"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Faz sentido Bolsonaro defender acesso a armas para garantir liberdade e democracia?

Imprimir Artigo
Imagem do site "Pensador": https://www.pensador.com/frase/MTU5NjI1MQ/
Imagem do site “Pensador”: https://www.pensador.com/frase/MTU5NjI1MQ/

Benjamin Franklindizia que “quando todas as armas forem de propriedade do governo, este decidirá de quem serão as outras propriedades”.

Como sabido, Jair Bolsonaro defendeu lição semelhante na fatídica reunião ministerial revelada por decisão do ministro do STF Celso de Mello, quando afirmou que um povo armado jamais será escravizado. A frase virou meme e ganhou hashtag nas redes sociais.

Teria razão Bolsonaro ao defender essa ideia? Ela nos parece bastante plausível.

Tentaremos demonstrar por que em três passos:

i) primeiro apresentaremos o argumento teórico;

ii) em segundo lugar, lições históricas desde a Antiguidade até a fundação dos Estados Unidos;

iii) por fim, faremos um estudo de caso com o recente exemplo da Venezuela.

O argumento teórico

shooting-1833850_1280

Quando se fala em desarmamento, em geral, as pessoas ligam o tema imediatamente à segurança pública e à legítima defesa. E o raciocínio está correto. Mas não é só isso. O acesso a armas pela população pode ter impactos sobre o regime político e o grau e qualidade da democracia.

Com efeito, a democracia é um regime de autogoverno popular: ao invés de uma potência estrangeira ou uma minoria deter a totalidade da autoridade política, essa autoridade está difusa entre os cidadãos. A democracia é, assim, uma forma de descentralização do poder, baseada na ideia de igualdade política entre todos que detêm cidadania. Pode-se dizer que é uma forma de justiça distributiva, embora não de bens materiais: é uma escolha em distribuir de modo universal certo grau de poder político, isto é, de influência nas decisões que possuam impacto sobre a população como um todo.

Ocorre que essa forma pacífica de resolução de conflitos, por meio de instituições jurídico-políticas, infelizmente, não é a única que existe. Ao lado desse modopela lei, há também o caminho pela força.

De fato, como bem pontuava Maquiavel: “existem dois meios para resolver uma litigância: um pela lei e outro pela força”. Um século depois, foi a vez de John Locke asseverar: “há dois tipos de contestação entre os homens: um deles controlado pela lei; o outro pela força. (…) Quando o processo de resolução de uma contenda através da lei termina, o modo truculento se inicia”.

Quanto à primeira forma de resolução de conflitos, segundo a lei, a democracia universaliza a capacidade de influência sobre a decisão, por meio do sufrágio universal e também buscando potencializar os mecanismos que permitam a formação e difusão de opiniões. Isso é feito, por exemplo, garantindo a pluralidade de canais de informação e liberdade de expressão.

Todavia, caso o mecanismo de força esteja excessivamente concentrado nas mãos de poucos (por exemplo, apenas agentes de forças militares ou grupos ligados ao governo, como os milicianos partidários de Maduro na Venezuela), é possível que ante uma sucessão de decisões que lhes desagradem – ou o risco de isso ocorrer – eles se sintam tentados a lançar mão do segundo mecanismo para solução de conflitos: a força bruta.

Daí a extrema necessidade para a democracia de estabelecer modos de controle sobre a força armada. Há várias maneiras de se fazer isso. Algumas possibilidades: reduzir o contingente militar permanente a uma pequena fração da população; distribuir as forças armadas entre as unidades federadas, de modo que seu controle não esteja em mãos de um único centro de comando; impor o serviço militar obrigatório, que faz com que o contingente à disposição do Exército seja constituído de pessoas com fortes laços civis; estímulo a lideranças militares com forte compromisso e perfil democrático etc.

Contudo, todos os mecanismos citados implicam no controle das Forças Armadas pelas forças civis. Mas não impedem que um governante civil utilize as Forças Armadas para fins autoritários. Para isso, pode ser importante que haja um mecanismo apto de resistência também fora do próprio aparelho de Estado. Um dos meios de fazer isso é assegurar certo grau de liberdade da população civil para acessar armas de fogo de modo lícito e regular.

Vejamos se há algum indício de que isso funcionou durante a história.

A lição da história

colt-1851-navy-4191608_1280

Robert Dahl, professor de Ciência Política durante anos na Universidade de Yale e recentemente falecido, possivelmente a maior autoridade sobre o tema da democracia nas últimas décadas, registrou em sua obra “La Democracia y sus Criticos” (págs. 293 e ss.) como o nível de participação popular nas organizações armadas e do acesso a tecnologias militares pela população em geral impactaram historicamente no advento e derrocada das democracias.

Segundo sua análise, quando o emprego da força exigiu a arregimentação de boa parte da população, de modo que a capacidade coativa se tornava mais difusa, houve uma tendência ao fortalecimento da democracia; pelo contrário, sempre que alguma tecnologia militar pôde ser detida e manipulada por uma pequena elite, a democracia se ressentiu.

