"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

TCU erra em relação ao “Pacote Anticrime” e contradiz sua própria jurisprudência

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Foto: Alan Santos/PR
Foto: Alan Santos/PR

Conforme matéria da Gazeta do Povo de 3 de outubro deste ano, “o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, lançou (…) uma campanha publicitária para divulgar o pacote anticrime (…). A cerimônia ocorreu no Palácio do Planalto. Moro esteve ao lado do presidente da República, Jair Bolsonaro. Moro e Bolsonaro defenderam pontos retirados do pacote pelo grupo de trabalho que analisa as propostas na Câmara.”

A campanha basicamente buscava conscientizar a população sobre algumas falhas de nossa legislação e sobre seus perversos efeitos na vida das vítimas de delitos graves, apontando possíveis soluções encaminhadas pelo Poder Executivo ao Congresso.

Você pode conferir alguns dos vídeos da campanha:

A pedido de grupos de extrema-esquerda, no dia 8 de outubro, como também noticiou este jornal, um dos membros do Tribunal de Contas da União, o ministro Vital do Rêgo – político do MDB da Paraíba e indicado para o Tribunal pela ex-presidente Dilma Rousseff – determinou liminarmente que a campanha oficial do pacote anticrime fosse suspensa. A decisão, de forma inusual, foi tomada sem ouvir o setor técnico do TCU.

No dia seguinte, 9 de outubro, “o plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu manter (…) a decisão do ministro Vital do Rêgo, que suspendeu a veiculação da campanha publicitária para divulgação do pacote anticrime, proposto pelo ministro da Justiça, Sergio Moro. (…) Ficaram vencidos apenas os ministros Augusto Sherman e Walton Alencar.”

O TCU atualmente é composto pelos seguintes ministros, os quais participaram da decisão que suspendeu a campanha de conscientização popular:

  • José Múcio Monteiro: político, ex-líder e ministro do Governo Lula na Câmara dos Deputados, enquanto deputado pelo PTB, foi indicado pelo próprio petista ao TCU;
  • Ana Arraes: política, mãe do ex-governador de Pernambuco Eduardo Campo, foi eleita deputada federal duas vezes pelo Partido Socialista Brasileiro, tendo sido indicada para o TCU pelo Congresso em 2010;
  • Vital do Rêgo: relator do caso, responsável pela liminar, político cujo perfil já foi anteriormente descrito;
  • Augusto Nardes: político, foi indicado pela Câmara dos Deputados para o cargo no TCU em 2005;
  • Aroldo Cedraz: político, foi também indicado pela Câmara dos Deputados em 2007;
  • Raimundo Carreiropolítico e servidor de carreira do Senado onde ocupou cargos por indicação de José Sarney, tendo sido apontado por aquela própria Casa legislativa para o TCU durante o governo Lula;
  • Bruno Dantas: foi indicado ao TCU pelo Senado Federal em 2014;
  • Benjamin Zymlerservidor de carreira do TCU;
  • Walton Alencar Rodriguesmembro de carreira do Ministério Público junto ao TCU;
  • Augusto Shermanservidor de carreira do TCU.

É interessante perceber que os ministros com perfil mais político votaram contra a campanha informativa; enquanto dentre os três ministros provindos do corpo técnico do Tribunal dois votaram a favor da legalidade da campanha: os ministros Augusto Sherman e Walton Alencar.

Quanto à tramitação do Pacote Anticrime na Câmara dos Deputados, o grupo de trabalho formado para estudá-lo apresentou relatório recente aprovando vários avanços integralmente ou com pequenas alterações.

De todo modo, após a decisão liminar do TCU, a Associação da Auditoria de Controle Externo do TCU lançou nota pública apontando que a decisão do Tribunal, ao suspender a campanha de conscientização sobre a violência no Brasil e o Pacote Anticrime, contrariou a praxe histórica da própria Corte de Contas.

Com efeito, o documento apontou que houve no passado recente campanhas publicitárias para conscientização da população sobre problemas de interesse público e esclarecimento de propostas do Poder Executivo para solucioná-los, como por exemplo: o tema da corrupção em 2013 e o pacote de reformas legais enviado ao Congresso naquele ano; a crise fiscal e de endividamento em 2016 e a PEC do Teto de Gastos; e, depois, sobre o déficit previdenciário e a imprescindibilidade de uma reforma.

Algumas dessas ações publicitárias envolveram valores muito superiores ao do orçamento da campanha “A lei tem de estar acima da impunidade“, que abordaria o problema da criminalidade e o Pacote Anticrime, orçada em cerca de R$ 19,2 milhões.

De fato, a campanha lançada pelo Governo Temer sobre o problema do déficit fiscal e a defesa da PEC do Teto de Gastos consumiu cerca de R$ 54 milhões em 2016.

a campanha, também do Governo Temer, sobre o rombo nas contas da Previdência abocanhou mais de R$ 100 milhões. O Governo Bolsonaro lançou mais recentemente outra campanha com o mesmo tema, orçada em cerca de R$ 37 milhões.

