
O debate rancoroso a respeito da escolha de um substituto para o ministro Antonin Scalia reflete de diversas maneiras o crescente ceticismo do público em relação à própria Suprema Corte dos Estados Unidos, conforme sua imagem evoluiu da de imparcial árbitro de direito para a de mais uma instituição politizada.
A Corte mais alta da nação não está imune à desilusão que os americanos sentem a respeito de todas as suas instituições governo. Cada vez mais, a pressuposição é de que certos resultados políticos devem ser esperados – e, às vezes, exigidos – dos ministros.
E, agora, o ostensivo isolamento do judiciário em relação à política está se tornando ainda menor. Com uma vaga que pode deslocar o equilíbrio ideológico da Corte, republicanos estão insistindo que os eleitores tomem uma decisão a respeito de quem será o próximo presidente antes que qualquer um tome uma a respeito de quem será o próximo ministro.
“O povo americano deve ter voz na seleção do próximo ministro da Suprema Corte”, o líder da oposição no Senado, o republicano Mitch McConell, de Kentucky, insistiu em uma declaração à imprensa. “Dessa maneira, essa vaga não deve ser preenchida até termos um novo presidente.”
Essa, é claro, não é a maneira como a Constituição estabeleceu as coisas quando deu ao presidente um mandato de quatro anos e instituiu o processo para o preenchimento de vagas na Corte.
Polêmicas
Em parte, a determinação dos republicanos em bloquear a oportunidade de o presidente Obama fazer uma nomeação que possa deixar uma marca duradoura na Corte reflete sua indignação a respeito da maneira como a atual maioria conservadora de ministros permitiu que o casamento entre pessoas do mesmo sexo se tornasse o direito vigente e tem se recusado a derrubar a lei de reforma do sistema de saúde que é a principal conquista de Obama na política interna.
A Corte toma “muitas decisões mantendo políticas a favor das quais eu não votaria se estivesse no legislativo”, o presidente da Corte, John Roberts Jr., disse no começo deste mês. “Eu não concordo necessariamente com o conteúdo de cada lei porque apenas determino se a Constituição permitia que o Congresso a aprovasse”.
Contudo, a separação de papeis frequentemente se perde na agitação política que cerca as decisões da Corte.
“Quando políticos e partidos decidem tratar as disputas diante da Corte como uma partida de futebol, é difícil para os ministros escaparem desse jogo”, disse Tom Goldstein, um advogado com experiência em processos perante a Suprema Corte que ganhou seguidores fora dos tribunais por meio de seu amplamente lido “SCOTUSblog” (SCOTUS é a sigla em inglês para Suprema Corte dos Estados Unidos).
Não é um desenvolvimento totalmente surpreendente, dada a polarização do país. A Corte se encontra “no mesmo estado de ebulição em que está toda nossa política neste momento”, disse Ron Klain, que liderou os esforços para conseguir a confirmação do Senado para nomeação da ministra Ruth Bader Ginsburg, quando era assessor do alto escalão da Casa Branca no governo Clinton.
Mas Klain notou que, já em 1830, Alexis de Tocqueville observava: “Praticamente nenhuma questão política emerge nos Estados Unidos que não venha se tornar, mais cedo ou mais tarde, uma questão judicial.”
Nomeações
Mesmo antes da morte de Scalia, a composição da Corte estava se tornando um tópico intensamente debatido nas eleições de 2016.
Candidatos à presidência são frequentemente questionados a respeito da maneira como selecionariam suas nomeações à Corte. No passado, eles geralmente descreveram o tipo de filosofia judicial que estavam buscando ou deram os nomes de ex-ministros que poderiam servir de exemplo para aqueles que eles viriam a selecionar.
É considerado inadequado que o presidente selecione suas nomeações explicitamente com base em questões específicas – “testes eliminatórios” que constrangeriam a independência dos ministros.
Mesmo assim, este ano, ambos os pré-candidatos pelo Partido Democrata se comprometeram a fazer exatamente isso.
Bernie Sanders, senador independente por Vermont, declarou que não irá nomear ninguém que não se comprometa a derrubar a decisão da Corte no caso “Citizens United”, de 2010, que abriu as comportas para o dinheiro não regulado na política.
Quando perguntaram, em um evento com presidenciáveis no começo deste mês, à ex-secretária de Estado Hillary Clinton se a questão do aborto seria um teste eliminatório para suas nomeações, ela respondeu: “Eu realmente tenho um teste eliminatório. Tenho uma porção de testes eliminatórios.” Entre outros, ela disse, estariam preservar a Lei dos Direitos de Voto de 1965, derrubar a decisão do caso “Citizens United” e resguardar o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Na esteira da decisão da Corte em junho passado que legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o pré-candidato pelo Partido Republicano Ted Cruz, senador republicano pelo Texas, acusou os ministros de descerem por “uma longa ladeira em direção à ilegalidade”. Ele propôs uma emenda constitucional para submeter a Corte a eleições periódicas – efetivamente transformando os ministros em políticos.
Os americanos ainda têm mais respeito pelo poder judiciário do que pelos poderes executivo e legislativo, mas sua confiança tem caído sensivelmente nos últimos anos.
Pesquisa
Uma pesquisa do Pew Research Center em julho passado mostrou que a desaprovação do público em relação à Corte estava em seu nível mais elevado em 30 anos, atingindo 43%, na sequência de decisões impactantes mantendo a lei de reforma do sistema de saúde e legalizando o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Como em muitas outras áreas, o público americano está polarizado na maneira como enxerga a Corte: na pesquisa do Pew Research Center, apenas 33% dos republicanos tinha uma visão favorável da Corte, uma queda de 17 pontos percentuais em quatro meses. Ao longo do mesmo período, a aprovação dos democratas aumentou sensivelmente, atingindo 62%, um crescimento de oito pontos percentuais.
Independentemente da afinidade partidária, poucos acreditam que a Corte estava tomando suas decisões estritamente de acordo com o direito. Sete em cada 10 entrevistados disse que, ao decidir casos, os ministros “são frequentemente influenciados por suas próprias visões políticas”.
A tensão vem de tão longe quanto 1950, quando a Corte, sob o comando do presidente Earl Warren – ele próprio vindo de um passado político, tendo sido governador da Califórnia –, começou a avançar para além de seu papel tradicional e se tornou um instrumento de mudança social.
Conforme os ministros agressivamente expandiam direitos e liberdades civis, cartazes pedindo o impeachment de Warren apareceram ao longo das estradas por todo o sul do país.
Outro divisor de águas veio com a decisão da Corte no caso “Bush versus Gore”, quando ela entrou em cena para decidir o resultado da tensa decisão presidencial de 2000.
Mais de 12 anos depois, a ministra aposentada Sandra Day O’Connor, cujo voto foi decisivo, refletiu que provavelmente havia sido um erro a Corte aceitar julgar o caso.
“Provavelmente a Suprema Corte contribuiu para o problema no fim das contas”, ela declarou ao conselho editorial do jornal Chicago Tribune. A decisão “agitou o público”, acrescentou O’Connor, e “deixou a Corte com uma reputação menos do que invejável”.



