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Antropologia

É meu!

Argumentos de pesquisadores mostram que nem sempre é bom obrigar seu filho a compartilhar um brinquedo com outra criança

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"Que caminhãozinho legal!", disse meu filho, segurando seu prêmio, os olhos brilhando de ad­­mi­­ração. Ele tinha 21 meses de ida­­de e gostava muito de coisas com ro­­das. Eu tinha que admitir, o caminhãozinho era legal; partes cromadas, uma caçamba funcional, até as portas tinham dobradiças.

Ele e eu estávamos na praia, onde ele achou o caminhãozinho sem dono, e, conforme as regras tácitas da praia, não seria errado brincar com ele.

Dez minutos depois, o dono do caminhão, um menino de mais ou menos 5 anos, surgiu à vista e arrancou o caminhão das mãos do meu filho, que ficou chocado. Eu esperei; ele tinha uma frota de seus próprios caminhões, com os quais não estava brincando. Mas a mãe do menino, logo atrás, ficou estarrecida.

"Dá para você deixar o menininho brincar com o caminhão?", ela pediu ao filho. "Não", ele disse. Agora, sua mão estava sobre o caminhãozinho legal. Meu filho não precisava mais, eu disse, ele brincou bastante. A essa altura, porém, ela não ia desistir.

"Ele precisa aprender a compartilhar", ela disse e arrancou o caminhãozinho das mãos do seu filho para passá-lo ao meu. Depois ela saiu, deixando o filho dela sentado na areia, uivando.

Não sou contra compartilhar como virtude ou aspecto importante da vida social. Mas acredito mesmo que os pais devam ser exemplos disso antes de tentarem ensiná-lo. Se forem, eles deverão ensiná-lo àqueles que são cognitivamente capazes de compreender o conceito e àqueles que têm uma chance de negociar os termos – e que podem ser capazes de compartilhar por conta própria quando não houver adultos por perto.

Meu amigo, G., também pai, tem uma história sobre o que uns chamam de "polícia do compartilhamento" com um final mais fe­­liz. Certo dia, sua filha e um menino, ambos com 18 meses de idade, começaram a brigar por causa de uma pá. O outro pai quis intervir, mas G. disse: "Deixe que eles resolvam. Vamos ver o que acontece".

Os dois bebês puxaram a pá de um lado para o outro uma dúzia de vezes, depois a largaram e fo­­ram embora. Aparentemente, eles queriam alguma interação, não a pá em si. No entanto, por que o outro pai se manifestou tão rápido? Foi só parte do espetáculo de "ser bom pai" que os adultos se sentem obrigados a encenar um para o outro? Ou foi outra coisa também?

Visão da infância

Eu me voltei a um livro, The An­­thropology of Childhood ["A An­­tropologia da Infância", em tradução livre], uma visão panorâmica e poderosa da infância em várias culturas e períodos históricos, es­­crito por David Lancy, an­­tropólogo da Universidade do Estado de Utah.

Lancy construiu um banco de dados maciço de descrições antropológicas e tem um número enorme de detalhes ao seu alcance. Eu lhe perguntei, o que ocorre que os pais metem o nariz nas situações para fazer os filhos compartilharem?

"Minha noção, a partir da literatura etnográfica", ele escreveu num e-mail, "é que muitas sociedades não aceitam bem o comportamento ‘egoísta’ ou ‘exigente’ das crianças e podem tomar medidas explícitas para mudar esse comportamento – mesmo se com­­partilhar não for uma virtude visível".

Volta

De volta à praia: dez minutos depois, meu filho abandonou o caminhãozinho, por mais legal que fosse, para fazer outras coisas, e o outro menino voltou correndo para resgatar o caminhão. Meia hora depois, nós nos encontramos com ele no final do escorregador, e meu filho pediu o caminhão.

"Não", o menino ladrou. "Você brincou muito tempo com ele, e eu não vou deixar você ficar com ele". Isso me pareceu claro o bastante. Depois de alguns minutos, o menino se voltou ao meu filho e lhe ofereceu o caminhãozinho legal. "Aqui, você quer brincar com ele?"

Tradução de Adriano Scandolara.

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