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Desde este domingo, mulheres podem dirigir na Arábia Saudita, um dos países mais conservadores do mundo | Mohammed Al-Nemer/Bloomberg
Desde este domingo, mulheres podem dirigir na Arábia Saudita, um dos países mais conservadores do mundo| Foto: Mohammed Al-Nemer/Bloomberg

Navegar na vida cotidiana de Riad, a capital da Arábia Saudita, uma metrópole de 7 milhões de habitantes, requer cálculos complicados para 50% da população, que é mulher. Será que um homem estará disponível para me levar para este ou aquele compromisso? Como as crianças irão para a escola? Qual porta devo usar para entrar neste prédio? Qual fila devo usar para pedir meu café no shopping? 

Às vezes, ao longo do dia, as mulheres vão tirar e colocar os lenços que cobrem os rostos e a cabeça e as túnicas pretas. Isto ocorre em uma variedade de combinações, dependendo se homens estão presentes e o quão bem elas o conhece. A punição por errar pode incluir isolamento social, humilhação para as mulheres e suas famílias, assedio por parte dos homens e, até recentemente, prisão. 

De forma pequena, mas significativa, os cálculos diários estão se tornando mais simples e os custos de errar estão diminuindo. As reformas sociais implementadas pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salman estão trazendo mudanças para muitos aspectos da vida no reino conservador, mas nenhuma delas pode beneficiar mais do que as mulheres, cujo tratamento tem separado a Arábia Saudita do resto do mundo há décadas 

Fios de cabelo começam a aparecer sob os lenços que cobrem as cabeças, as filas que separam homens de mulheres estão começando a desaparecer e o governo, lentamente, está retirando aquilo que foi uma vigorosa intromissão na vida das mulheres. A partir deste domingo, elas poderão dirigir, a mais simbólica e importante mudança até agora. 

Liberdades políticas, definitivamente, não estão incluídas. As prisões no mês passado de 17 ativistas, incluindo sete das mais proeminentes mulheres que lideraram a campanha pelo direito a dirigir, enviaram um claro sinal aos sauditas: apenas o governo pode concedê-las e pode retirá-las a qualquer momento. Oito delas foram liberadas, mas nove permanecem atrás das grades, incluindo três ativistas pelo direito de dirigir. 

As prisões provavelmente têm menos a ver com as demandas específicas que as mulheres estão fazendo do que com as exigências globais, diz Hala al-Dosari, uma ativista saudista que apoiou a campanha para que as mulheres pudessem dirigir e é bolsista do Instituto Radcliffe da Universidade de Harvard. Clérigos, blogueiros e ativistas dos direitos que são críticos ao governo também foram presos, contudo tiveram menos publicidade, diz ela. 

Pelo contrário, a Arábia Saudita está indo em direção a uma forma mais dura de autoritarismo, ao mesmo tempo em o governo promove as reformas sociais que estão libertando as mulheres da mais rígida discriminação de gênero no mundo. Campanhas futuras por reformas mais significativas para as mulheres, como o fim da tutela masculina que exige que elas peçam a permissão para viajar, trabalhar ou ir a um café, serão contidas, disse Dosari. 

“As únicas reformas que serão permitidas são aquelas identificadas pelo Estado”, diz ela. “Mohammed Bin Salman quer ser o árbitro. Ele quer decidir as reformas e quando elas devem acontecer.” 

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Contudo, não há sinais de que haja um retrocesso nas reformas permitidas até agora. Os jornais sauditas continuam a publicar, gradualmente, reportagens sobre as primeiras mulheres a realizar esta ou aquela atividade. O objetivo, supostamente, é ilustrar os passos em direção a uma maior igualdade. 

Para muitas mulheres, as mudanças parecem ser mundanas, e seguem dependendo do que os homens estabelecem em suas vidas. Na província costeira de Jedah, no Oeste do país, que tem sido muito muito mais liberal que a desértica capital Riad, muitas mulheres tem descartado os lenços que cobrem as cabeças, e muitos cafés e restaurantes aboliram as áreas exclusivas para famílias e homens solteiros, que foram criadas para assegurar que as mulheres não encontrassem homens sem que elas soubessem. 

