"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Municípios podem (e devem!) regulamentar o ensino domiciliar

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Da modalidade domiciliar de ensino

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O homeschooling é uma modalidade de ensino em que a família assume a coordenação da educação formal das crianças e jovens sob sua responsabilidade.

A prática encontra amparo constitucional no rol dos princípios da educação, previstos no art. 206, segundo o qual: “o ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (…) II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas”.

Nesse sentido, manifestou-se o Ministro Luis Edson Fachin, em seu voto no RExt. 888.815/RS:

a educação domiciliar é, em verdade, um método de ensino – ou, quiçá, um ensino individualizado – e, como tal, pode ser escolhido pelos pais como forma de legitimamente garantir a educação dos filhos. O homeschooling seria, assim, apenas uma entre as várias técnicas de ensino, razão pela qual, nos termos do art. 206, III, da CRFB, caberia ao Estado garantir o pluralismo das concepções pedagógicas.”

No âmbito infraconstitucional, a Declaração Universal de Direitos Humanos, em seu art. 26, 3, é expressa no sentido de que “3. Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos.”

Igualmente o Código Civil reconhece a soberania educacional da família, ao dispor, no art. 1.634, inciso I, que: “Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I – dirigir-lhes a criação e a educação”.

Não por outro motivo, concluiu o PROEDUC, órgão do Ministério Público especializado em educação, em nota técnica enviada ao STF expondo a regularidade da prática do ensino domiciliar:

Conjugados os dispositivos acima aludidos, verifica-se que a família, por meio dos pais e responsáveis, enquanto detentores do poder familiar, possui a liberdade e autonomia em escolher o modelo de educação de seus filhos, considerado o respeito à pluralidade de concepções pedagógicas e desde que cumpridas as finalidades educacionais previstas no próprio texto constitucional.

É claro que nem a liberdade educativa, nem a mencionada prioridade de escolha sobre o gênero de educação, representam alguma espécie de poder absoluto. Há balizas constitucionais. Contudo, dentro do amplo espectro de modalidades e concepções razoáveis e responsáveis, é possível aos pais decidir. Ocorre que dentro desse espectro, sem dúvida alguma, encontra-se a educação domiciliar, visto que se trata de prática consagrada e bem-sucedida em inúmeros países de variados matizes ideológicos e políticos. O deputado federal Filipe Barros, em artigo publicado no jornal Gazeta do Povo, arrolou alguns, como: “Estados Unidos, Canadá, Portugal, Áustria, França, Nova Zelândia e Austrália“. Poderíamos, ainda, adicionar a Finlândia. E prossegue com a lista de países com perfil diverso: “Nela estão nossos vizinhos Chile e Colômbia, além de nações caribenhas, como Bahamas, Barbados e Jamaica. A África do Sul regulamentou o homeschooling em 1996. A ilha asiática de Taiwan o fez em 1999, e no ano seguinte foi a vez de Cingapura. Até a Rússia, com todo o seu passado de comunismo e controle estatal, já regulamentou a prática, tornando-a completamente legítima em todo o seu território desde 2012.”

Frise-se que quanto ao desempenho acadêmico e social dos adeptos dessa modalidade de ensino, trinta e cinco anos de pesquisas demonstram performance absolutamente positiva, como demonstramos em artigo anterior e foi registrado em votos no STF.

Nesse sentido, o ministro Edson Fachin consignou no citado voto:

Não se pode negar que, na experiência comparada, o ensino domiciliar foi estudado e, do que se tem dos autos, é possível afirmar que não haveria disparidades entre os alunos que estudaram pelo método domiciliar e os que tiveram educação formal na escola. Muitos alegam que não há qualquer dificuldade com a socialização e que as crianças que passaram pelo ensino domiciliar são plenamente integradas na sociedade.”

