a reformulação da política atual não teria qualquer impacto nesses casos. Com ou sem Estatuto do Desarmamento, Adélio Bispo e criminosos faccionados não terão armas lícitas. A substituição da lei atual não busca extinguir os requisitos para a posse ou o porte de armas, mas apenas excluir a discricionariedade dos burocratas do Estado em conceder ou não a posse ou o porte. É possível que a lei mantenha requisitos exigentes (poderiam, inclusive, ser mais exigentes do que os atuais). Mas uma vez atendidos, o cidadão deveria possuir o direito à posse e ao porte.

Além de os requisitos evitarem que pessoas inclinadas ao cometimento de delitos violentos venham a obter armas legais, o registro  também previne enormemente esse tipo de crime. Isso porque a arma legal fica registrada no nome da pessoa. Qualquer delito cometido por ela será facilmente desvendado. Frise-se que armas ao efetuarem disparos deixam uma espécie de “digital” no projétil deflagrado. E toda munição adquirida fica devidamente registrada no CPF da pessoa. Assim, é muito pouco provável que uma pessoa decida cometer um crime com uma arma lícita. O sistema de incentivos desestimula de modo muito eficiente esse tipo de prática, tendo em vista que ele torna o crime muito facilmente elucidável.

Por isso, os crimes cometidos com armas de fogo no Brasil envolvem, regra geral, armas ilegais. Nesse sentido, em artigo escrito para a Revista Época, o articulista Giampaolo Morgado Braga expôs que “apenas 11 das 3.367 armas apreendidas pela polícia do Rio de Janeiro desde 2016 têm origem lícita — o verdadeiro problema são as ilícitas”. Analisando dados da Polícia Civil do Rio de Janeiro dos 43 meses anteriores a setembro de 2019, ele constatou que “das 48.656 armas listadas pela Polícia Civil como apreendidas (…), apenas 83, ou 0,17%, constam como tendo origem lícita”.

Mesmo nos Estados Unidos, onde conseguir uma arma regular é muito mais simples do que no Brasil, um percentual mínimo de delitos é praticado com armas de origem legal.

Perceba, portanto, que a política de armas do Brasil foi apenas “pseudodesarmamentista”: os criminosos seguem fortemente armados. Assim, como a revogação do Estatuto do Desarmamento não permitirá que criminosos contumazes ou pessoas desequilibradas adquiram uma arma lícita; essa legislação não os impede hoje de ter um armamento ilícito.

E aqui entra o equívoco consistente em usar experiências estrangeiras que são impassíveis de serem importadas para o Brasil.

De fato, é comum os desarmamentistas citarem os exemplos de Inglaterra, Austrália e Japão. Contudo, as características brasileiras impedem que aquelas políticas sejam mimetizadas aqui. Em primeiro lugar, é perceptível que todos essas nações são insulares, o que torna muito mais factível o controle da importação de armas ilegais. Já o Brasil possui um gigantesca fronteira seca com o Paraguai, uma das principais fontes de contrabando de armas no mundo.

Ademais, é importante frisar que, quanto a Inglaterra e Austrália, o sucesso da medida foi apenas parcial: segundo levantamento do site Spotniks acerca da experiência australiana, “apenas cinco anos após o desarmamento, a taxa de assaltos cresceu 54% e até a taxa de estupros subiu, passando dos 79,4 por 100 mil habitantes, em 1996, para os 90, em 2001. Os sequestros também inclinaram e se mantiveram em alta até 2008, segundo dados do Instituto de Criminologia Australiano.” O artigo também mostra que mesmo nos períodos em que o número de homicídios praticados com armas de fogo caiu, o mesmo ocorreu em relação ao número de delitos praticados com armas brancas, e no mesmo período o fenômeno se repetiu em países sem legislações desarmamentistas, o que torna difícil estabelecer uma relação de causa e efeito.

Já um artigo do Instituto Mises Brasil aponta que:

#10 Apesar da extremamente rígida lei desarmamentista em vigor no Reino Unido, sua taxa de crimes violentos é aproximadamente 4 vezes superior à dos EUA.  Em 2009, houve 2.034 crimes violentos para cada 100.000 habitantes do Reino Unido.  Naquele mesmo ano, houve apenas 466 crimes violentos para cada 100.000 habitantes nos EUA.

#11 O Reino Unido apresenta aproximadamente 125% mais vítimas de estupro por 100.000 pessoas a cada ano do que os EUA.

#12 Anualmente, o Reino Unido tem 133% mais vítimas de assaltos e de outras agressões físicas por 100.000 habitantes do que os EUA.

#13 O Reino Unido apresenta a quarta maior taxa de arrombamentos e invasões de residências de toda a União Europeia.

#14 O Reino Unido apresenta a segunda maior taxa de criminalidade de toda a União Europeia.

#15 Na Austrália, os homicídios cometidos por armas de fogo aumentaram 19% e os assaltos a mão armada aumentaram 69% após o governo instituir o desarmamento da população.”

Quanto ao Japão, o país sem dúvida é um sucesso em evitar crimes violentos, mas seria duvidoso imputar isso exclusivamente ao desarmamento. Primeiramente, existe uma forte correlação entre a composição etária de uma população e o número de crimes violentos, visto há uma incidência desproporcional de jovens do sexo masculino na prática de delitos dessa espécie. Isso faz com que regiões com populações mais envelhecidas tendam a se tornar mais seguras ipso facto. Assim, sendo o Japão o país mais velho do mundo, isso favorece uma taxa baixa de violência. Além disso, o direito penal japonês é extremamente rígido. De todo modo, ainda que o desarmamento no país seja responsável por parte dos resultados, é muito remota a possibilidade imitar a experiência no Brasil, seja pela diferença no que toca ao controle das fronteiras, uma vez que o Japão é uma ilha isolada, enquanto nosso país é vizinho de nações contrabandistas, seja pelo grau de efetividade do império da lei nos países: no Japão a lei de desarmamento tem maior probabilidade em ter eficácia em reduzir o número de armas; no Brasil, apenas os cidadãos que voluntariamente respeitam a lei são desarmados, enquanto criminosos seguem importando armas do Paraguai com facilidade.

Existe ainda um quarto argumento falacioso, embora tenha sido mais utilizado no passado: considerar os números da violência nos Estados Unidos como um todo unitário. Esse argumento foi sendo cada vez menos utilizado à medida que os homicídios despencaram nos Estados Unidos durante as últimas décadas (ao mesmo tempo em que o número de armas cresceu exponencialmente). De todo modo, essa análise unitária é um erro em relação àquele país, em virtude do forte federalismo que vige por lá. Nos Estados Unidos, a legislação de armas é de competência dos Estados, de modo que os números da violência tem de ser averiguados em relação a cada Estado e sua legislação sobre armas. Isso revela fatos que a análise conjunta oculta. Mas isso será objeto de um texto futuro.

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