Mas é em Riad, onde as tradições tribais conservadoras frequentemente triunfam sobre o Estado, é local no qual o teste da liberalização acontecerá. Na cidade, restaurantes e cafés ainda praticam a segregação e a grande parte das mulheres usam túnicas e lenços, apesar de decretos do príncipe herdeiro apontar que elas não são mais compulsórias. 

Dezenas de sauditas dizem que as reformas estão mudando as suas vidas em situações que antes eram impossíveis. Elas estão começando carreiras, começando negócios e, uma das menos destacadas, mas mais apreciadas: procurando e obtendo o divórcio e assegurando pensões para seus filhos. 

Muitas pedem para não ser identificadas, pois temem represálias por parte do Estado. Outras dizem estar felizes em poder falar, porque apoiam as reformas. “É como se finalmente tivessemos autorizar respirar”, diz Walla Jarallah, que retornou após estudar fotografia por dois anos em Nova York. 

As entrevistas com as mulheres levantam muita questões, as quais ainda é muito cedo para responder. As mudanças irão perdurar? Elas irão tão longe para fazer uma mudança efetiva? Ou, talvez, elas estão indo tão longe para esta sociedade conservadora? 

Adaptação a uma nova realidade 

Ao longo do dia e até tarde da noite, um fluxo incessante de homens dirigindo carros, Ubers e táxis deixam mulheres diante de uma porta marcada pela frase “homens e crianças não são permitidos.” Lá dentro, as mulheres descobrem o seu rosto e, após pedir um dos vários cafés disponíveis, e sentam-se à mesa para conversar com amigos ou trabalhar em seus laptops. 

O café é um dos muitos que surgiram em Riad e que são de propriedade de mulheres, administrados por elas e exclusivos delas. O objetivo é atender a uma florescente clientela de mulheres que querem relaxar sem a pressão social presente quando os homens estão presentes. 

Muitas situações acontecem no dia a dia de um café exclusivo para mulheres na Arábia Saudita. Produtos como grãos de café e a farinha para as tortas e os brownies que são feitos a cada dia são deixados por homens em um depósito entre as portas externas e internas. Uma vez que os homens terminaram de descarregar, a equipe feminina retira as encomendas e as levam para a cozinha, evitando o contato com estranhos do outro sexo. 

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Segundo a equipe, quando as coisas não dão certo e são necessários homens como encanadores e eletricistas, o café fecha para que a clientela feminina não fique em um situação desconfortável, próxima dos homens. 

Nestes dias, a pressão para se vestir de uma forma mais conservadora e evitar a companhia masculina vem mais das tradições masculinas do que da pressão do governo, diz Najwa, uma estudante de medicina de que foi ao café para se encontrar com um grupo de amigas. “É uma situação tão problemática porque eu seria o centro das atenções se eu não vestisse a abaya (uma espécie de túnica que cobre todo o corpo)”, disse Najwa, que sonha em poder vestir o que ela escolher. 

“Não quero ser a primeira a fazer isso. Se alguém fizer isso, então eu farei. É uma questão de quem vai fazer por primeiro”, disse a sua amiga Hessa, que é fotografa de casamentos e não te certeza se ela quer se vestir de forma diferente. 

Em qualquer caso, as roupas são uma prioridade menor do que os empregos que estão se abrindo e as oportunidade para dirigir, concordam as mulheres. As abayas são uma parte confortável da tradição saudita e “pode-se usar pijamas por baixa”, diz Sarah, 28, uma assistente social. Os homens sauditas também cobrem os seus cabelos, com lenços tribais e vestem longas túnicas brancas que não são compulsórias, mas são escolhidas pela ampla maioria dos homens. 

As mulheres se questionam o quão longe irão as mudanças. “Quero que as coisas sejam como nos EUA”, diz Najwa. “Não como lá”, disse Sarah. “Vemos na televisão que muitas americanas enfrentam assédio sexual.” 

Medo de assédio ainda prevalece 

O medo do assédio preocupa as mulheres e foi citada pelas mulheres como o principal fator que as inibe de participar de uma forma mais ativa das mudanças anunciadas pelo governo. Mesmo as mulheres mais conservadoras receberam bem o direito de poderem dirigir, mas poucas dizem que serão as primeiras a ir às ruas, caso fossem assediadas por homens. 