No julgamento do RExt. 888.815/RS, o Ministro Luís Roberto Barroso fez alusão a dados interessantes:

42. Estudos empíricos realizados nos Estados Unidos e no Canadá, países que adotam o homeschooling há décadas, ajudam a reforçar o argumento em prol da eficácia do ensino doméstico como método adequado de instrução formal para o desenvolvimento pleno e normal das crianças e adolescentes. Os estudantes americanos educados em casa possuem desempenho acadêmico entre 15% a 30% acima da média dos demais estudantes de escolas públicas nos exames nacionais padronizados. Os homeschoolers americanos também têm obtido resultados melhores do que os demais no American College Testing – ACT, exame nacional padronizado utilizado como requisito para o ingresso nas universidades dos EUA. Entre 1996 e 2006, período em que o resultado dos estudantes domiciliares era divulgado em separado dos demais, a média dos homeschoolers foi superior. Em 2006, a média dos estudantes domiciliares foi de 22,4 pontos (de 36 pontos possíveis), enquanto a média nacional foi de 21,1. Em 2005, a média dos estudantes domiciliares foi de 22,5, enquanto os demais estudantes obtiveram a média de 20,9. Ademais, na última década, diversas universidades americanas de ponta, tais como Harvard, Yale, Stanford e MIT, admitiram adolescentes educados em casa. Atualmente, mais de 700 instituições de ensino superior nos EUA aceitam esses estudantes nos seus processos seletivos.

43. No Canadá, as estatísticas são semelhantes. Pesquisadores têm comprovado que o desenvolvimento acadêmico dos estudantes domiciliares é superior, ou no mínimo, igual aos demais. Um estudo realizado com 763 crianças canadenses da 1ª à 8ª séries do ensino fundamental que prestaram o Canadian Achievement Test – exame padronizado que verifica a proficiência dos alunos em leitura, gramática, matemática e escrita – identificou uma alta performance dos estudantes educados em casa, em especial daqueles cujos pais possuem motivação acadêmica para retirá-los das escolas. Os homeschoolers canadenses possuem grau de educação, ocupação profissional e ganhos financeiros idênticos ou acima da média dos seus pares oriundos de escolas públicas. Além disso, assim como nos EUA, diversas universidades no Canadá têm admitido estudantes domiciliares, tais como Universidade de Toronto, York e Dalhousie.

Especificamente quanto à socialização, registrou o mesmo ministro, também com suporte em dados empíricos sólidos:

54. Nos Estados Unidos, diversos estudos realizados ao longo dos últimos anos comprovam que os homeschoolers tornam-se adultos socialmente integrados, cidadãos responsáveis e membros ativos da comunidade. A título exemplificativo, pesquisa realizada com 7.000 adultos educados em casa atestaram o seu envolvimento cívico e social em níveis até mesmo superiores aos seus pares da mesma idade. Entre adultos de 25 e 39 anos de idade, 47% costumam escrever e consultar as autoridades públicas e os órgãos de imprensa para resolver problemas das suas comunidades, enquanto a média nacional, na mesma faixa etária, era de 33%. 95% votam em eleições, enquanto a média nacional é de apenas 40%. 88% são membros de alguma organização da sociedade civil, sendo a média nacional de 50%. 71% dos pesquisados são atuantes em algum serviço comunitário voluntário (e.g.: técnico de um time esportivo, trabalho voluntário em escolas, igrejas ou associações de bairro), enquanto a média nacional é de 37%. Diversas outras pesquisas apontam na mesma direção: as crianças educadas em casa possuem espírito de liderança nos campi universitários, são mais tolerantes quando expostas a argumentos contrários, costumam ser mais maduras do que seus pares e ter a mesma capacidade de se adaptar a novas situações, como, por exemplo, o ingresso em um ambiente diverso de uma universidade.

55. Esse envolvimento maior com a comunidade é consequência de uma agenda mais flexível e um ensino personalizado, o que permite aos estudantes domésticos terem mais tempo para participarem de atividades extracurriculares em relação às demais crianças. O risco de ausência de socialização, se existente, é bastante mitigado pela participação dos estudantes em outras atividades extraclasses (i.e.: clubes esportivos, clubes sociais, igrejas, bibliotecas, parques públicos, escolas de música, organizações não governamentais, associações civis, trabalhos voluntários), locais em que se convive com pessoas de diferentes cosmovisões, perspectivas e realidades. Essas atividades suprem a necessidade de socialização supostamente preenchida pela escola. Afinal, há de se concordar que a escola, ainda que importante, não é o único local em que se pode conhecer outras concepções de mundo, conviver com a diversidade ou obter uma formação plural. Ensino doméstico não é sinônimo de segregação domiciliar.

