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Nicolás Maduro enviou médicos de porta em porta para alertar os doentes e os idosos de que os serviços de saúde seriam interrompidos se ele não fosse reeleito | Foto: Meridith Kohut/The New York Times
Nicolás Maduro enviou médicos de porta em porta para alertar os doentes e os idosos de que os serviços de saúde seriam interrompidos se ele não fosse reeleito | Foto: Meridith Kohut/The New York Times| Foto: NYT

Yansnier Arias sabia que era errado. Violava não só a constituição como o juramento que fizera ao se formar, em Cuba. Fora enviado à Venezuela pelo governo de seu país, um dos milhares de médicos destinados a estreitar os laços entre os dois aliados e ajudar a impedir o colapso do sistema de saúde venezuelano. "Mas, com a reeleição de Nicolás Maduro em jogo, nem todo mundo tinha direito de ser tratado", confessa.

"Um homem de 65 anos com insuficiência cardíaca entrou no consultório, precisando desesperadamente de oxigênio. Os tanques ficavam em outra sala, prontos para uso, mas meus superiores, tanto cubanos como venezuelanos, tinham me instruído a usá-los como 'arma política', não para emergências médicas naquele dia, mas para ser fornecido mais perto da eleição, como parte da estratégia nacional de forçar os pacientes a votar na situação", conta.

"O dia 20 de maio de 2018 estava chegando e a mensagem era bem clara: Maduro tinha de ganhar a qualquer custo. Havia oxigênio, mas não me deixaram usar. Tínhamos de deixar para as eleições", diz Arias, que abandonou o programa de seu governo no ano passado e hoje vive no Chile.

 Yansnier Arias, um dos milhares de médicos cubanos destacados para ajudar o colapso do sistema médico venezuelano, em sua casa temporária no Chile, em 12 de março de 2019 | Foto: Tomas Munita/The New York Times
Yansnier Arias, um dos milhares de médicos cubanos destacados para ajudar o colapso do sistema médico venezuelano, em sua casa temporária no Chile, em 12 de março de 2019 | Foto: Tomas Munita/The New York Times | NYT

Para manter o controle sobre a Venezuela, Maduro e seus cupinchas várias vezes usaram o colapso econômico da nação em seu benefício, oferecendo comida aos eleitores famintos, prometendo subsídios extras em caso de vitória e exigindo que as pessoas apresentassem o documento que permite a coleta dos alimentos doados pelo governo nas cabines de eleição. Entretanto, alguns participantes desse esquema revelam que o presidente lançou mão de outro recurso: a manipulação do corpo médico cubano.

Em entrevistas, 16 integrantes da missão médica cubana na Venezuela – elemento característico que marca as relações entre os dois países – descreveram um sistema deliberado de manipulação política no qual seus serviços estavam atrelados à garantia de votos para o Partido Socialista, quase sempre por meio da coerção.

Segundo seus relatos, muitas táticas foram usadas, desde simples lembretes para votar no governo até a recusa de oferecer tratamento para opositores com doenças graves.

Fraude e ameaças

Os médicos cubanos revelam que tinham ordens de ir de casa em casa, nos bairros mais pobres, oferecendo remédio e ameaçando os moradores de exclusão do sistema de atendimento se não votassem em Maduro e/ou em seus candidatos.

Muitos afirmam ter sido instruídos por seus superiores a fazer a mesma pressão durante as consultas com pacientes que precisavam de tratamento para doenças crônicas.

Uma ex-supervisora cubana conta que ela e outros profissionais de saúde estrangeiros receberam documentos de identidade falsos para poder votar; uma médica admite ter recebido a incumbência de dar instruções precisas de voto aos pacientes mais velhos, cujas enfermidades os deixavam particularmente sensíveis à manipulação.

"É o tipo de coisa que você nunca teria de pensar em fazer na vida", conclui. Como muitos outros, a médica falou sob condição de anonimato porque tanto ela como seus familiares ainda podem enfrentar retaliações das autoridades cubanas e venezuelanas.

Os relatos de manipulação e fraude explicam por que a legitimidade de Maduro como presidente é questionada.

Após o início de seu segundo mandato, em janeiro, a Assembleia Nacional declarou seu líder, Juan Guaidó, presidente de direito, classificando a eleição como antidemocrática. Mais de 50 países, incluindo os EUA e o Brasil, atualmente o reconhecem como o líder venezuelano legítimo, embora Maduro ainda detenha as rédeas do poder.

Cuba e seu poio incondicional a Maduro

Os opositores acusam Cuba, que há tempos depende do petróleo venezuelano, de engrossar seu governo enviando agentes para cooperar com as agências de inteligência venezuelanas, ajudando a aliada ideológica a acabar com a dissidência.

Já os médicos cubanos afirmam que o fato de serem usados como instrumento de manipulação política não é amplamente divulgado, e a prática escancara uma troca que supostamente beneficiaria todos os venezuelanos, independentemente do viés político.

O governo venezuelano não respondeu às nossas perguntas; já as autoridades cubanas observaram que há décadas seus profissionais da saúde são respeitados pelas missões médicas ao redor do mundo – e rejeitaram as afirmações dos médicos, de que teriam sido forçados a se envolver em campanhas, pressionados a manipular ou ameaçar pacientes para fins políticos, citando a "missão honrosa" que cumprem.

