"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Entenda por que o STF não pode presidir um inquérito num regime político livre e democrático

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Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF
Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Como é sabido, o STF abriu um inquérito – absolutamente ilegal e inconstitucional – no ano de 2019, o qual foi recentemente validado pelo Plenário da Corte, sem que qualquer argumento jurídico convincente tenha sido apresentado para tanto.

Já escrevemos outro texto apontando as ilegalidades na origem do instrumento. Após sua abertura, ainda uma série de novas irregularidades foram praticadas e que serão objeto de um artigo futuro.

O que queremos esclarecer agora é o seguinte ponto: por que o STF não pode ter um inquérito próprio. E mais: por que isso, por si só, representa uma quebra do sistema democrático?

Preste atenção: isso é mais do que dizer que nossa lei não dá guarida àquele procedimento. Estamos dizendo não só que a lei não autorizou esse inquérito. O que vamos defender é mais do que isso: é que nem a lei, e nem mesmo a Constituição, poderiam autorizá-lo. É conceitualmente inviável a instituição de um instrumento dessa natureza num regime democrático que se pretenda zeloso pela defesa das liberdades públicas e dos direitos fundamentais.

Vejamos por quê.

Coerção física e independência não podem residir no mesmo órgão num regime político livre

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A resposta à questão é relativamente simples: o nível de dano físico, material e direto, ou intensidade de invasão da privacidade que uma atividade  estatal pode causar, é inversamente proporcional ao nível de autonomia que se concede ao órgão por ela responsável.

Assim, num sistema que preza pelas liberdades públicas, os órgãos que têm o poder material da coação jamais podem decidir usá-las por si próprios. Eles cumprem e podem sugerir, mas jamais decidir e executar. Esses dois poderes têm de estar separados no regime democrático.

A grande autonomia que se concede, assim, às atividades dos poderes Legislativo e Judiciário partem dessa premissa. As normas criadas pelos Legislador não causam dano direto. Elas terão de ser aplicadas. E nessa fase é possível corrigir abusos. Ao mesmo tempo, o Judiciário é um órgão inerte. Ele depende de provocação. Ele jamais é o motor de uma investigação, mas apenas o fiscal de sua legalidade. Esse raciocínio já constava dos Artigos Federalistas – textos clássicos sobre a Constituição dos Estados Unidos -, por exemplo, quando Alexander Hamilton, no artigo nº 78, diz que o Judiciário poderia fiscalizar a Constituição sem se sobrepor aos demais poderes porque ele não tinha o exército nem a chave do cofre. Era o “poder menos perigoso”, segundo sua célebre frase (bastante controvertida nos dias atuais).

Por outro lado, a atividade propriamente executiva é altamente controlada, tendo de agir dentro do quadro disposto pelo Poder Legislativo, sob constante fiscalização sua, além do controle de legalidade exercido pelo Judiciário, caso provocado. E dentro do Poder Executivo algumas atividades são particularmente controladas. São aquelas que envolvem forças armadas e meios altamente invasivos de privacidade. Duas funções se enquadram aqui: a atividade policial e as forças militares.

Ambas representam o ápice de capacidade de violência de que o Estado dispõe. Isso vai desde a posse de aparato bélico até instrumentos de profunda invasão de privacidade. Exatamente por ter alta capacidade lesiva, essas atividades sofrem grande controle.

Isso não é uma mera questão de técnica jurídica. Qualquer regime democrático tem de pensar sobre como “domar” suas forças armadas, visto que elas têm um poder que o regime civil e os particulares em geral não possuem: o da força. Assim, toda Constituição coloca suas Forças Armadas (inclusive as polícias), de alguma forma, sob domínio da autoridade civil e sob particular controle. Sobre isso, Robert Dahl, a principal referência teórica sobre democracia, insiste em ao menos duas de suas obras: “On Democracy” e “Democracy and its Critics”.

Na primeira obra mencionada (traduzida para o português pela Editora UNB, em 2001, com o título “Sobre a Democracia”), leciona Dahl:

É improvável que as instituições políticas democráticas se desenvolvam, a menos que as forças militares e a Polícia estejam sob pleno controle de funcionários democraticamente eleitos.

Em contraposição à ameaça externa da intervenção estrangeira, talvez a ameaça interna mais perigosa para a democracia venha de líderes que têm acesso aos grandes meios de coerção física: os militares e a Polícia.”

Como o Brasil resolveu essa questão?

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Na Constituição de 1988, o constituinte impôs uma absoluta submissão das Forças militares à autoridade do governo civil do Presidente da República.

Com efeito, o art. 142 da Constituição afirma:

“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Ainda, é de competência exclusiva do Presidente da República decidir sobre os casos de efetivo emprego das Forças Armadas, conforme previsão expressa do art. 15 da Lei Complementar 97/99: “Art. 15. O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da Repúblic(…)”.