56. Diante disso, parece-me que o ensino domiciliar comporta e harmoniza as finalidades diversas da educação expressas na Constituição (…).

Logo, patente que a educação na modalidade domiciliar é uma opção legítima e harmônica com os fins da Constituição de 1988.

Não só. Isso demonstra que o pleito pelo pleno reconhecimento legal da educação domiciliar é um pleito pela concretização de direitos fundamentais da mais alta importância: liberdade educacional e pluralismo pedagógico.

Essa constatação impõe ao intérprete da Constituição e às instituições envolvidas de modo geral uma postura hermenêutica bem mais pró-ativa. Ainda mais em se tratando de uma minoria social, visto que em todos os países essa prática é minoritária, embora adotada por uma quantidade expressiva e crescente de famílias.

Não por outro motivo, o STF afirmou expressamente e com força de precedente vinculante, no voto condutor do RExt. 888.815/RS, que o homeschooling não é inconstitucional, isto é, “a Constituição Federal não veda de forma absoluta o ensino domiciliar”, de modo que “não é vedada constitucionalmente sua criação”.

Apesar disso, a tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal, foi a de que a educação domiciliar não configura um direito subjetivo, ou seja, as famílias educadoras não podem, na ausência de lei que regulamente a matéria, obrigar o sistema de ensino a reconhecer e titular os jovens educados nessa modalidade.

Assim, desde essa decisão ocorrida em 2018, ficou assentada a viabilidade constitucional, porém a pendência legal, para o reconhecimento do homeschooling no Brasil pelos órgãos da rede de ensino.

Ante a lamentável omissão do legislador federal e estadual, várias casas legislativas municipais passaram a examinar a matéria.

Nossa ideia, no presente artigo é exatamente demonstrar a viabilidade de os municípios admitirem o reconhecimento da educação na modalidade domiciliar dentro dos limites dos respectivos sistemas municipais.

Da competência dos municípios para reconhecerem a educação domiciliar, em caso de omissão dos entes superiores

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Encontro de atividades esportivas entre famílias educadoras.

Antes de abordar especificamente os dispositivos constitucionais que regem o tema, é necessário ressaltar que a finalidade dos requisitos formais (como é o caso da competência legislativa) é tão somente manter a racionalidade do sistema e o equilíbrio entre as entidades federativas. Não devendo, no entanto, sobrepor-se à própria substância discutida. Assim, necessário ter a sensibilidade e a atenção para não se cair num fetichismo da forma. Pelo contrário, a forma tem de estar a serviço do conteúdo.

Não faz qualquer sentido que os órgãos legislativos passem mais tempo analisando questiúnculas sobre normas de competência do que propriamente o mérito da política pública, numa espécie de “chicana legislativa”. Como se sabe, na “chicana processual”, a parte que já se sabe derrotada no mérito, busca introduzir no processo infindáveis argumentos que impeçam o juiz de chegar a analisar o que realmente importa: o mérito da causa. Na “chicana legislativa”, os grupos que sabem não possuir votos para impedir a implementação de uma política pública, passam a arguir inúmeras filigranas formais, desfocando do que realmente interessa: o desenho da política pública educacional, como será o reconhecimento e quais as regras efetivas que irão reger a educação domiciliar.

Máxime em se tratando da análise da competência das entidades políticas menores (estados e municípios), caso em que deve haver um “in dubio pro federalismo”, de modo que a hermenêutica aponte no sentido de valorizar as atribuições dos órgãos descentralizados, buscando evitar uma concentração excessiva de atribuições no centro burocrático da capital federal.

