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Mbandaka é uma cidade de quase 1,2 milhões de habitantes ao longo das margens dos rios Congo e Ruki | Max Bearak/
The Washington Post
Mbandaka é uma cidade de quase 1,2 milhões de habitantes ao longo das margens dos rios Congo e Ruki| Foto: Max Bearak/ The Washington Post

“Crescer como uma criança no Congo, de acordo com a vontade de Deus, é crescer no paraíso", diz o coronel Mamadou Ndala, membro da Força de Reação Rápida do 42º Batalhão do Exército Nacional Congolês. “Mas, talvez por causa do homem, crescer no Congo é crescer na miséria por causa dessas guerras intermináveis e injustas.” 

O depoimento é a primeira coisa que se vê em “This is Congo”, documentário lançado este ano pelo cineasta Daniel McCabe. O filme cobre um episódio específico da escalada de violência da República Democrática do Congo (RDC): os ataques do M23, grupo rebelde que atacou vilarejos ao leste do país entre 2012 e 2015. A disputa pelo controle da região persiste há 20 anos e já matou 6 milhões de pessoas. É o conflito mais sangrento desde a 2ª Guerra Mundial. Alguns analistas referem-se a ele como holocausto africano. 

Com tamanho equivalente a dois terços da Europa Ocidental, a República Democrática do Congo (antigo Zaire) é a segunda maior nação da África. Fica no meio do continente, cercado por outros nove países – entre eles a República do Congo, cujo território é sete vezes menor. 

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A RDC tem 79 milhões de habitantes. 31 milhões vivem abaixo da linha de pobreza, com menos de US$ 1,25 por dia (cerca de R$ 5). O país tem uma das taxas mais elevadas de mortalidade infantil do planeta e 43% das crianças com menos de cinco anos sofrem de subnutrição. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) amarga a 176ª posição entre 187 países. Evasão escolar e desemprego são situações rotineiras. Soldados, professores, médicos e outras categorias do funcionalismo público quase nunca recebem em dia. O PIB per capita atual é de US$ 441 (R$ 1,7 mil), o pior do mundo – no Brasil, o valor é de R$ 30.407 ao ano. 

Não deveria ser assim. A riqueza natural do Congo é tão abundante quanto sua extensão territorial. Além de abrigar 25% de todos os gorilas do planeta no Parque Nacional de Virunga, o país detém cerca de 75% de toda reserva mundial de coltan, mineral onipresente em circuitos eletrônicos de smartphones e tablets. Latão, tungstênio, cobalto, cobre: boa parte dos minérios que abastecem indústrias mundo afora sai de rios, jazidas e florestas tropicais congolesas. E não para por aí: o Congo é rico, também, em diamantes, ouro, petróleo, madeira e urânio. 

Tamanha fartura, no entanto, não chega à população: a riqueza é restrita a meia dúzia de empresários conchavados a milícias. “Algumas empresas usam as milícias porque elas conhecem as florestas e sabem como proteger as minas”, explica a ativista Christine Schuler-Deschryver em City of Joy, outro documentário lançado este ano, que conta a história de mulheres violentadas no Congo. 

 Uma história de exploração 

A disputa por minério está entre as principais razões de uma guerra que parece não ter fim. Mas não a única. O presidente Joseph Kabila, no poder desde 2001, recusou-se a sair no final de seu terceiro e último mandato, em dezembro de 2016. Acirrou ainda mais os ânimos. Pessoas próximas dizem que Kabila acumulou tanta riqueza que não quer mais sair do cargo. 

Ele justifica a permanência com a busca de soluções para a crise econômica – e a alegação, aqui, é resolver os problemas antes de qualquer eleição. O Fundo Monetário Internacional (FMI) já ameaçou reter dinheiro congolês, mas os cofres do Banco Central estão vazios. As instituições comerciais enfrentam uma crise de liquidez sem precedentes, enquanto as pessoas trocam seus francos congoleses por dólares no mercado negro em vez de colocá-los na poupança. Kabila chegou a anunciar eleições para dezembro de 2018, algo já feito e não cumprido em 2017. A suspeita, agora, é de que seu governo possa adiar mais uma vez as eleições. 

“O Congo tem muitos problemas porque o presidente não quer sair”, opina Jael Blanche Bohimanga, 23 anos. Ela nasceu e cresceu numa família de classe média de Kinshasa, capital do país, mas atualmente vive sozinha em Porto Alegre como bolsista na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Não queremos que o presidente se perpetue no poder. Há violência, pobreza e até para estudar na universidade pública é preciso pagar. Tudo por causa dele.” 

Em Kinshasa, sede do governo, vivem 10 milhões de pessoas. A região mais nobre da cidade é Gombe, margeada pelo Rio Congo – um corredor fluvial que percorre 7,4 mil quilômetros até desaguar no Atlântico. No bairro estão instalados os principais prédios do poder público, embaixadas, hotéis, restaurantes, supermercados, bares, boates. Fora dali, a miséria impera. 