Ou seja, inexiste atuação por iniciativa própria, uma “intervenção militar” por decisão do próprio Comando Maior da Forças Armadas.

No tocante às polícias, elas estão sob controle externo do Ministério Público, conforme art. 129, inciso VII, da Constituição. Essa função ministerial é alvo da Resolução 20 de 2007 do Conselho Nacional do Ministério Público.

Ademais, as medidas mais invasivas de que as polícias podem lançar mão (interceptação de comunicações, acesso a dados de conversas armazenadas, buscas domiciliares etc.) todas elas  dependem de autorização por juiz imparcial.

Às autoridades de investigação caberá apenas representar por tais medidas. Ou seja, elas informam acerca do interesse nas diligências. Essa comunicação é destinada ao órgão do Ministério Público que como titular da ação penal se manifesta sobre a conveniência e legalidade da solicitação. Ela, então, é analisada pelo órgão judicial, cuja decisão é passível de recurso.

Assim, jamais a autoridade que dispõe do poder de coerção física poderá atuar por decisão própria, sem autorização de um órgão externo de controle.

Inquérito inconstitucional do STF cria uma simbiose perigosa: a “Polícia Judicial”

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O inquérito criado pelo STF, entre outros problemas graves, cria um ser constitucionalmente monstruoso: não é apenas um órgão policial que cumpre determinações judiciais; ou um órgão de investigação que é controlado pela instância judicial. É uma polícia judicial.

Na “investigação” realizada pelo STF o próprio ministro é a “autoridade policial”, possuindo delegados e agentes sob seu “comando direto”. Segundo reportagem, esse órgão aberrante possuiria inclusive intenso aparato para tomada de medidas invasivas.

Ora, isso quebra totalmente a lógica descrita acima. O mesmo órgão que no caso está diretamente envolvido com a investigação e implementa as medidas invasivas, ele próprio autoriza essas diligências. Desse modo, elas não passam por qualquer controle externo que seja minimamente efetivo.

Em alguns casos o Ministro até abriu vistas para a PGR, mas mesmo ante parecer contrário, deferiu as medidas, o que era bastante provável – para não dizer óbvio – que ocorreria. De fato, se ele suscitou a prática das diligências invasivas, é porque já está convencido de antemão de que deveriam ser deferidas. Desse modo, a consulta a órgão externo é mera formalidade, talvez com potencial para conceder um verniz de legalidade quando o parecer ministerial é favorável.

No inquérito inconstitucional do STF, o próprio órgão decisório para o qual se concede ampla autonomia e baixo controle, detém os mecanismos altamente agressivos e invasivos das forças policiais. Uma espécie de Frankenstein constitucional. Ele possui a autonomia do Poder Judiciário e a capacidade lesiva das forças policiais.

Na verdade, a atuação das Cortes em Estados Democráticos, durante investigações, deve ser apenas para fiscalizar a legalidade e preservar as garantias dos investigados.

Frise-se ademais que um órgão nesses moldes altamente questionáveis, tem servido basicamente para perseguição a delitos de opinião e posições políticas – inclusive com aparente viés ideológico -, o que pode trazer à lembrança fenômenos sombrios da história, em que aparatos altamente coercitivos e opressivos atuavam sem qualquer controle efetivo. Não só. O inquérito foi criado para tratar de delitos em que os próprios membros do STF são as vítimas, o que gera o risco de que a investigação se torne uma verdadeira vingança privada com aparato público. Nesses casos, qualquer tentativa de controle apelando a outros membros da Corte, seria julgada por outro ministro que se sente igualmente ofendido pelo delito, o que cria uma esfera psicológica propícia a injustiças e desfavorável a uma fiscalização eficiente dos direitos dos investigados.

Isso já seria preocupante se ocorresse junto a um juiz de primeiro grau. Mas o caso é ainda mais desesperador, por envolver diretamente o STF. De fato, mesclar a atividade policial na Corte mais alta e que portanto é a menos controlada – uma vez que controla todas as demais – é criar uma figura ameaçadora às liberdades individuais. É dar para o fiscal o trabalho que ele mesmo fiscaliza, permitindo que ele faça qualquer coisa.

O fenômeno é uma inegável ameaça ao “governo das leis” e um passo considerável rumo ao perigoso “governo dos homens”, o que historicamente marcou o início de tiranias.

Em suma: a simples existência desse inquérito é incompatível com o regime democrático e põe em perigo as liberdade civis. Portanto, a reversão da lamentável decisão do Plenário do STF – com único voto divergente do Min. Marco Aurélio, de singular brilhantismo – tem de ser permanentemente criticada até que sua reversão – e consequente restauração da normalidade constitucional – seja viável. Não podemos jamais abandonar o empenho por proteger as liberdades, consolidar a democracia e fortalecer nossa Constituição.

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