"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Criminalização de manifestações em Hong Kong mostra o perigo das últimas medidas do STF

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Pro-democracy protesters are arrested by police in the Causeway Bay district of Hong Kong on May 24, 2020, ahead of planned protests against a proposal to enact new security legislation in Hong Kong. - The proposed legislation is expected to ban treason, subversion and sedition, and follows repeated warnings from Beijing that it will no longer tolerate dissent in Hong Kong, which was shaken by months of massive, sometimes violent anti-government protests last year. (Photo by ISAAC LAWRENCE / AFP)
“Manifestantes pró-democracia são presos pela polícia no distrito de Causeway Bay em Hong Kong em 24 de maio de 2020| Foto: ISAAC LAWRENCE/AFP”

Conforme noticiou a Gazeta do Povo, na última terça-feira, dia 30 de junho:

“o simulacro de parlamento chinês (oficialmente, Comitê Permanente do Congresso Nacional do Povo) aprovou, por unanimidade, e em apenas 15 minutos, uma lei de segurança nacional que, na prática, limita seriamente a atuação de grupos pró-democracia em Hong Kong. A medida veta atos que sejam considerados subversivos ou terroristas, promovam a secessão de Hong Kong ou sejam organizados em conluio com forças estrangeiras – na concepção questionável, claro, que o regime autocrático de Pequim tem do que sejam subversão, terrorismo, secessão e conluio. Os delitos serão puníveis até com prisão perpétua. A lei também cria uma polícia própria que atuará em Hong Kong sem se submeter às autoridades locais.”

Muitas pessoas no Brasil ficaram revoltadas com o crescente autoritarismo em um dos mais magníficos, livres e prósperos países da Ásia.

Mas o que muitos deveriam perceber é que existe o risco de que as últimas medidas do STF no Brasil guardem paralelo com o que a China está fazendo em Hong Kong.

Basta analisar os fatos de modo objetivo para verificar uma assustadora analogia entre ambas as realidades.

Basicamente, a China criminalizou manifestações populares em Hong Kong por meio de uma legislação com termos vagos e que ela aplicará de modo seletivo apenas contra os manifestantes desafetos, por meio de uma polícia ilegítima criada pelo Governo Comunista.

No Brasil, o modo como o STF tem atuado tem o forte risco de gerar um discurso de criminalização (ou, ao menos, deslegitimação) da participação, do engajamento e do financiamento de manifestações com viés político-ideológico contrário ao da maioria dos ministros. Tanto manifestações em meio digital como presenciais.

Isso vem ocorrendo por meio da abertura de investigações e deflagração de atos brutalmente invasivos (mandados de busca residencial, quebras de sigilo e até mesmo prisões), em virtude de condutas enquadradas em de termos extremamente vagos (“atos antidemocráticas“, fake news “promoção do extremismo” etc.). Por fim, boa parte dessas medidas se deu no bojo de um inquérito manifestamente ilegal (ainda que validado pelo Plenário da Corte).

Peguemos um exemplo: recentemente, o jornalista Oswaldo Eustáquio foi preso cautelarmente por ordem do ministro Alexandre de Moraes. Oswaldo Eustáquio não possui foro no STF. Segundo reportagem da “Agência Brasil”, ele é investigado por, supostamente, “impulsionar o extremismo do discurso de polarização contra o STF e o Congresso Nacional”, por meio das redes sociais. Ora, ainda que ele tivesse feito algo desse tipo, desde quando é crime incentivar polarização contra o STF e o Congresso? Qual norma penal prevê essa conduta? Aliás: o que significa impulsionar extremismo e polarização?

É importante recordar que se trata de uma vitória civilizatória o fato de o processo penal, em razão de sua inerente violência, exigir imputação clara, taxativa e específica. A pessoa tem de saber o fato exato pelo qual está respondendo ou sendo investigada. É necessário que se diga: “no dia X, no lugar Y, Fulano de Tal, dolosamente, fez isso, isso e mais aquilo”. Qualquer coisa que fuja disso contraria princípios básicos de humanização do direito penal.

Como alguém pode se defender de uma acusação tão fluida e genérica como: impulsionar extremismo e polarização? Aliás, como alguém pode ser investigado por algo que não é previsto como crime?

Por isso mesmo, existe um enorme risco de que se esteja promovendo, ainda que por via transversa, uma criminalização das próprias manifestações políticas, visto que o uso de expressões vagas permitem o enquadramento de qualquer ato que desagrade as autoridades de Estado e praticamente impede a defesa das vítimas dessa perseguição.

Peguemos outro exemplo: difundir fake news. Em primeiro lugar, esse crime também não existe. Mas seu uso vago e fluido permite que qualquer pessoa seja alvo de ações investigatórias. Basta que as autoridades do Estado queiram. Em segundo lugar, como se defender de modo eficaz de uma imputação tão abstrata? A pessoa terá de provar que tudo o que falou na vida é verdade?

Ora, num processo penal condigno com as garantias de um regime constitucional a imputação teria de ser certa, isto é, indicar o fato específico que está sendo atribuído. Eventualmente, fake news podem configurar, por exemplo, crime contra a honra. Mas a imputação tem de ser clara: “No dia X, no local Y, Fulano de Tal, de modo consciente e voluntário, difamou ciclano, imputando-lhe falsamente o fato Z que sabia ser falso”. Algo desse tipo. Nesse caso, a defesa é perfeitamente possível. Do contrário, não.

Outro exemplo, esse o mais frontalmente ameaçador à liberdade de manifestação. A acusação de participar de ou financiar “atos (supostamente) antidemocráticos”.

