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 | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

Numa gelada manhã de final de novembro do ano passado, numa Paris de ares natalinos em pleno inverno europeu, Pascal, de 54 anos, assentado na laje fria da calçada na rua Odessa, no bairro Montparnasse, recebeu uma esmola de fazer acreditar na existência de Papai Noel.

“800 euros de uma só vez!”, exclama. “O homem disse que havia ganhado na loteria – e deu essa bolada na minha mão. Em apenas quatro horas, juntei 1.217 euros , conta, com inesquecível exatidão numérica, acomodado na mesma esquina, agora no fim do verão parisiense.

Pascal não trabalha, mas cumpre com rigor o horário de sua jornada. Diariamente, se instala às 8 horas em seu imutável ponto de mendicância, de onde só sai no início da tarde. Mas nem todo dia é de surpresas natalinas. Naquela manhã, havia acumulado 14 euros em moedas em seu copo de plástico.

Pascal é um SDF, emblemática sigla correspondente a um crescente problema social na França: as pessoas sem domicílio fixo. Os sem-teto passaram a integrar a paisagem da cidade diante da indiferença de parisienses e do espanto de turistas. A mais recente pesquisa feita pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Estudos Econômicos apontou, no período de dez anos a partir de 2001, um aumento de 84% de SDFs na cidade.

Em 2012, havia 28.800 mil sem-teto adultos em Paris, número equivalente a 43% do total no país. A pesquisa revelou ainda que um terço deles possuía algum tipo de emprego, e que 56% eram estrangeiros. Como parte da política do município de ajuda aos sem-teto, a capital foi dividida em quatro setores, cada um deles monitorado por uma associação de caráter social. Números que a nova – e desordenada – onda migratório deve elevar. Resultado da soma de imigrantes sem perspectiva com franceses que não conseguiram construir uma vida estável, como Pascal.

É uma presença que incomoda, porque lança uma imagem violenta de um mal da sociedade. Alguns dizem que deve se encontrar uma solução, e outros só os querem fora de vista, se livrar do problema. Também há a imigração. Um sem-teto já é estigmatizado – ainda mais sendo estrangeiro.

Wenjing Guo socióloga que estuda a população de rua em Paris.

Nascido na região de Calais, ele desembarcou na capital francesa aos 16 anos. Chegou a trabalhar como pâtissier (confeiteiro francês) mas sofreu um problema na mão e não conseguiu mais emprego. Por muitos anos – ele diz não lembrar quantos –, viveu na rua. Mas há alguns meses dorme todas as noites no albergue da associação Espace Solidarité Insertion, na avenida René Coty.

“O que vou fazer? Como vou trabalhar? Eu era um bom pâtissier. Você tinha de ver minhas tortas. Hoje, com o que ganho aqui dá pra viver”, reconhece.

Um dia na rua rende até 16 euros em esmola

Na parte lateral da estação, na rua du Départ, Phillipe, de 60 anos, pode ser avistado todos os dias pela manhã, sentado em uma banqueta alta, suas duas muletas encostadas na parede. Foi um SDF desde os primeiros dias de vida, nascido de um parto na rua. Nos últimos anos, dormiu muitas noites ali mesmo, protegido pelo muro na parte interna da garagem.

“Mas é preciso dormir com um olho bem aberto”, alerta.

Sua história, verdadeira ou não, é digna de um filme. Phillipe conta que por dez anos integrou a unidade de paraquedistas das forças especiais do Exército francês. Sua deficiência, diz, é consequência de uma bala recebida na perna durante uma operação no Afeganistão. Fora do serviço militar, foi experimentar a vida em Londres, na companhia de um amigo, que o teria convencido depois a se aventurar em Nova York.

“Tínhamos US$ 3,5 mil cada um, mas perdemos tudo na primeira noite. Consegui alguns trabalhos e conheci minha mulher, mas ela morreu no 11 de Setembro. Em 2004 retornei para a França, mas nunca me recuperei”, diz.

Phillipe diz recolher entre 140 e 160 euros diários de esmolas. Quanto atinge esta soma, retorna mais cedo para o albergue onde atualmente está alojado.