Como demonstramos em artigo anterior, um federalismo equilibrado, contrário ao centralismo exacerbado que ainda influencia muitos juristas e políticos no Brasil, possui uma série de benefícios. Dois nos parecem mais importantes para o tema aqui tratado:

i) proximidade da população com o órgão decisório, permitindo maior participação e controle;

ii) experimentalismo democrático, funcionando cada ente com sua legislação específica como um “laboratório legislativo”, permitindo inovações e análise de resultados comparados.

Aliás, o próprio plenário do STF já reconheceu esse vetor interpretativo. Confira:

(…) COMPREENSÃO AXIOLÓGICA E PLURALISTA DO FEDERALISMO BRASILEIRO (CRFB, ART. 1º, V). NECESSIDADE DE PRESTIGIAR INICIATIVAS NORMATIVAS REGIONAIS E LOCAIS SEMPRE QUE NÃO HOUVER EXPRESSA E CATEGÓRICA INTERDIÇÃO CONSTITUCIONAL. (…)

1. O princípio federativo brasileiro reclama, na sua ótica contemporânea, o abandono de qualquer leitura excessivamente inflacionada das competências normativas da União (sejam privativas, sejam concorrentes), bem como a descoberta de novas searas normativas que possam ser trilhadas pelos Estados, Municípios e pelo Distrito Federal, tudo isso em conformidade com o pluralismo político, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CRFB, art. 1º, V).

3. A prospective overruling, antídoto ao engessamento do pensamento jurídico, revela oportuno ao Supremo Tribunal Federal rever sua postura prima facie em casos de litígios constitucionais em matéria de competência legislativa, para que passe a prestigiar, como regra geral, as iniciativas regionais e locais, a menos que ofendam norma expressa e inequívoca da Constituição de 1988.

4. A competência legislativa do Estado-membro para dispor sobre educação e ensino (CRFB, art. 24, IX) autoriza a fixação, por lei local, do número máximo de alunos em sala de aula, no afã de viabilizar o adequado aproveitamento dos estudantes.

5. O limite máximo de alunos em sala de aula não ostenta natureza de norma geral, uma vez que dependente das circunstâncias peculiares a cada ente da federação, tais como o número de escola colocadas à disposição da comunidade, a oferta de vagas para o ensino, o quantitativo de crianças em idade escolar para o nível fundamental e médio, o número de professores em oferta na região, além de aspectos ligados ao desenvolvimento tecnológico nas áreas de educação e ensino. (…) (ADI 4060, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 25/02/2015)

Tendo em vista, esses vetores hermenêuticos (postura interpretativa pró-ativa para concretizar direitos fundamentais de uma minoria e prestígio às iniciativas das entidades federativas locais), vejamos a competência dos municípios para reconhecer a educação na modalidade domiciliar.

O reconhecimento do homeschooling é um tema que envolve atribuição para legislar sobre educação e ensino. Essa está prevista no art. 24, IX, da Constituição:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (…)

IX – educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação;

Como se percebe, a Constituição fixou essas matérias como objeto de competência concorrente. Do caput do art. 24 acima, podemos constatar que a União, os Estados e o DF possuem essa atribuição. Essa previsão tem ainda de ser complementada pelo art. 30, incisos I e II, a seguir:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local;

II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

Ante esse dispositivo, tanto a doutrina1 quanto a jurisprudência2 reconhecem que os três níveis federativos possuem competência concorrente: a União, os Estados e o DF, por força do art. 24; e os municípios, quando envolver interesse local, por conta do art. 30.

Havendo competência sobre um mesmo tema é necessário que a Constituição diga o que cada um fará no interior desse “condomínio legislativo”. Foi o que o constituinte fez nos parágrafos do art. 24, o qual dispõe que, a princípio, competirá à União legislar sobre as normas gerais (§ 1º); já aos Estados e ao DF competirá o que a doutrina chama de competência complementar. Assim, após a União editar as normas gerais, competirá aos Estados complementar a legislação. É o que se intitula competência complementar. Todavia, quando a União silenciar, omitindo-se sobre as normas gerais, caberá aos Estados e ao DF exercer a competência plena sobre a matéria (normas gerais e legislação complementar), no exercício da chamada competência supletiva.

