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Venezuelanos aguardam para fazer o passaporte em Caracas | Manaure Quintero/Bloomberg
Venezuelanos aguardam para fazer o passaporte em Caracas| Foto: Manaure Quintero/Bloomberg

Os pacientes chegam durante a noite ou em plena luz do dia, algumas vezes vivos e outras, mortos. Como nunca visto antes, uma onda de suicídios de venezuelanos está deixando abatidos os médicos que trabalham no hospital universitário no estado andino de Mérida (Oeste da Venezuela). Pessoas que tentam tirar suas próprias vidas chegam ao local em um ritmo incerto, e isso está gerando medo nos profissionais de saúde. 

 “Vivemos entre o terror e a impotência. Com frequência, pensamos que não podemos fazer o que deveríamos no momento em que somos capazes, e estamos aterrorizados que as pessoas estejam cometendo suicídio, e não há nada que possamos fazer por eles”, disse Ignacio Sandia, chefe do departamento de psiquiatria. 

 O número de suicídios está crescendo rapidamente em toda a nação venezuelana, outrora rica. Mas particularmente na região montanhosa de Mérida, onde eles estão chegando a níveis nunca vistos antes. O Observatório Venezuelano de Violência, uma instituição não governamental, estima que o número de suicídios no estado tenha sido mais de 19 entre 100 mil pessoas em 2017. Apenas 12 nações têm índices maiores. 

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Tais mortes, porém, estão se tornando cada vez mais comuns em uma população afetada pela hiperinflação, pela fome e emigração em massa. 

 Xiomara Betancourt, neurologista que lidera os serviços de saúde mental no Corposalud Mérida, o sistema público de saúde local, culpa a escassez de medicamentos antidepressivos, ansiolíticos e a solidão como fatores que influenciam o suicídio. "É um coquetel, uma infinidade de fatores que convergem para isso", disse ela. 

A região de Mérida é conhecida por suas cidades agrícolas pacíficas e picos cobertos de neve. Apagões perturbam a região com frequência, a escassez de gasolina e de transporte público também força os moradores a pegar carona nas ruas repletas de lixo. Alunos da Universidade dos Andes acabaram fugiram, levando consigo um certo tipo de otimismo contagiante. 

 Sem dados oficiais confiáveis, o Observatório vasculhou jornais e registros policiais e hospitalares para documentar mais de 190 suicídios em Mérida, no ano passado. 

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 A morte de Angel Isol Mendez, 75, pôs fim a uma situação que reflete a situação do estado. Seu mercado em uma vila rural ficou sem mercadorias. A fome fez com que emagrecesse muito. A falta de insulina causava feridas em seus pés. Em 23 de agosto, seu filho o encontrou morto. 

"Não havia nada para vender, nada, nem mesmo um pedaço de doce. Tudo estava dando errado e ele se sentia como um prisioneiro. Eu acho que isso o forçou a tomar uma decisão”, disse sua esposa, Sonia Arellano. 

Médicos e autoridades dizem que muitas decisões são tomadas por impulso. No ano passado, Farmhand Eudis Miguel Valero Sanchez, de 20 anos, quebrou a perna após cair de uma carroceria de caminhão. Ele acabou entrando em uma depressão profunda e, depois de uma briga em uma véspera de Natal, saiu correndo da casa da família e se matou. "Eu me pergunto por que ele fez isso", disse sua mãe, Maria Leida Sanchez. 

Ditadura faz vista grossa à situação

O governo tem feito vista grossa em relação às mortes. Assim como a inflação, os homicídios e as estatísticas de HIV, a ditadura do presidente Nicolás Maduro fica em silêncio sobre o assunto. 

E dados confirmam o aumento desse problema. Na grande Caracas, houve 131 suicídios em junho e julho, de acordo com um documento da polícia investigativa nacional, obtido pela Bloomberg News. Isso implica em um total de 786 este ano, apenas na capital. Em comparação, a nação inteira teve 788 suicídios em todo o ano de 2012, o último registro confiável do Instituto Nacional de Estatísticas da Venezuela. 

"É uma situação crônica. Uma sensação de desesperança toma conta e as pessoas veem que não há saída", disse a psiquiatra Minerva Calderon. 

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Convite, um grupo de defesa de idosos, disse que os suicídios entre os venezuelanos mais velhos aumentaram 67% em 2017 em relação ao ano anterior. Em outubro, o Cecodap, grupo de direitos das crianças, divulgou um estudo mostrando um aumento de 18% de suicídios cometido por menores de idade, em 2017. 

Por muito tempo, as taxas de suicídio de Mérida superaram a média nacional. A Corposalud diz que, em relação a 2015, o número de 2016 mais que dobrou: nove em cada 100 mil pessoas. Os números do ano passado ainda estão sendo compilados, mas analistas dizem que a polícia investigativa nacional, que registra as mortes, subestima a realidade. 

"Nenhum governo se beneficia da revelação de estatísticas que provam que seu país é um dos mais violentos do mundo", disse Gustavo Paez, que dirige a seção de Mérida do Observatório da Violência. 

Nem o departamento de polícia investigativa de Mérida nem o Ministério do Interior da Venezuela, que supervisiona a força, responderam a pedidos de entrevistas e solicitação de dados oficiais. 

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Mérida está localizada entre as montanhas perto da fronteira com a Colômbia. Os psiquiatras dizem que o índice de automutilação sempre foi elevado lá, em reação a uma cultura conservadora e fechada. Outros assinalam que o alcoolismo e traços genéticos acabam prevalecendo devido a casamentos interraciais. 

O governo de Maduro está piorando as coisas ao negar que haja um colapso no país, disse Sandia, chefe do departamento de psiquiatria.  “Assim, a pergunta de quem está sofrendo se torna: ‘Eu sou o único que está passando por isso? Se o problema não é o governo, se não é a situação do país, o problema sou eu, e se eu morrer, resolve tudo’”, disse Sandia. 

Adriana Rangel, 30, contadora, disse que seu pai se sentiu um fardo depois que uma rara doença autoimune terminou com sua carreira publicitária. Os dias de José Felix Rangel tornaram-se uma busca sem fim por remédios, e ele passava noites sem dormir em sua casa em Mérida, tocando violão na companhia de seu cachorro, Coco. "Ele ficou completamente desgastado pela situação no país", disse Adriana Rangel. O pai dela acabou se matando em julho de 2016.

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