Segundo o mesmo estudo da Associação de Auditores do TCU, em 2013, o Governo Federal gastou R$ 5,3 milhões com a realização da I Conferência Nacional de Transparência e Controle Social (I CONSOCIAL), estratégia utilizada para conseguir apoio para votação e aprovação da Lei Anticorrupção naquele ano.

Conforme a nota, não houve qualquer reação do TCU contra essas campanhas.

A campanha da PEC do Teto, aliás, chegou a ser impugnada no STF, por meio da ADI nº 5.863, mas sem sucesso.

Ademais, a própria jurisprudência do TCU, em vários casos nos quais analisou gastos com publicidade inclusive para campanhas de esclarecimento sobre projetos do Poder Executivo jamais indicou qualquer irregularidade nessa prática.

Nesse sentido, registrou o documento da associação:

A jurisprudência consolidada pelo TCU nas duas últimas décadas não apontou, até agora, sinais de proibição explícita de se fazer campanha publicitária para esclarecer questões objeto de propostas legislativas encaminhadas ao Congresso Nacional. Merecem citação de trabalhos sobre gastos com publicidade: Decisão Plenária nº 650/1997; Acórdão nº 39/2003-Plenário; Acórdão nº 1.805/2003 – 1ª Câmara; Acórdãos nºs 387/2001, 445/2003 e 898/2004-2ª Câmara; Acórdão nº 2.062/2006-Plenário; Acórdão nº 417/2006-Plenário; e Acórdão nº 3.233/2010-Plenário.

Não bastasse, como já dito, a decisão também colidiu com a prática bastante assentada de colher manifestação do órgão técnico antes de sua prolação. De fato, segundo o estudo da associação:

(…) a AUD-TCU também vê com preocupação a concessão, como regra, de medidas cautelares – monocráticas ou referendadas pelo Plenário – sem a prévia instrução da Unidade Técnica do Órgão de Instrução do TCU (…). Isso porque, segundo o art. 156 do Regimento Interno do TCU, são “etapas do processo a instrução, o parecer do Ministério Público e o julgamento ou a apreciação”. Essa previsão reflete o comando do art. 1º, § 3º, inciso I da Lei Orgânica do TCU (Lei nº 8.443, de 1992), que define as partes essenciais das decisões do TCU.

Problemas da decisão do TCU

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A partir das informações fornecidas pela nota associativa é possível apontar, ao menos, três falhas na decisão.

Primeiramente, quanto ao próprio conteúdo e procedimento adotado, pode-se concluir que foram equivocados. De fato, é admitida em nosso ordenamento a veiculação de campanha de conscientização e esclarecimento de projetos do Poder Executivo, o que como vimos já ocorreu várias vezes no passado. Ao proibir a campanha sem respaldo no direito brasileiro, a decisão acaba sendo uma medida arbitrária. Além disso, a incomum dispensa da manifestação do corpo técnica reduz a legitimidade e autoridade do julgamento.

Em segundo lugar, ao conceder tratamento diferenciado ao Governo atual, o TCU viola a impessoalidade e o princípio da igualdade de tratamento perante a lei e os tribunais, um princípio absolutamente básico do Estado de Direito. Com efeito, uma medida deve ser julgada segundo a interpretação consolidada da Constituição e das leis, independentemente do grau de simpatia ou antipatia de uma Corte para com o grupo que temporariamente ocupa o governo.

Saliente-se que não é difícil concluir que parcela significativa da população verá a decisão como politicamente direcionada, ainda mais ante a inconsistência em relação ao histórico do Tribunal e o fato de ser ele hoje composto por vários membros ligados a grupos que fazem oposição ao Presidente e ao Ministro da Justiça. Isso desgasta excessivamente as instituições. Os eleitores que apoiam o Governo e o Pacote Anticrime, caso venham a ter a percepção de que não está havendo apenas um controle, mas sim um boicote, passarão a desejar que o governo possa atuar por cima das instituições, a fim de evitar o boicote. Com isso, há uma erosão do suporte social à institucionalidade.

Por fim, ao restringir abusivamente o exercício dos poderes legítimos historicamente usufruídos pelo Poder Executivo, o TCU viola a separação e o equilíbrio entre os poderes. Não só: ao impedir que um governante democraticamente eleito exerça poderes utilizados por seus antecessores, acaba-se por frustrar os eleitores, reduzindo o suporte à democracia. As pessoas passam a pensar: de que adianta uma eleição com opções distintas, se em caso de vitória do grupo contrário à posição política dos membros dos órgãos de controle, eles irão boicotar tudo o que se oponha à agenda do grupo derrotado?

O direito não pode ser “recriado” a cada eleição. O império da lei em uma democracia é o governo de grupos alternados, com propostas e ideias distintas, mas sempre limitados por uma plataforma institucional e jurídica comum. Se o tratamento concedido pelos tribunais se altera entre governantes distintos, essa plataforma se esvai, tornando-se obscuro quais são os limites, ou se eles de fato existem.

Por isso, é importante que se valorize mais no Brasil a integridade do direito. Que se busque, efetivamente, um regime de leis, não de homens. Isto é, que haja um arcabouço legal que limite ou permita o exercício das decisões políticas, independente de quem julga ou é julgado, o que só é possível mediante a aplicação de um direito impessoal e embasado em regras e precedentes claros, estáveis e prospectivos.

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