Logo, o que se vê (e esse é um ponto muito importante para o raciocínio que será desenvolvido a seguir) é que a competência suplementar é um gênero, que comporta duas espécies: competência complementar e competência supletiva3.

Bom, e quanto aos municípios? Tendo em vista que o art. 24 silencia sobre eles, a exata conjugação do art. 24 e 30 (incisos I e II), tem de ser feita por meio de uma interpretação que leve em conta o propósito descentralizador e municipalista da Constituição de 1988, valorizando o princípio federativo.

Nessa ótica, o que se percebe é que quando o art. 30 menciona a competência dos municípios, ele dispõe que, havendo “interesse local” (inciso I), compete aos municípios “suplementar a legislação federal e estadual” (inciso II).

Ou seja, a Constituição outorgou aos municípios o gênero (suplementar), abarcando as duas espécies: complementar e supletiva.

Assim, conclui-se que dentro da competência concorrente, os municípios possuem os mesmos poderes dos Estados e do DF, apenas com a exigência de dois requisitos a mais para que surja sua atribuição:

1) exista interesse local;

2) que no caso do exercício de competência supletiva, haja omissão tanto da União quanto dos Estados.

Nesse sentido, leciona a mais abalizada doutrina sobre o assunto:

“No âmbito das competências materiais comuns, que pressupunham para o seu exercício a competência legislativa concorrente prevista no artigo 24, a questão da legislação municipal suplementar fica ainda mais delicada. Parece-nos que a competência conferida aos Estados para complementarem as normas gerais da União não exclui a competência do Município de fazê-lo também. Mas o Município não poderá contrariar nem as normas gerais da União, o que é obvio, nem as normas estaduais de complementação, embora possa também detalhar estas últimas, modelando-as mais adequadamente às particularidades locais. Da mesma forma, inexistindo as normas gerais da União, aos Municípios, tanto quanto aos Estados, se abre a possibilidade de suprir a lacuna, editando normas gerais, para atender às suas peculiaridades. Porém, se o Estado tiver expedido normas gerais, substituindo-se à União, o Município as haverá de respeitar, podendo ainda complementá-las. Não havendo normas estaduais supletivas, é livre então o Município para estabelecer as que entender necessárias para o exercício da competência comum. Mas a superveniência de normas gerais, postas pela União diretamente, ou pelos Estados supletivamente, importará a suspensão da eficácia das normas municipais colidentes.” (ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 2013. p. 142/143, grifos nossos)

Concorda Ingo Sarlet, em sua obra conjunta com Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero: “inexistindo normas gerais da União poderão tanto os Estados quanto os Municípios editar normas gerais para suprir a lacuna4.

Retomemos rapidamente as premissas que já temos em mãos:

1) o reconhecimento da educação domiciliar é tema de educação e ensino (art. 24, IX, da CRFB/88);

2) essas matérias são objeto de competência concorrente, pertencente à União, aos Estados e ao DF, por força do caput do art. 24, bem como aos municípios, quando houver interesse local, consoante o art. 30, incisos I e II;

3) aos Municípios foi outorgada competência suplementar, a qual engloba tanto o poder de esmiuçar legislação federal ou estadual existente (competência complementar) quanto o de suprir omissão, quando ela se configurar (competência supletiva).

Ora, o que ocorre é que, como sabido, existe uma mora dos poderes legislativos da União e dos Estados para regulamentar o tema da educação domiciliar. Inclusive, a atual lei federal que trata de normas gerais sobre educação (Lei 9.94/96) é expressa no sentido de que suas regras específicas cuidam apenas do ensino escolar. Com efeito, em seu art. 1º, § 1º, dispõe ela: “Esta Lei disciplina a educação escolar (…)”.

Sobre isso, artigo recentemente publicado na Gazeta do Povo, de autoria de Angela Vidal Gandra da Silva Martins, atual secretária Nacional da Família do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, registrou que “o tema transita pelo Congresso há décadas.”