Na obra “Military Organization and Society, publicado pela editora da Universidade da Califórnia, o autor Stanislav Andreski chega a sugerir a existência de um “coeficiente de participação militar” que indicaria uma correlação entre o nível de necessidade de participação da população para mobilizações militares e a probabilidade de um regime democrático e do respeito aos direitos individuais.

Tentarei aqui descrever, de modo resumido, a trajetória histórica descrita por Robert Dahl e as obras utilizados por ele em sua narrativa.

Inicia ele indicando uma das razões para o surgimento da democracia na Grécia do séc. V a.C, e não antes quando a região era dominada pela nobreza. Conforme pontua, antes daquele momento a tecnologia militar decisiva eram os cavalos e carroças, detidos apenas pela elite de nobres, capaz de arcar com os respectivos custos.

A capacidade de dominação militar resultou também na hegemonia política dos nobres. Essa minoria, com o domínio da tecnologia militar decisiva, era capaz de superar levantes de plebeus ainda que em maior número. Mas eis que a partir do séc. VII aquela hegemonia passa a ser minada pelo surgimento da Infantaria Pesada, com os chamados Hoplitas, cidadãos-soldados com domínio das armas e protegidos por pesadas armaduras. Essa tecnologia de armas e armaduras era acessível aos plebeus. Foi a adesão desse Hoplitas a grupos de levantes populares que levou ao solapamento dos regimes aristocráticos anteriores. Dahl ainda afirma que mais tarde, por volta do século V, esse processo de difusão da força militar se intensificou em virtude da ascensão da força naval, na qual mesmo pessoas ainda mais pobres podiam aderir e auxiliar como remadores.

Para dar suporte a esse capítulo de sua narrativa, Dahl menciona os seguintes livros como fontes: “The Class Strugle in the Ancient Greek World, from the Archaic Age th Arab Conquests, de Ste. Croix, G.E.M (1981, p. 282); “The Ancient Greeks: a critical history, de John Fine (1983, p. 59-61, 99-100); “A History of the Greek City States ca 700-338 b.C, de Sealey Raphael (1976, 30 e 57).

Conclui Robert Dahl sobre aquele período:

Assim, pois, a solução grega ao problema do controle civil das forças militares foi a milícia composta de cidadãos, que podia ser rapidamente mobilizada em caso de guerra e com igual rapidez ser desmontada durante as épocas de paz. Mais ainda, era conduzida por generais eleitos em assembleia popular. Como consequência, durante os séculos que durou esse sistema em Atenas, nenhum político pôde governar muito tempo sem apoio popular.” (La Democracia y sus Criticos, p. 294-295)

Pequenos intervalos oligárquicos na democracia grega foram rapidamente superados, por não conseguirem apoio popular e, portanto, apoio militar suficiente. A democracia grega, assim, não foi desbaratada, em definitivo, por forças internas, mas apenas mais tarde, pela dominação estrangeira, primeiro macedônica e depois romana.

Seguindo na descrição de Robert Dahl, a República Romana, apesar de diferir em termos de organização e tecnologia militar, utilizou a mesma solução: as legiões do começo da República eram compostas por milícias de cidadãos comuns. Quando em etapas posteriores, o envolvimento da República em ações bélicas se tornou excessivamente constante, gerando a constituição de um corpo separado de soldados profissionais, o uso da violência na política romana também se tornou mais comum e a República foi solapada, dando origem ao período imperial. “Líderes ambiciosos, que constantemente eram também militares, descobriram que podiam transformar seus recursos militares em recursos políticos” (La Democracia y sus Criticos, p. 295). Passou-se, assim, a uma fase chamada por alguns de “pretorianismo”, em que a intervenção militar no governo era comum e dominava sobre o poder executivo.

O autor usa as seguintes fontes para essa etapa histórica: M. I. Finley, “Politics in the Ancient World” (1983); Samuel Huntington, “Political Order in Changing Societies” (1968); Eric Nordingler, “Soldiers in Politics: Military Coups and Government” (1977); Amos Pelmutter, “The Military and Politics in Modern Times” (1977).

Ao chegar na Idade Média, período em que a democracia sofreu forte ocaso, sendo na Europa substituído por sistemas hierarquizados, Dahl registra que a própria mudança de organização e tecnologia militares favoreceu essa transformação. Isso porque que “conferiram superioridade aos poucos capazes de fazer frente aos gastos próprios de uma adestrada cavalaria e o equipamento de cavaleiros montados. Eclipsou-se o cidadão-soldado, e com ele, durante muitos séculos, as oportunidades históricas de um governo democrático na maior parte da Europa” (p. 295).

Dahl salienta que, no entanto, na Suíça, onde as condições montanhosas desfavoreciam a cavaleria, milícias de soldados a pé conseguiram vitórias sobre as cavalarias, e manteve-se naquela região uma forte tradição de democracia congregativa. Até hoje a Suíça é uma país com forte tradição de acesso a armas e uma das democracias mais pujantes do planeta.

