
Protestos contra o presidente Mohamed Mursi eclodiram ontem em várias cidades do Egito como reação aos decretos em que ele se concedeu "superpoderes" especialmente o de impedir que o Judiciário conteste qualquer decisão sua até que o país tenha uma nova Constituição.
Na capital, Cairo, milhares de manifestantes se reuniram na Praça Tahrir (epicentro da revolta que derrubou o ditador Hosni Mubarak, em fevereiro de 2011) para pedir a saída de Mursi. A polícia dispersou o ato com bombas de gás lacrimogêneo.
No protesto, ouviam-se slogans como "o povo quer derrubar o regime", "fora, Mursi" e "Mubarak, conte a Mursi que depois do trono vem a cadeia" referência à prisão perpétua a que o ex-ditador foi condenado, em junho.
Houve manifestações de variados graus de violência em outras grandes cidades. Em Alexandria, um escritório do partido da Irmandade Muçulmana grupo ao qual pertence o presidente foi depredado. Edifícios do partido governista também sofreram ataques de manifestantes em Suez e Port Said.
Em discurso num palanque montado do lado de fora do palácio presidencial, no Cairo, Mursi afirmou que governa "para todos os egípcios" e que não será tendencioso para com nenhum "filho do Egito" referência direta às acusações de que privilegia aliados islamitas.
"A oposição não me preocupa, mas ela tem de ser verdadeira e forte. Vamos sempre adiante, no rumo do novo Egito", acrescentou o presidente, que se disse comprometido com a estabilidade social e econômica do país e com a alternância de poder.
Assessores de Mursi alegaram, ainda, que a intenção das medidas do governo é acelerar os avanços democráticos, supostamente emperrados por impeditivos legais. "O presidente quer que o país saia do gargalo sem que se quebre a garrafa", afirmou seu porta-voz, Yasser Ali.
Liberais e críticos do governo contestam: "O decreto [que impede ações do Judiciário contra Mursi] é um golpe nas instituições e no Estado de Direito", disse o ativista Mervat Ahmed, um dos participantes do protesto de ontem na Praça Tahrir.
Entrevista"Manobra foi perigosa, mas bem articulada"Issandr el-Amrani, jornalista e analista político
Para o jornalista e analista político Issandr el-Amrani, que vive no Cairo, medidas do presidente Mohamed Mursi dão a ele poderes de ditador.
Há alguma relação entre o decreto e todo o sucesso obtido pelo presidente Mohamed Mursi no papel de mediador do cessar-fogo entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza?
De certa maneira, sim. Esse decreto era uma possibilidade real, só que muitos não imaginavam que ele teria mesmo coragem de concentrar todos os poderes do Estado oficial. A decisão dele foi facilitada por uma oposição cada vez mais fragmentada e perdida. Por outro lado, o sucesso na mediação entre Israel e o Hamas serviu, sim, como uma espécie de escudo político contra as críticas internacionais.
O Egito tem, então, um novo ditador, mesmo que temporariamente?
Se você fizer uma análise fria dos acontecimentos, podemos dizer que sim. Mursi se atribuiu poderes políticos definitivos e incontestáveis, acima de qualquer consenso. É o fim da transição, pois isso cria as oportunidades para que outras medidas sejam adotadas: por exemplo, uma lei eleitoral que favoreça a Irmandade Muçulmana no futuro.
Há algum indício de um caminho despótico, no qual predominarão apenas os interesses da Irmandade?
O problema do decreto é que ele é muito amplo. Foi uma manobra perigosa, que alimenta a insatisfação popular e incita protestos, mas ao mesmo tempo também foi muito bem articulada. A verdade é que o decreto pode não ser tão ruim como parece. Mursi limpou o Judiciário, os egípcios não podiam mais ser tão desafiados pelo sistema. O procurador-geral demitido vinha do regime Mubarak e era criticado, visto com desconfiança pela maioria do povo. A Assembleia Constituinte vinha trabalhando sem qualquer consenso, e as minorias se afastaram do debate. Isso tudo vai dar a todos os lados mais tempo, principalmente para que os setores laicos, jovens e cristãos saiam do debate ideológico e consigam traduzir em pragmatismo suas demandas políticas.