"O impacto histórico dessa cooperação com a Venezuela se reflete no 1.473.117 de vidas humanas que foram salvas", aponta o representante oficial.

Entretanto, especialistas em direitos humanos apontam para o pacto especial existente entre Cuba e Venezuela há duas décadas. "O governo cubano quer garantir que o regime venezuelano sobreviva e está disposto a fazer qualquer coisa que estiver a seu alcance para apoiar Maduro. É indescritível", relata José Miguel Vivanco, diretor do programa da Human Rights Watch para as Américas.

As visitas domiciliares

Carlos Ramírez adorava seu trabalho. Cirurgião-dentista, ele saiu de Cuba rumo à Venezuela, orgulhoso de sua causa, mas desprezava uma parte: todo fim de semana, ele e outros colegas tinham de sair distribuindo remédios e arregimentando eleitores para o Partido Socialista. "As visitas eram tão comuns que tinham nome: eram as 'casa-a-casa'", relembra.

"Você chega com vitaminas e comprimidos para a pressão ou algo parecido; então, quando começa a ganhar a confiança dos pacientes, começa a perguntar se eles vão votar, onde, em quem e tal", explica Ramírez, que desertou e foi morar no Equador depois de seis anos.

 Dr. Carlos Ramírez, cirurgião dentista cubano, hoje vive no Equador | Foto: Cristobal Corral/The New York Times
Dr. Carlos Ramírez, cirurgião dentista cubano, hoje vive no Equador | Foto: Cristobal Corral/The New York Times| NYT

Todos os 16 médicos cubanos entrevistados confirmaram que as visitas domiciliares combinam remédios e política. Eles fazem parte do Barrio Adentro, programa criado por Hugo Chávez, em 2003, para levar medicamentos aos bairros mais carentes. Depois de mudar o foco do país para os necessitados, o ex-presidente apelou então para Cuba para o envio de especialistas.

O governo da ilha tinha muito a ganhar. Os médicos são seu produto de exportação mais lucrativo, com missões em mais de 60 países, que lhe rendem aproximadamente US$ 8 bilhões em dinheiro vivo. Já a Venezuela pagou em um recurso precioso: petróleo.

Chávez era adorado por muitos venezuelanos. Por isso, no início, Ramírez e os colegas eram instruídos a basicamente "refrescar a memória" dos eleitores a respeito de quem lhes garantia os remédios – favor que deveria ser retribuído com votos. Entretanto, em 2013, depois de lutar contra um câncer, Chávez morreu, não antes de escolher pessoalmente seu sucessor: Maduro, que enfrentou um forte desafio da oposição.

A partir de então, Ramírez e os colegas foram instruídos a alertar a população: se Maduro perdesse a eleição, o novo governo romperia laços com Cuba e os venezuelanos perderiam o atendimento médico gratuito. Em 14 de abril de 2013, Maduro foi declarado o novo presidente, com 50,6% dos votos válidos.

O carnê da Pátria

O governo lançou um sistema de identificação polêmico chamado "Carnê da Pátria", usado pelo Partido Socialista para controlar os subsídios dos alimentos e os votos.

Arias conta que as visitas dos médicos começaram para registrar os cidadãos para a produção dos cartões – mas o documento apavorava muitos venezuelanos, que temiam que o governo visse como votaram e restringisse sua cota de alimentos em retaliação. Em 2018, foi a vez de Maduro enfrentar os eleitores de novo.

Várias medidas foram tomadas para garantir sua vitória – e houve até quem quis desafiá-las, como Leopoldo López, que enfrentou a prisão domiciliar e a reclusão militar. Com a escassez cada vez mais aguda, Maduro prometia subsídios gordos para quem usasse o cartão nacional.

Médicos protestam contra a falta de suprimentos médicos, em frente ao Hospital Municipal da Cidade, em Caracas, Venezuela, 15 de janeiro de 2015 | Foto: Meridith Kohut/The New York Times
Médicos protestam contra a falta de suprimentos médicos, em frente ao Hospital Municipal da Cidade, em Caracas, Venezuela, 15 de janeiro de 2015 | Foto: Meridith Kohut/The New York Times| NYT

Arias diz também que os suprimentos médicos, sempre escassos em La Vela del Coro, cidadezinha pesqueira para onde foi mandado, chegaram a desaparecer, confiscados até a eleição de maio. Segundo ele, seus superiores queriam inundar os hospitais com as medicações às vésperas da eleição, para dar a impressão de que Maduro tinha resolvido o problema da escassez.

Os moradores de La Vela que foram atendidos na clínica confirmam que os medicamentos apareceram de repente antes da eleição. Em 20 de maio, Maduro foi declarado vencedor, tendo garantido o segundo mandato.

Arias não aguentou: foi embora para o Chile, abrigando-se em uma igreja. Entrou com o pedido de asilo e, enquanto espera, impossibilitado de exercer a profissão, limpa o chão do hospital. "Aqui, se não posso ser médico, pelo menos sou um ser humano", conclui.

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