Já nos séculos XIV e XV, a infantaria inglesa também conseguiu vitória sobre a cavalaria, por meio de uma nova tecnologia bélica: o arco longo. Segundo Dahl, isso teria feito ruir os fundamentos militares do feudalismo naquele país.

Chegando no século XVIII, com a invenção do rifle, uma arma potente para época, mas lenta, a vitória dependia particularmente do número de soldados de infantaria. A vitória militar dependia, assim, basicamente do suporte do maior percentual possível da população masculina. A igualdade da tecnologia fez durante décadas que o destino das batalhas dependesse do número de soldados: uma forma bélica da regra da maioria.

A necessidade de manter esses grupos de soldados engajados, levou a uma busca por fortalecer ideias que permitissem esse vínculo, como a aliança de nacionalidade. Mas aos deveres militares, correspondiam as pretensões de poder participar e influenciar nas decisões coletivas. Do cidadão-soldado, chegamos ao soldado-cidadão.

Foi nesse contexto, em países com massivas parcelas da população militarizadas, que as Revoluções democráticas começaram e com elas a expansão do sufrágio, principalmente entre o grupo mais engajado nos esforços militares: a população masculina.

Nos Estados Unidos esse fenômeno foi particularmente significativo. A organização militar permanente era minúscula em proporção à população. O grosso dos agrupamentos eram formados por milícias de cidadãos comuns, armadas com rifles e mosquetes. À essa altura, essa tecnologia militar era altamente acessível, de modo que o país se tornou uma verdadeira “nação em armas”. Segundo Dahl, “em um sentido muito concreto, o consentimento dos governados era absolutamente essencial para que houvesse alguma classe de governo, já que ao povo dos Estados Unidos não se poderia jamais impor um governo por cima da oposição da maioria” (p. 296). Segundo o autor, apenas na Suíça havia uma perspectiva tão mínima quanto nos Estados Unidos de instauração de um governo opressivo e contrário à maioria.

A situação atual e o estudo de caso da Venezuela

venezuela-maduro-tanque-960x540

Ante essas constatações, é possível que não seja por acaso que, se examinarmos o ranking de Democracia da The Economist, dos 10 primeiros colocados, sete deles estão entre os 25 países com população civil mais armada no mundo (Noruega, Islândia, Suécia, Finlândia, Suíça, Luxemburgo e Alemanha).

Ademais, também à luz dos dados acima, convém examinar o caso da Venezuela, que sofreu recente derrocada em seus sistema de governo, recaindo em uma violenta ditadura.

O país nunca esteve entre aqueles com maior número de armas por parte da população civil. Em 2007, segundo estudo suíço que é a maior referência sobre o tema, o país figurava na 59ª colocação dentro 178 nações, no ranking de posse de armas por civis.

Em 2012, o governo autoritário de Hugo Chávez, detendo maioria no Congresso, impôs o desarmamento civil à população, a despeito dos protestos de grupos democráticos. Desde então o governo despendeu vultosas quantias para estimular a entrega de armas pelos cidadãos.

Após o desarmamento, a taxa de homicídios não parou de subir.

Como foi experiência em outros lugares da América Latina, em virtude de os países terem baixo grau de institucionalidade e capacidade de execução e fiscalização, além de estarem geograficamente próximos a nações fornecedoras de armas ilícitas (como o Paraguai): as campanhas desarmamentistas atingiram apenas aquela parcela da população que voluntariamente se submeteu ao comando legal. Segundo os dados do GunPolicy.org, organizado pela Universidade de Sidney, estima-se que o número de armas ilícitas na país seja mais de duas vezes maior do que o número de armas registradas.

Em 2018, a Venezuela estava entre os lugares mais violentos do mundo, tendo a terceira maior taxas de homicídios do planeta e a segunda pior marca no tocante a homicídios praticados com armas de fogo. É a mais clara imagem do fracasso da política desarmamentista na América Latina.

Mas não é só: à medida que as instituições democráticas foram sendo deterioradas pela ditadura socialista, o governo passou a se valer da vulnerabilidade da população. O mesmo governo que antes invocava propósitos pacifistas para o desarmamento, recentemente afirmou que irá armar milicianos “até os dentes”. E o governo tem-se valido de violência contra opositores e manifestantes contrários ao governo.

Há algum tempo, Maduro afirmou que armaria 1,6 milhão de milicianos, a maioria deles sem qualquer treinamento.

Conclusão

Ante o exposto acima, tanto a teoria como a lição da história e alguns casos concretos parecem indicar que é plausível a tese de que o acesso a armas – ainda que mediante requisitos legais exigentes – pode ser um mecanismo importante para legítima defesa contra a opressão.

Compartilhe:

8 recomendações para você

Desenvolvido por bbmarketing.com.br