Os efeitos dessa omissão são absolutamente perversos e violam os princípios fundamentais de nossa Constituição republicana, além dos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Com efeito, o vácuo legislativo hoje existente, primeiramente, abre a possibilidade de perseguição de pais que educam exemplarmente seus filhos, e que estão simplesmente adotando um método legítimo, além de consagrado e vitorioso em vários países desenvolvidos. É inaceitável que uma família no Brasil aplique o mesmo método que uma família canadense, finlandesa ou australiana, e venha a sofrer qualquer tipo de represália por esse motivo. Até mesmo porque, conforme pontuamos em artigo anterior, o que existe hoje é um autêntico silêncio legislativo, não havendo mais sequer que falar em norma proibitiva dessa prática.

Ademais, a ausência de regulação e reconhecimento, dificulta a participação dos estudantes da modalidade domiciliar, por exemplo, em eventos intercolegiais, como olimpíadas de matemática, eventos esportivos, ou qualquer atividade em que se requeira comprovante de matrícula. Famílias, inclusive, têm sido desaconselhadas para adoção por praticarem a educação domiciliar. É necessário que se veja a gravidade dessa situação com a sensibilidade que ela exige: famílias que fornecem a melhor educação possível a seus filhos, valendo-se de métodos aplicados com enorme sucesso em inúmeros países desenvolvidos, estão sendo impedidas de transformar a vida de crianças órfãs. E essas estão sendo condenadas a viver em condições precárias em um abrigo do governo, única e exclusivamente pela formalidade de ausência de norma legal para uma modalidade educativa bem-sucedida e já reputada constitucional pela Suprema Corte.

Embora, em grande medida as famílias já contem com uma postura mais razoável das instituições, até mesmo em virtude da forte expansão numérica dos que adotam essa modalidade educacional, além dos excelentes resultados que são constatados pelos órgãos de proteção que visitam essas famílias, é um fato que a ausência de regulação é capaz de provocar forte insegurança jurídica.

Ainda, a ausência de regulamentação inviabiliza que os municípios, dentro dos ciclos de aprendizagem e faixa etária de sua competência, criem ou reconheçam a realização de exames periódicos, tornando menos eficaz o acompanhamento do desempenho desses alunos, e também impede comunicações oficiais ao Poder Público (equiparadas às matrículas), aptas a diferenciar formalmente casos de abandono intelectual e opção pelo homeschooling. Esse último efeito, inclusive, acaba por demandar desnecessariamente os órgãos de proteção, por força de protocolos, a promoverem visitas aos educadores familiares, direcionando os recursos escassos dessas instâncias, retirando-os de casos em que há efetiva violação de direitos.

Logo, patente que há interesse local, para os Municípios, em dentro de sua circunscrição e faixa etária de atuação, em reconhecer e regular a educação domiciliar, caso assim entendam conveniente suas esferas democráticas de participação e decisão.

Por conseguinte: possuindo os Municípios competência supletiva, como visto antes; havendo hoje mora da União e dos Estados em regular a matéria, com impacto nas famílias e nos serviços de cada municipalidade, conclui-se que: podem os Municípios suprir a omissão das outras instâncias e regular a prática do Ensino Domiciliar, até que sobrevenha legislação superior a respeito.

Nos próximos itens buscaremos responder possíveis críticas à abordagem aqui defendida.

STF não afirmou com efeito vinculante que estados e municípios não podem legislar sobre educação domiciliar

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O Supremo Tribunal Federal analisou a questão da educação domiciliar, em 2018, no RExt. 888.815/RS. Nesse julgamento, o ponto que ficou firmado com efeito vinculante e força de precedente, foi a seguinte tese fixada (TEMA 822): “Não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira”.

Ou seja, uma família hoje não tem direito, na ausência de lei, a que o órgão público educacional reconheça essa modalidade de ensino e titule o filho ao final dos ciclos educacionais.