“Eles te perseguem. Eles pedem seu número de telefone. Ficam ofendidos se você diz não. Provavelmente vão rir de você”, explicou Hessa, 

Uma lei introduzida no mês passado estabelece multas e até cinco anos de cadeia em casos de assédio. 

Mas mesmo as mulheres, protegidas por suas famílias por décadas, necessitam se ajustar às novas liberdades, disse uma ativista feminina que pediu para não ser identificada. 

“Nós tivemos de 40 a 50 anos de lavagem cerebral feita pelas TVs e pelas mesquitas. Se dirigirmos, as mulheres terão todas essas feras monstruosas saltando sobre elas. Nós fomos feitas para temer cada homem no mundo”, disse ela. “Mas os homens não são isto. Definitivamente, há uma percentagem que não é boa. É a minoria. É uma questão de remover os mitos sobre as relações de gênero.” 

Conservadorismo ainda domina 

Cafés mistos ainda são um atrevimento para Riad. As leis não os permitem e as mulheres não tem certeza que elas realmente os querem. 

Salwa al-Dharrab abriu seu café feminino há um ano e tentou obter permissão para que o local fosse designado como um ambiente familiar. Isto significaria que os parentes masculinos das clientes seriam permitidos. Mas a autorização foi negada, sob a justificativa que uma lei da cidade proíbe que mulheres sirvam homens em qualquer estabelecimento. E Dharrab está disposta a empregar mulheres. 

No aniversário da abertura do café, no mês passado, ela fechou o estabelecimento para uma festa particular na qual homens tinham sido convidados. Em uma rara reunião envolvendo os dois sexos, menos de uma dezena de homens, a maioria deles irmãos da clientela feminina, tomavam café junto a mulheres. Algumas delas se cobriram devido à presença dos homens. 

Mas casos desse tipo são raros e algumas tentativas de acompanhar as reformas acabaram sendo um tiro pela culatra. O Kingdom Mall, um dos dos principais shoppings centers da cidade, foi, por muitos anos, reconhecido pelo seu “Ladies Kingdom”, o último andar do estabelecimento, que era reservado exclusivamente para as mulheres. No início do ano, o shopping mudou as regras para permitir que homens e mulheres circulassem livremente pelo estabelecimento. 

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Os negócios despencaram. Mulheres que procuravam o espaço como um lugar onde pudessem circular livremente com as suas amigas abandonaram o local. As lojistas, que costumavam tirar suas abayas e lenços, começaram a se cobrir novamente depois que os homens foram autorizados a entrar no piso. 

“Eles queriam que as vendas aumentassem, mas fizeram o contrário”, diz Iman, que trabalha em uma loja vendendo abayas. A maior preocupação é com os solteiros que rondam o shopping em busca de mulheres, diz ela. 

Ela destaca que as reformas são bem-vindas, mas preocupa-se com o ritmo delas. “Está indo muito rápido. A sociedade aceitaria melhor se isto fosse mais gradual.” 

A lojista diz que as famílias conservadoras estão acostumadas a uma situação. “Se você tem controle sobre como elas levam as suas vidas e, de repente, você abre a porta e diz que elas podem sair, vai ser um choque.” 

“É algo repentino e novo. Muitas famílias tribais não vão aceitar. Elas tem seus próprios códigos, o governo tem suas leis e há o Islã, que tem seus próprios regulamentos.” 

Embate entre religião, costumes e modernização 

Desembaraçar o que é decretado pelo Islã, o que representa as tradições tribais e até onde o governo pretende ir com o seu impulso em direção à modernização está no centro dos ferozes debates na sociedade saudita sobre as mudanças. 

Apesar de serem tratadas como cidadãs de segunda classe, as mulheres e seu papel se encontram no centro da identidade do estado saudita, colocando-as na primeira linha da agenda do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman. 

A maior mudança na vida das mulheres veio há dois anos, quando o governo tirou os poderes de prisão da polícia da virtude e do vício. Esta polícia religiosa, que impunha energicamente os códigos tribais e religiosos com a autoridade de prender quem violasse as regras, continua a fiscalizar. Ela continua a recomendar que as mulheres cubram seu cabelo completamente. 

Mas, desprovida de seus poderes, suas advertências perderam força e as mulheres agora a despreza.

