No livro O continente esquecido A batalha pela Alma Latino-Americana, o editor da revista inglesa The Economist Michael Reid descreve o cenário da capital argentina em 1913: Buenos Aires era a segunda maior cidade das Américas, depois de Nova Iorque. Com mais conexões de esgoto que Paris, aparentava ser uma colônia britânica. A renda per capita do país era até um pouco maior que a de França e Alemanha.
O que deu errado para que hoje a Argentina tenha mais indigentes urbanos do que o Brasil, de acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe? Villa 31, maior favela de Buenos Aires, já tem 30 mil pessoas (em Curitiba, a Vila das Torres tem cerca de 9 mil). A população que vive em moradias irregulares aumentou 30% desde 2007, enquanto três em cada quatro argentinos já diz não ganhar o suficiente para cobrir os gastos diários.
De acordo com analistas, o declínio da Argentina se deve a decisões erradas que permeiam a política e a economia do país. A primeira delas está relacionada às duas grandes guerras. Até a primeira (1914-1918), o sucesso comercial da Argentina estava intimamente ligado à Inglaterra, potência mundial da época, que comprava grande parte do trigo e da carne dos pampas. As compras se encerram definitivamente após a segunda guerra, com ingleses privilegiando suas ex-colônias. Esse não seria um grande problema se a Argentina pudesse exportar para a potência emergente, os EUA, mas sua produção agrícola não era tão interessante para os norte-americanos.
Politicamente, a decisão argentina de não se posicionar entre os Aliados, contra o Eixo, durante a Segunda Guerra marcaria para sempre sua história. "Eles perderam a reorganização do mundo. Aquele país que era uma das dez potências do início do século 20, na metade do século já não estava entre os países vencedores", diz o professor do Instituto Rio Branco e árbitro do Mercosul Jorge Fontoura. "A Argentina deixou de ser uma ramificação da Europa nas Américas e se tornou um país latino-americano", ironiza Michael Reid.
Com a destruição do sonho de ser o celeiro do mundo, a Argentina parte para a industrialização e, nos anos 60, chega a ser forte na produção de farmacêuticos, metal-mecânica e até bens de capital sob encomenda. Mas o país não consegue sustentar a mudança de perfil de produção, muito por causa de uma questão cultural. "As elites eram e ainda estão muito ligadas a ganhos de curto prazo, com uma mentalidade mais de comerciante que de industrial. Não se planejou o desenvolvimento de longo prazo", diz o argentino Ramón García Fernández, professor da Escola de Economia da FGV-São Paulo.
A desindustrialização da década de 1970 fez surgir um vácuo em termos de talento econômico, que não foi mais preenchido. "As elites achavam que o país tinha que ser um grande país agrícola, e que a indústria não seria uma coisa natural", aponta o argentino.
Outra decisão que o professor Fernández considera errada foi tomada nos anos 90, quando a Argentina entrou "100% na onda neoliberal, enquanto tanto FHC quanto Lula foram mais cuidadosos no Brasil".
O fundo do poço chega em 2001, quando o colapso econômico causado pelo fim da paridade do peso com o dólar leva pela segunda vez pessoas às ruas atrás de algo valioso nas latas de lixo. A primeira vez que isso aconteceu foi em 1990, quando a inflação de 200% ao mês comeu os rendimentos dos aposentados.
O primeiro mandato de Kirchner (2003-2007) é de recuperação, que muitos definem como um crescimento "apesar de Kirchner", com a alta média anual de 8% do PIB influenciada pela onda do preço da soja. Hoje, "apesar da confusão, o país está em processo de crescimento", define Fernández.
Política conflitiva
Os problemas da Argentina foram basicamente políticos, desde o fracasso em adotar medidas mais favoráveis à diversificação das exportações no século 20. A opinião é do professor de Economia da Universidade Federal do Paraná, o uruguaio José Gabriel Porcile Meirelles.
Dentre esses problemas, o professor Fernández aponta a alta conflitividade política. "Temos a tendência de não resolver as coisas com diálogo, e sim radicalizar posições. Não estamos acostumados a chegar a um acordo", diz.
Essa característica ficou clara no governo de Cristina Kirchner, que abriu guerra contra os produtores de soja ao elevar o imposto sobre as exportações e estatizou os fundos de previdência privada do país.
Quando visita seu país, o professor Fernández lamenta ainda a queda na qualidade da Educação. "Era uma coisa que tínhamos muito melhor que a maioria dos países latinos", diz.
Nas universidades, há menos recursos, pesquisa, e organização do que no Brasil, diz ele. E a educação fundamental, "na melhor das hipóteses, está no mesmo nível que a do Brasil". O que não chega a ser um elogio.
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