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Numa cidade infestada por homens-bomba e guerrilheiros renegados, os americanos e o governo iraquiano adotaram uma medida inusitada para ajudar a fazer cumprir a lei: eles ergueram uma "zona verde legal", uma área altamente fortificada para abrigar juízes e suas famílias e assegurar os julgamentos de alguns dos presos mais perigosos.

O Complexo da Lei, como é conhecido pelo governo iraquiano, fica no bairro Rusafa, em Bagdá, e recebeu seu primeiro julgamento no mês passado.

Para autoridades iraquianas, trabalhar na área protegida é tão arriscado que freqüentemente requer que separem a si mesmos e a suas famílias da vida do lado de fora dos portões do complexo.

"Nosso trabalho é de fato um desafio", disse um juiz que vive no complexo com a mulher e filhos e cuja identidade é protegida pelos procedimentos de segurança da corte. "Faz três meses que eu não vejo Bagdá".

O primeiro caso da corte foi um militante sírio, Ramsi Ahmed Ismael Muhammed, conhecido pelo codinome de guerra Abu Qatada. Julgado por acusações de seqüestro, assassinato de reféns e outros ataques sangrentos, ele foi condenado na altamente vigiada sala de julgamentos do complexo e sentenciado à morte.

A utilidade da área fortificada, todavia, depende de mais de um simples caso de vulto. Ao final, irá depender da habilidade iraquiana de expandir a capacidade de julgar casos no complexo assim como de sua habilidade em aplicar a justiça igualmente para xiitas e sunitas.

A idéia de ajudar os iraquianos a estabelecer áreas legais protegidas é um elemento importante do plano de campanha americano preparado pelo general David H. Petraeus e por Ryan C. Crocker, o embaixador americano no Iraque. A esperança é que uma rede de complexos legais seja estabelecida em outras partes do Iraque, começando com a capital da província de Anbar, Ramadi, onde espera-se que o trabalho comece nos próximos meses.

O complexo Rusafa, cruzando o rio Tigre ao leste da Zona Verde do governo no centro de Bagdá, ainda está no seu início. Desde que a corte passou a ter audiências em junho, julgou 43 suspeitos, com uma média de um por dia.

Os Estados Unidos fornecem investigadores criminais, advogados e uma equipe paralela para treinar os iraquianos a administrar o complexo, que também inclui acomodações para testemunhas, investigadores, o Colégio de Polícia de Bagdá e um crescente número de detentos. A equipe americana de 55 pessoas inclui pessoal do Departamento de Justiça e militares, bem como empreiteiros, e existem apenas quatro investigadores iraquianos.

Mas outros 26 investigadores iraquianos estão sendo treinados pelo FBI, informou Michael F. Walther, um funcionário sênior do Departamento de Justiça dos Estados Unidos que comanda a Força Tarefa Lei e Ordem do Exército americano. E até março do ano que vem, a pequena corte onde Abu Qatada foi julgado será substituída por uma de US$ 11 milhões (cerca de R$ 22 milhões) construída com fundo de reconstrução americano.

A Corte Central Criminal de Bagdá deve conduzir cerca de 5 mil julgamentos nesse ano. O coronel Mark S. Martins, juiz da equipe do comando militar do General Petraeus, estima que uma vez que a nova corte de Rusafa esteja pronta, o complexo poderá abrigar um terço de todos os casos. O governo iraquiano arcará com o custo de proteger e operar o complexo no mês que vem e aprovou US$ 49 milhões (quase R$ 100 milhões) para a tarefa.

Apesar de seu status como uma área protegida para julgar os mais perigosos terroristas e guerrilheiros do Iraque, o Complexo da Lei não está imune ao diversos problemas que tumultuam o sistema legal do país. Entre eles está a superlotação de detentos que surgiu com as operações militares americanas e iraquianas. Para tentar reduzir o número de casos acumulados, detentos de prisões superlotadas de Kadhimiya e outras regiões foram transferidos para Rusafa, onde têm suas digitais tiradas e são submetidos a escaneamento de retina.

A capacidade da prisão de Rusafa, que começou com 2.500 lugares, vai se expandir para mais de 5 mil até o fim do verão. O principal prédio de detenção de Rusafa é mais limpo e menos malcheiroso do que muitas das prisões iraquianas, mas com 15 detentos em cada cela, as condições chegaram à sua capacidade máxima para os padrões internacionais.

Quando um repórter foi escoltado pelo diretor da prisão iraquiana por uma das recém-erguidas cadeias cobertas por tendas, a poucos minutos de carro dali, um detento que disse se chamar Dawood Yousef, de 46 anos, espremeu-se contra as barras e gritou que ele havia sido capturado em uma busca em Abu Ghraib e havia passado cinco meses em várias cadeias, incluindo um mês em Rusafa, sem nunca terem dito porque ele havia sido preso ou quando seu caso iria a julgamento. O coronel Martins anotou os detalhes.

Um investigador iraquiano no complexo de Rusafa levantou outra preocupação: tendências sectárias no Ministério do Interior. O invetigador, que não pode ser identificado por causa dos procedimentos de segurança do complexo, disse que funcionários do ministério transformaram-no em assunto de inquérito quando ele expressou sua intenção de casar-se com uma mulher sunita. "Que tipo de investigação é essa?", disse sem disfarçar o desprezo.

De acordo com os procedimentos no Iraque, a fase principal para recolher evidências acontece antes do julgamento quando um juiz de investigação questiona as testemunhas e prepara um relatório para a equipe de jurados avaliar. Os julgamentos propriamente ditos parecem relativamente breves para observadores familiarizados com o sistema americano. Com a excessiva segurança de Rusafa, não é fácil para os iraquianos irem aos julgamentos, que são então gravados em vídeo.

Num sistema legal que tem se baseado principalmente em confissões e muito pouco em investigações forenses na cena do crime, freqüentemente há alegações de tortura. Num julgamento na corte de Rusafa em 3 de julho, os juízes inocentaram quatro acusados de assassinato e estupro alegando que suas confissões pareciam ter sido feitas sob coerção. Relatórios médicos apontavam para uma possível tortura, mas faltavam evidências físicas. Os réus pasmos receberam o veredicto com enorme alívio, como mostrou a gravação em vídeo do julgamento.

Os americanos disseram que ficaram entusiasmados com a tenacidade com a qual os investigadores perseguiram Abu Qatada em particular. "Chamávamos ele de ‘o lobo’", disse um juiz que esteve envolvido na investigação do caso. "Não foi fácil fazê-lo falar."

Os investigadores se valeram principalmente de testemunhas, que foram levadas através de uma entrada especial nos escritórios da corte para que fossem entrevistadas confidencialmente. Seus testemunhos foram disponibilizados em um arquivo que apenas os juízes podiam ler. As evidências do arquivo foram suficientes para persuadir o júri composto por três jurados, um sunita e dois xiitas, a condenar Abu Qatada por dois crimes: posse de armas como parte de um grupo armado contra o Estado, que o levou a uma sentença de trinta anos, e por crimes de terrorismo, que foram considerados como um crime capital. Sua condenação e pena estão sob apelação.

Um teste mais rigoroso da imparcialidade do sistema acontecerá em breve quando um policial xiita irá a julgamento. Identificado somente como tenente coronel A, ele está sendo julgado pelas acusações de ter atacado e torturado dúzias de prisioneiros sunitas que estavam sob sua custódia em nome de uma milícia xiita.

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