Outro tema, embora não tenha sido objeto da tese firmada, foi amplamente debatido: a ausência de vedação constitucional ao homeschooling, mediante uma interpretação finalística e não literal do art. 208, § 3º, o que possibilita que o assunto venha a ser objeto de regulação legal.

Outras afirmações presentes nos votos foram feitas a título de obter dictum, isto é, opiniões não vinculantes apontadas eventualmente por alguns ministros. Aliás, mesmo a existência ou não de base infralegal para o exercício do homeschooling com base em tratados internacionais e leis ordinárias, ainda ficou em aberto, visto que o STF examina a questão apenas pelo prisma constitucional.

Dentre essas, no voto do Ministro Alexandre de Moraes, que foi o responsável por relatar o acórdão, consta que a responsabilidade por regulamentar o homeschooling seria do Congresso Nacional mediante lei federal.

Bom, quanto a isso, primeiramente há que se ressaltar que o ponto não foi aprofundado e amplamente debatido, de modo que é inviável afirmar que essa seria a posição do STF, ou da maioria dos ministros. Logo, não se trata de ponto vinculante.

De todo modo, a afirmação do Ministro não está equivocada. Ela está apenas incompleta. O equívoco aqui é apegar-se e limitar-se à literalidade. Decisões do STF não criam ou extinguem competência legislativa dos entes. É a Constituição quem o faz. As decisões apenas interpretam e declaram a compreensão dos ministros sobre os dispositivos. Assim, é o voto que tem de ser lido à luz da Constituição e não o contrário.

Seguindo nessa linha, é verdade que a princípio deveria o Congresso Nacional, mediante lei federal, dispor sobre as normas gerais acerca do ensino domiciliar. A questão é: e se o Congresso Nacional se omitir? Nesse caso, e só nesse caso excepcional, havendo competência concorrente sobre educação e ensino, caberá aos Estados ou, em último caso, aos municípios legislar a respeito.

Nenhum tema de tese fixada pelo STF dispôs o contrário. Tampouco houve manifestação da maioria dos ministros nesse sentido. Por fim, segundo expusemos acima, sequer poderia, visto que existe sim competência supletiva das municipalidades, para dentro do interesse local, legislar acerca do assunto.

Normas gerais de educação da União silenciam sobre homeschooling

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Conforme já pontuamos acima, a atual lei que trata das normas gerais sobre educação (Lei 9.94/96), é expressa em limitar a incidência de suas regras específicas apenas ao ensino escolar. Com efeito, em seu art. 1º, § 1º, dispõe ela: “Esta Lei disciplina a educação escolar (…)”.

Assim, suas normas específicas sobre ensino e educação não alcançam aqueles que expressa e efetivamente optem pelo ensino domiciliar.

ECA não é impeditivo à regulação estadual ou municipal à educação domiciliar

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O dispositivo do ECA que determina a matrícula de crianças e adolescentes é um dos mais invocados contra a regulação estadual e municipal da educação domiciliar. Porém, como veremos, uma leitura atenta mostra que esse é um dos argumentos mais frágeis que se pode opor à competência dos Estados e municípios para regular o tema.

Primeiramente, o Estatuto da Criança e do Adolescente não configura uma norma geral de educação. Aliás, caso assim se entendesse, estariam seus dispositivos sobre educação, inclusive, revogados. Sim, pois o art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, dispõe que a lei posterior revoga a anterior em três hipóteses (preste atenção ao último caso): “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente [1º] o declare, [2º] quando seja com ela incompatível ou [3º] quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.

Logo, caso se interpretasse dispositivos do ECA como normas gerais sobre educação, por ter ele sido editado em 1990, estaria revogado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação – posterior, do ano de 1996 – uma vez que ela buscou regular inteiramente a matéria.

O que ocorre, no entanto, é que o ECA não é uma lei geral de educação, nem possui regras com essa natureza. Pelo contrário, trata-se de uma norma de proteção à infância.

Por isso, a finalidade de seus dispositivos sobre educação é a de impor aos pais que observem o direito de crianças e adolescentes à educação e à convivência comunitária. Não têm esses dispositivos, de modo algum, o escopo nem a força jurídica para bitolar as possíveis modalidades de ensino.