Ora, o que são atos antidemocráticos? Esse crime também não existe em nossa legislação. Mais: se alguém comete um crime em uma manifestação (ainda que um delito contra o regime democrático), isso não torna a manifestação em si antidemocrática. A pessoa que praticou o ato deve responder. Não todas as pessoas que participaram, organizaram ou financiaram o evento.

Os atos que estão recebendo essa pecha – por parte de setores judiciais e midiáticos que são antipáticos aos manifestantes – jamais tiveram uma pauta especificamente antidemocrática. Manifestações pontuais (que podem ser, inclusive, de infiltrados para desprestigiar o evento) não alteram a natureza de toda a manifestação.

Essa imputação abstrata novamente abre margem a toda forma de abuso e impede a defesa (inclusive pública) das pessoas. Ora, bastaria haver uma pessoa com cartaz do AI5 em meio a manifestações multitudinárias com dezenas de milhares de pessoas, para que o STF possa quebrar o sigilo de qualquer participante? Qualquer um poderá ser preso ou ter sua casa invadida por policiais?

Peguemos novamente o caso do jornalista Oswaldo Eustáquio. Embora haja poucas informações públicas acerca de seu caso, aparentemente, sua prisão decorreu (ao menos formalmente) pela participação em ato que contava com cartazes contra o STF e o ministro Alexandre de Moares. Primeiramente, isso não é crime. Mas, o problema não para por aí. Segundo seu depoimento, ele foi ao ato para fazer a cobertura jornalística do evento. Não só: mesmo após ser liberado ele foi proibido de acessar suas redes sociais. Ora, como uma jornalista irá atuar hoje em dia sem usar redes sociais? Ademais, qual o risco que o uso das redes sociais em si causa? Nenhum. Zero. Toda atuação da pessoa nas redes fica documentada. É uma nítida censura prévia (vedada pela Constituição) e tentativa de impedir a pessoa de mostrar publicamente sua versão dos fatos.  Oswaldo Eustáquio concedeu uma recente entrevista para o programa Pingo nos Is da Rádio Jovem Pam, relatando o drama pessoal que vive em virtude da prisão.

Na verdade, o que se percebe é que o uso desses termos vagos e a manipulação de seu alcance tem o potencial de criminalizar ou desmobilizar manifestações populares, fragilizando as garantias constitucionais da liberdade de expressão do pensamento e de manifestação pública, consagradas no art. 5º da Constituição (pelas quais o STF, teoricamente, deveria zelar).

De fato, se sua casa pode ser invadida por policiais, se sua vida privada pode ser devassada, se a profissão e consequente manutenção da sua família pode ser ameaçada por que você faz coreografias na frente de um tribunal ou participa de manifestações em que outras pessoas levantam cartazes do AI5 (ainda que você não tenha nada a ver com isso e tenha ido ao evento por outras pautas), ora, obviamente as pessoas estão sendo constrangidas a não participar de manifestações. E se o Estado constrange pessoas a não se manifestarem, obviamente, a democracia está ameaçada.

Voltemos à comparação com a China, onde o governo criminalizou “atos que sejam considerados subversivos ou terroristas, promovam a secessão de Hong Kong ou sejam organizados em conluio com forças estrangeiras – na concepção questionável, claro, que o regime autocrático de Pequim tem do que sejam subversão, terrorismo, secessão e conluio”. Com isso, claramente, a China desestimula qualquer manifestação, porque todo ato que desagradar o respectivo regime comunista e ditatorial será imediatamente enquadrado em algum daqueles termos.

Do mesmo modo, no Brasil, investigações genéricas sobre fake newsatos antidemocráticospromoção da polarização e do extremismo, terão exatamente o mesmo efeito.

Inclusive, a nomenclatura utilizada na China e no Brasil é semelhante. Na China, a novel legislação é intitulada de Lei de Segurança Nacional. Exatamente a mesma legislação que o STF tem invocado no Brasil.

Isso tudo é muito preocupante.

Recentemente, exatamente com base nessa lei, a ativista pró-vida e conferencista Sara Winter foi detida e mantida presa em uma penitenciária por vários dias por organizar o grupo “300 do Brasil”, crítico do STF e que promovia coreografias e palavras de ordem contra a atuação do tribunal em frente a sua sede. Num dos atos, o grupo lançou fogos de artifício para o céu na direção do STF. O fato foi tratado como um “ataque” à Corte e investigado como “crime contra a segurança nacional”. Apesar da péssima estética de alguns atos, usando tochas no escuro, parece claro que má estética não gera prisão em países livres. O fato é que a imputação de ameaçar a Segurança Nacional foi corretamente arquivada em primeiro grau, a pedido do Ministério Público Federal, ante o acertado argumento de que a manifestação estava coberta pela liberdade de expressão (item 3 da cota da denúncia). Mesmo assim Sara Winter ficou presa ainda vários dias. Mais tarde ela foi liberada para ficar em “prisão domiciliar”; aparentemente, sem que haja motivo proporcional, na medida em que a investigação pela ameaça à segurança nacional foi arquivada e os demais delitos imputados (ameaça e injúria) são de baixíssima gravidade.

Ou seja, o que se extrai dos fatos é uma atividade coercitiva desproporcional contra o direito de manifestação, com imputações genéricas e enquadramentos em termos fluidos e vagos.

Essa atuação tem o potencial trágico de gerar um constrangimento estatal sobre o direito de se manifestar, que envolve o direito de organizar, participar e financiar manifestações de modo livre e desembaraçado. Caso isso aconteça, e do modo direcionado como parece estar ocorrendo, a democracia no Brasil inevitavelmente se ressentirá.

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