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O presidente iraniano Hassan Rouhani discursa durante comemoração do 40º aniversário da Revolução Islâmica na capital Teerã | AFP
O presidente iraniano Hassan Rouhani discursa durante comemoração do 40º aniversário da Revolução Islâmica na capital Teerã| Foto: AFP

Toda vez que você for obrigado a tirar os sapatos ao passar por um aparelho de raio-x nos aeroportos lembre-se: a série de atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, assombrou o mundo e ganhou a fama de ter sido capaz de transformá-lo desde elementos corriqueiros até complexos arranjos econômicos e política externa. Mas os atos de terrorismo comandados por Osama bin Laden foram apenas ecos de 1979 – o ano que redefiniu o Oriente Médio trazendo-o para o centro da origem de algumas das questões mais insolúveis de nosso tempo. 

1979 começou com uma revolução. Há exatos quarenta anos, clérigos iranianos tomavam o poder do país. O xá pró-Ocidente Mohammed Reza Pahlavi foi destituído e o Irã mergulhou no inverno de uma teocracia fundada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, que viria a comandar o país pelos próximos dez anos, até a sua morte. Ao dar início a uma república islâmica, Khomeini fundou a “versão xiita” do império saudita, comandado por seus rivais da maioria sunita. 

Da porta para fora, Khomeini assumiu o país evocando a morte aos Estados Unidos. Pregação que levou à invasão da embaixada americana em Teerã, em novembro daquele ano. Mas nas entranhas do regime, ele e os demais aiatolás tinham, entre os vários objetivos, dois muito claros: exportar a revolução iraniana e fazer frente aos sunitas em uma disputa (até então) por legitimidade em influência, que viria a se transformar em um conflito fratricida. 

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Teerã colocou em prática seu plano. Despachou pelo mundo seus novos embaixadores e emissários para expandir a influência do islã xiita. Nos Estados Unidos, país que viria a romper as relações no final de 1979, os diplomatas desempenharam um papel peculiar que, sem dúvida se reproduziu, nas demais representações pelo mundo. Eles levaram centenas de garrafas de vinhos, licores e destilados para frente da embaixada e começaram a esvaziar uma por uma jogando o líquido na sarjeta. Do outro lado da avenida Massachusetts, funcionários brasileiros assistiam a cena insólita que seria uma das últimas dos vizinhos antes de cerrar as portas e nunca mais voltarem para o prédio que até hoje se encontra trancado. 

Para América Latina, por exemplo, disfarçados de inspetores de abate de carne halal, Khomeini enviou homens de confiança. Em Buenos Aires, Mohsen Rabbani comandou uma célula que há 25 anos arquitetou e colocou em prática o atendado contra a Associação Mutual Israelita (Amia). De norte a sul do continente plantou células de seus parceiros libaneses do Hezbollah hoje fazem parte do suporte ao regime de Nicolás Maduro na Venezuela e que comandam linhas de tráfico de drogas a partir da Bolívia e do Paraguai em joint venture com criminosos locais do PCC. 

Enquanto Khomeini cuidava de consolidar as primeiras bases da revolução, os sauditas se viram diante de um novo revés derivado da ascensão política do xiismo. Em novembro do eterno 1979, cerca de 500 militantes de uma organização salafista (como são chamados os defensores de um islã de raiz, sem as contaminações do ocidente ou modernizações) invadiram a Grande Mesquita de Meca. Eles queriam a destituição da família real considerada corrupta e infiel. Acredite, os membros da casa Al Saud, como se chama a nobreza saudita, caminhavam para uma abertura que incomodava os radicais que, inspirados pela revolução iraniana, também planejavam uma versão sunita para Arábia Saudita. 

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Depois de uma semana de negociações e tiroteios, 255 pessoas foram mortas, entre peregrinos e forças de segurança. Os cerca de 100 terroristas capturados vivos (números tão questionáveis quanto o de vítimas) foram condenados à decapitação em praça pública. Para conter possíveis novos ataques e questionamentos quanto à legitimidade dos ocupantes do trono, o rei Khalid bin Abdulaziz fez acordos com clérigos extremistas que tiveram como missão domar os radicais. Em contrapartida, os religiosos ganharam o poder de moldar as regras de costumes tal como conhecemos hoje na Arábia Saudita. 

Quando 1979 parecia acabar, a então União Soviética invadiu o Afeganistão. A presença dos infiéis levou o nascente movimento radical saudita a dedicar-se à libertação dos irmãos muçulmanos afegãos. Entre eles, estava um jovem de família bilionária, Osama bin Laden. Ele se tornaria um dos principais nomes do movimento jihadista que nascera naquele momento. Depois da retirada da URSS do Afeganistão, eles brotaram nas guerras do Balcãs e nas disputas separatistas que surgiram com a queda do bloco soviético. Desde então, inspiraram centenas de outros movimentos e organizações que até hoje cometem atentados em várias partes do globo. 

Nos últimos quarenta anos, mais de 174.000 atentados terroristas foram realizados, segundo o mais completo banco de dados sobre esses eventos, mantido pela Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. Pelo menos um terço desses ataques foram realizados por herdeiros de 1979. Somente os vinte ataques mais letais, quando somados, resultaram em 12.000 vítimas. 

Tratando apenas dos Estados Unidos, desde os atentados de 2001, o país destinou mais de 1,6 trilhão de dólares do orçamento da Defesa nas campanhas do Afeganistão e Iraque. Para se ter ideia, a quantidade de dinheiro empregada na chamada “guerra ao terror” superou em mais de 100 bilhões o PIB da Espanha, em 2018. Mais de 6.836 militares morreram em combate e 52.340 retornaram para casa com sequelas físicas ou mentais. Mais de 30.000 membros das forças de segurança iraquianas e afegãs morreram em combate conjunto com os americanos algo entre 160.000 e 190.000 civis foram vítimas dos conflitos nos dois países. 

Somente na Síria, arrasada por um conflito – no qual Irã e Arábia Saudita lutam entre si nos bastidores e financiando seus radicais – o saldo é mais de 500.000 pessoas mortas e quase cinco milhões de refugiados. Entre os vários responsáveis estão os jihadistas do Estado Islâmico (herdeiros dos movimentos jihadistas sauditas-afegãos) e o Hezbollah (terroristas libaneses financiados pelo Irã que se mimetizaram na política do Líbano como forma de legitimar-se). 

Com a revolução dos aiatolás, o Irã deu um mergulho nas trevas. Como uma imagem refletida no espelho, o mundo sunita, liderado pela Arábia Saudita, fez o mesmo. Sentimos os efeitos até hoje. Uns são obrigados a tirar os sapatos em aeroportos. Outros sepultam pedaços de corpos onde o terror, o radicalismo e a intolerância vicejam. Nessa escala entre o trivial e o brutal, está o legado desse ano. O tempo passou, mas 1979 não.

*Leonardo Coutinho é jornalista especializado em América Latina e defesa. É autor do livro “Hugo Chávez, o Espectro: Como o presidente venezuelano alimentou o narcotráfico, financiou o terrorismo e promoveu a desordem global”.

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