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Com a lei de tutela intacta, entretanto, o grau que uma mulher pode se beneficiar da liberalização depende muito das convicções de sua família e, acima de tudo, dos parentes masculinos que ainda exercem um poder extraordinário sobre a vida das mulheres. 

As mulheres que vem de famílias mais liberais, frequentemente as que são mais ricas, melhor educadas e mais viajadas, podem viver quase tão livremente quanto muitas mulheres em outros países árabes. Namorar, discretamente, tem sido comum por anos entre as elites liberais. E agora, com o enfraquecimento da polícia religiosa, homens e mulheres podem se encontrar – o rosto da mulher coberto – nas áreas familiares de muitos cafés exclusivos de Riad. 

Namoros e homens são a menor preocupação para Nasreen, que, de dia, trabalha como auditora, e, das 6 às 11 da noite, na butique que ela abriu no ano passado com a poupança que conseguiu acumular. Seu sonho é o de desenvolver sua própria marca e ganhar o suficiente para sair do emprego que ela trabalha durante o dia. 

“Sou educada. Estou empregada. Tenho meu próprio negócio. Pago as minhas contas. Não estou perdendo nada”, diz ela. “Casamento não é minha prioridade.” 

Mulheres cujas famílias não aceitam as mudanças são constrangidas como sempre, diz Wijdan, enquanto toma um café com leite na área familiar do Starbucks, onde homens e mulheres solteiros ficam separados, Seu pai não permitiria que ela frequentasse um café durante o dia. Ela implorou ao motorista da família para não contar ao pai que ela parou para tomar um café com uma amiga após acabarem as aulas na universidade. 

Mais pobres podem ser beneficiados 

Com homens sendo os últimos árbitros do que as mulheres podem e não podem fazer, os maiores beneficiários das novas liberdades podem ser aqueles que têm as razões mais urgentes para se libertar. Muitas das mudanças públicas afetam principalmente as elites, que não se importam que suas filhas se tornem instrutoras de escalada ou cantoras de blues. 

Com menos fanfarra, o tribunal de assuntos familiares de Riad foi invadido por mulheres procurando o divórcio e exigindo pensões para os seus filhos desde que uma lei, em março, assegurou a custódia automática de seus filhos. 

Outra lei deu às mulheres o direito a dar entrada em pedidos de divórcio e a requerer apoio às crianças. Uma legislação de 2016 garantiu, às divorciadas e viúvas, de obter carteiras de identidade familiar, convertendo-as em chefes de sua própria família e libertando-as das restrições da lei de tutela. 

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As maiores beneficiárias são as mulheres sauditas mais pobres, cujos pais não têm condições de dar apoio quando o casamento acaba. Muitas delas citam abusos físicos como o principal motivo para divorciar-se. 

“Tudo está mais fácil agora”, diz Sarah, que se divorciou há três anos e agora procura apoio para seus seis filhos. “Os juízes parecem olhar mais para o lado das mulheres.” 

“É muito, muito fácil”, diz Majouda, que permaneceu casada por 17 anos com um marido abusivo e está perto dos estágios finais do processo de divórcio. “O juiz me disse: ninguém pode forçar você a viver com um homem que você não quer.” 

Para outras mulheres que se sentem presas em suas famílias conservadoras, o casamento oferecer uma oportunidade de fuga. “Quero dirigir, mas minha família não deixa”, diz Rahaf, que trabalha em uma pequena loja que vende as abayas pretas e baratas que muitas mulheres vestem quando vão ao Souq al-Tayeb, o maior mercado de Riad. Nele, as mulheres mais conservadoras vão às compras. “Temos um homem da família e é ele que dirige.” 

Muitas das abayas que estão à venda são inteiramente pretas. Mas algumas tem tons de cinza ou de outras cores escuras, a última moda que sinaliza para a inovação dos tempos de mudança e para seus limites. Um toque de cor expressa uma vontade de ir além das restrições existentes, mas não tão longe a ponto de se destacar. “Não queremos atrair a atenção”, diz Rahaf. 

“Nada vai mudar para mim”, continua. “Pelo menos até eu casar. Todas as mães dizem: Espere, quando você casar, dependerá de seu marido.”

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