“Estou bem no albergue. Quando cheguei, dividia um dormitório com mais sete SDFs. Agora mudei para um quarto em que somos quatro. Mas, por vezes, eu pago uma noite de hotel para poder lavar minha roupa e ver jogos de rúgbi na TV”, diz.

Serviço telefônico 24 horas oferece ajuda do estado

Imigrantes reforçam o continente de pessoas pedindo esmola.Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

Sentado na mureta em frente à entrada principal da estação ferroviária deMontparnasse, Jimie, 55 anos, expressava uma mistura de irritação e abatimento. Nos últimos dias, havia passado as noites nos subterrâneos da linha 13 do metrô parisiense.

“Eu durmo mal no metrô, meus olhos doem não sei por quê, e estou doente”, queixava-se.

Originário da Sardenha, na Itália, Jimie está há 41 anos na França, mas quase nunca trabalhou, e atravessou os anos entre a rua, albergues públicos e alojamentos provisórios. Recentemente, conseguiu um quarto em um hotel barato, o qual acabou perdendo por falta de recursos para pagar, e agora depende do 115. Os três algarismos são a senha mágica para os SDFs que almejam pernoitar em algum abrigo. O número de telefone funciona 24 horas, e o serviço direciona os sem-teto para algum estabelecimento gerido pelo estado ou uma associação que tenha vaga disponível. Mas obter um lugar muitas vezes se assemelha a uma travessia do deserto.

“Tento ligar quando consigo, mas está quase sempre ocupado; quando alguém atende, diz que não há leitos”, diz Jimie, desolado, antes de voltar ao vagão.

As esmolas são para gastar com a vida

No extremo oposto da estação, na rua de l’Arrivée, Lotz, de 55 anos, postado em uma das escadarias de acesso à Gare Montparnasse, cumpre um horário germânico em busca de esmola: chega todos os dias às 8h20, e vai embora às 14h. Alemão de nascimento, ele viajou em 1998 para a França, de onde nunca mais saiu. Por seis anos trabalhou como um empregado faz-tudo em um restaurante ali mesmo nas proximidades da estação, e depois passou para um outro vizinho, onde permaneceu por dois anos.

“Sempre trabalhei clandestinamente, nada declarado, então não tenho direito a nada. Por meses dormi num esconderijo naquele edifício (indica o outro lado da rua)”, conta.

Hoje, Lotz desembolsa ” 320 euros por um quarto alugado em uma habitação de propriedade da SNCF, a rede ferroviária francesa. No último verão, seus amigos da companhia de trem conseguiram passagens de graça para que possa ir visitar suas duas filhas na Alemanha. Para pagar o aluguel, ele tem atualmente um trabalho parcial como distribuidor de jornais.

“E as esmolas são para gastar com a vida”, diz.

Combate diário contra vulcão em erupção

Na França desde 2007, a chinesa Wenjing Guo realiza um estudo sociológico sobre as razões pelas quais SDFs recusam a ajuda social e por vezes preferem permanecer na rua, e a partir de 2012 passou a trabalhar como funcionária da associação. A maior quantidade de sem-teto nas ruas na cidade é uma questão complexa para os parisienses.

“É uma presença que incomoda, porque lança uma imagem violenta de um mal da sociedade, e nos remete a nossa impotência. Alguns dizem que deve se encontrar uma solução, e outros só os querem fora de vista, se livrar do problema. O SDF não surge do nada, existe um processo que leva pessoas a uma situação extrema. Muitas delas estão perdendo suas moradias. E também há a questão da imigração. Atendemos cada vez mais estrangeiros sem perspectiva de retorno a seus países. Um sem-teto já é estigmatizado, e ainda mais sendo estrangeiro...”, avalia.

Moussa Djimera, originário da Mauritânia, está na França desde 1991, e começou a atuar em trabalhos sociais em 1995. Hoje, coordena duas equipes de contato com sem-teto. Moussa vê as novas ondas de imigração como “um vulcão em erupção”.

“As pessoas fogem para salvar sua pele e também da miséria. Todo este quadro favorece os extremismos na Europa. Mas depois da tempestade vem a bonança. Eu espero pela bonança, mas é um combate diário”, diz, sem perder o otimismo.

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