Em segundo lugar, é questionável a abrangência dessa regra, visto que há quem defenda que ela só se aplica àqueles que optem pelo ensino escolar, visto que à época da aprovação do Estatuto o tema do homeschooling não foi inserido nos debates. Nesse sentido, arguiu o Ministro Luís Roberto Barroso em seu voto: “essas regras que falam em matrícula e controle de frequência são regras que se aplicam aos pais que tenham optado, como a maioria de fato opta, pela educação escolar, pela escolarização formal dos seus filhos”.

Essa leitura ganha ainda mais força, diante do fato de que as normas que impunham matrícula visavam concretizar o § 3º do art. 208, mas esse sofreu interpretação teleológica ou finalística no mencionado julgado, prevalecendo que o dispositivo constitucional não impõe a educação escolar como modalidade exclusiva. Mas sim que: deve-se respeitar o direito à educação, fornecendo os conhecimentos próprios para a idade e propiciando convivência comunitária.

O Ministro do STF Luís Edson Fachin, em seu voto, também não deixou de registrar o anacronismo da norma: “afigura-se inegável que, editados há mais de 20 anos, a Lei de Diretrizes e Bases, de 20 de dezembro de 1996, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 13 de julho de 1990, não dão respostas às justificáveis dúvidas apresentadas”.

Mas o que é mais decisivo e torna a invocação do ECA contra a regulação estadual e municipal absolutamente improcedente é que: uma vez regulamentada a prática do ensino domiciliar, os optantes terão de comunicar o poder público respectivo da adoção dessa modalidade, ato em tudo equiparado à matrícula exigida. A partir desse ato, o poder público terá condições de recensear os jovens, acompanhar seu desempenho e comparecimento em avaliações periódicas etc.

Logo, percebe-se que a regra do ECA não constitui obstáculo à regulamentação da educação domiciliar pelas esferas federativas descentralizadas.

A educação domiciliar é uma modalidade educacional, não uma diretriz

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Como já dito, o ensino domiciliar é uma modalidade educativa. Esse enquadramento, inclusive, ficou corretamente registrado em vários votos de ministros do STF. Seu reconhecimento e regulação não alteram as diretrizes e bases educacionais. Pelo contrário, seu escopo é bem mais restrito.

Busca-se apenas:

1) reconhecer a educação domiciliar, concedendo segurança jurídica às famílias;

2) impor a necessidade de comunicação ao poder público da adoção por essa modalidade, ato equiparado à matrícula, diferenciando formalmente o homeschooling da evasão escolar;

3) prever provas periódicas, tornando possível a avaliação dos respectivos alunos.

Aliás, a educação domiciliar, uma vez reconhecida, terá de observar as diretrizes expressas na legislação federal, conformando-se a elas. Além disso, seu impacto é territorialmente restrito ao município, não alterando o arcabouço nacional.

Assim, a lei que trate do ensino domiciliar em âmbito estadual ou municipal não invade a competência privativa da União, prevista no art. 22, inciso XXIV, que trata de “diretrizes e bases da educação nacional”. Diversamente, como já mencionado, a legislação sobre educação domiciliar enquadra-se na competência concorrente prevista no art. 24, IX.

Aliás, inclusive, é interessante que as normas municipais evitem utilizar a expressão “diretriz” e tenham norma clara, impondo que a educação domiciliar no município observe as diretrizes nacionais da educação. Com isso, evita-se qualquer compreensão equivocada sobre o escopo da legislação regional ou local.

1 SARLET, Ingo. Curso de Direito Constitucional. 6 ed., São Paulo: Saraiva. p. 901.

2 STF – ADPF 109, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 30/11/2017

3 SARLET, Ingo. Curso de Direito Constitucional. 6 ed., São Paulo: Saraiva. p. 898.

4 SARLET, Ingo. Curso de Direito Constitucional. 6 ed., São Paulo: Saraiva. p. 902.

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