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Em localidades periféricas e cidades do interior, quase não há sistema de esgoto. A eletricidade é desligada sem aviso prévio. Beber água da torneira não é aconselhável. Poucas estradas ou vias urbanas são asfaltadas. Há intensa atividade de “chegues”, crianças e jovens órfãos que perambulam pelas ruas pedindo esmolas, revirando o lixo ou roubando. Mesmo em famílias de trabalhadores há quem se alimente uma única vez ao dia – às vezes, a cada dois dias. Quando comem, é comum prepararem a comida ao ar livre, em fogo de chão. Em pleno século 21, gás, fogão e geladeira ainda não são itens universalizados no país mais pobre do mundo. 

Os habitantes dizem que o Estado seguiu desativado mesmo após a declaração de independência, em 1960. Naquele ano, o Congo virava a página e deixava de ser uma colônia da Bélgica. Historiadores relatam que o rei Leopoldo 2º (1865-1909), por décadas, fez do Congo seu parque de diversões privado. Foi em seu regime que os recursos naturais começaram a ser confiscados e que os chocolates belgas ganharam fama por conta do cacau africano enviado a Bruxelas. 

Em 1965, o poder foi tomado por Mobutu Sese Seko. O novo presidente trocou o nome do país para Zaire e instaurou um sistema autoritário. O modelo ditatorial começou a ruir no fim dos anos 1980, quando a corrupção erodiu a poupança e a exportação de cobre. Mas só em 1997 suas tropas seriam vencidas pelo guerrilheiro de oposição Laurent Kabila e aliados de Ruanda. O Congo recuperou o nome, mas não deu fim à guerra. Quatro anos depois, Laurent Kabila foi assassinado e substituído por seu filho, Joseph, que controla a RDC até hoje. 

 Violência espalhada 

Kinshasa fica a mais de 2 mil quilômetros do epicentro da guerra, na fronteira oriental da República Democrática do Congo – algo como a distância entre São Paulo e Salvador. Na província de Ituri, divisa com Uganda, mais de 260 pessoas morreram e outras 200 mil abandonaram suas casas entre dezembro passado e março deste ano. Fala-se numa disputa entre jovens de duas comunidades étnicas locais, Lendu e Hema, apoiados por milicianos de Ruanda e Uganda em busca de influência no leste. “As pessoas estão sem esperança”, lamentou Jean Bosco Lalo, líder da sociedade civil em Ituri, ao New York Times. 

A opinião de Lalo é a mesma a 460 quilômetros dali, em Bukavu, fronteira com Ruanda. Há mais de uma década, concentram-se ali milhares de pessoas expulsas de seus vilarejos. Para demonstrar força, rebeldes e milicianos atacam as localidades e devastam as famílias regularmente. Os homens são brutalmente agredidos e mortos. Um estudo publicado na American Journal of Public Health estima que 48 congolesas são estupradas a cada hora. Às crianças, não restam opções senão o trabalho forçado nas minas. Meninos também são feitos soldados. As meninas, escravas sexuais. 

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“Perto das minas acontecem muitos estupros”, diz Christine Schuler-Deschryver. “Os milicianos usam isso com arma de guerra. Estrupam filhas, mães, avós. Os sobreviventes vão embora. E as milícias tomam os vilarejos.” 

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), no início de 2018 existiam cerca de 5 milhões de congoleses deslocados: 4,3 milhões internamente e 674 mil refugiados em outros países africanos. A entidade opera no país sua mais longa e cara missão de paz. São cerca de 20 mil soldados alocados no Congo. A operação é chefiada por um brasileiro, o general Elias Rodrigues Martins Filho – brasileiros, aliás, são desaconselhados pelo Itamaraty a visitar a RDC. 

Além de tentar promover a segurança da região, a ONU auxilia organizações humanitárias no combate ao surto de doenças como malária, sarampo, desnutrição e até mesmo o ebola. 

Mas as mazelas persistem. E avançam como metástase pelo país. Em março de 2017, milicianos decapitaram 40 policias na província de Kasai, na região central. Dois funcionários da ONU também foram mortos no mesmo local. Em abril, cinco guardas florestais e um motorista perderam a vida no Parque Nacional de Virunga, principal impulsionador do turismo na RDC. 

Lar não apenas de primatas à beira da extinção, mas também de leões, hipopótamos e elefantes, Virunga não escapa dos grupos armados, caçadores e extrativistas ilegais. Pelo menos 175 guardas foram mortos enquanto protegiam a reserva nas últimas duas décadas. Desde o último ataque, o parque está fechado – só deve abrir em 2019.

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