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Fatiha, mãe e sogra de Bouchra Abouallal e Tatiana Wielandt |  Virginie Nguyen Hoang /  The Washington Post
Fatiha, mãe e sogra de Bouchra Abouallal e Tatiana Wielandt| Foto:  Virginie Nguyen Hoang /  The Washington Post

As vozes das crianças soavam pelo telefone e entravam na sala de estar de paredes cinzentas de Fatiha. 

"Quando vamos para a casa da vovó?", uma delas perguntava em segundo plano: "Você vem nos buscar?" 

No corredor, seis ganchos estavam fixados em uma fila na altura de crianças. Uma mochila pendurada em cada um deles. Subindo uma escadaria íngreme, lençóis com personagens do filme "Carros", da Pixar, estavam cuidadosamente arrumados nos beliches, aguardando o retorno das crianças. 

Mas Fatiha, uma belga cujos avós emigraram do Marrocos, não sabia quando seus seis netos – com idades entre 10 meses e 7 anos – voltariam. Eles estão entre as centenas de crianças nascidas de cidadãos europeus que foram lutar pelo Estado Islâmico. Agora que o califado entrou em colapso, e a retirada planejada dos EUA agravou a instabilidade regional, avós em toda a Europa estão pressionando para salvar crianças que em alguns casos conheceram apenas por fotos, em que olhavam do chão sujo do deserto. 

"Estamos esperando por eles, tudo está pronto para eles", disse Fatiha, 46 anos, em uma entrevista em sua casa, nos arredores de Antuérpia, em uma vila bucólica. Os pais das crianças estão mortos, e suas mães – a filha e a nora de Fatiha – enfrentariam sentenças de prisão se voltassem para a Bélgica. Então Fatiha se preparou para cuidar das crianças sozinha. Para proteger seus netos, ela falou sob a condição de que seu sobrenome não fosse publicado. 

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Para a Bélgica, a França e outros países que viram alguns de seus cidadãos seguirem em direção ao território do Estado Islâmico à medida que ele se expandia na Síria e no Iraque, a situação das crianças que podem reivindicar cidadania despertou questões que colocariam à prova o mais salomônico dos juízes. 

Governos estão debatendo quanto de responsabilidade eles têm pela segurança desses pequenos cidadãos, a maioria deles com menos de seis anos de idade, em uma região onde um novo conflito pode irromper. Os tribunais estão ponderando se os direitos das crianças se estendem ao seu retorno com seus pais do Estado Islâmico. E um difícil debate público está em andamento sobre se é possível confiar que os avós cujos filhos fugiram para o Estado Islâmico podem criar uma nova geração de forma diferente. 

Fatiha olha para as mochilas que arrumou para seus seis netos em sua casa em Ranst, Bélgica Virginie Nguyen Hoang / The Washington Post

As autoridades curdas que controlam o território no nordeste da Síria para onde foram muitas dessas famílias estimam haver mais de 1.300 crianças em seus campos de refugiados e de prisioneiros. A Rússia repatriou 27 crianças na semana passada. A França está considerando trazer de volta mais de cem combatentes – que enfrentariam julgamento – e suas famílias. Mas até agora, a maioria dos governos calculou que a desvantagem política de recuperar pais que possam representar riscos de segurança supera qualquer necessidade de trazer de volta os filhos. 

No caso de Fatiha, um juiz determinou que a Bélgica deve repatriar seus seis netos, junto com sua filha e sua nora – cidadãs belgas que se juntaram ao Estado Islâmico e agora querem voltar. As duas mulheres foram condenadas à revelia por se juntarem a uma organização terrorista e cada uma delas enfrentaria uma sentença de cinco anos de prisão quando chegassem em solo belga. Mas o juiz determinou que trazer as crianças para casa e deixar suas mães na Síria violaria os direitos humanos das crianças. 

Importante precedente

A decisão do dia 26 de dezembro estimulou uma resposta furiosa de líderes belgas, e o governo planeja recorrer no tribunal na quarta-feira (20). Autoridades esperam que qualquer precedente que seja definido vá afetar as decisões sobre outras famílias do Estado Islâmico. Pelo menos 22 crianças belgas estão em campos sírios, e acredita-se que mais de 160 estejam na zona de conflito. 

As objeções mais ruidosas são em relação ao retorno dos pais. 

"Não puniremos crianças pequenas pelos crimes de seus pais", disse a secretária de migração da Bélgica, Maggie De Block, em um comunicado no mês passado. "Elas não escolheram o Estado Islâmico. É por isso que queremos fazer esforços para trazê-las de volta ao nosso país. Para os pais, a situação é diferente. Eles mesmos escolheram deliberadamente virar as costas para o nosso país e até mesmo lutar contra ele, repetidamente”. 

"A solidariedade tem limites", disse ela. "A liberdade que você desfruta em nosso país para tomar suas próprias decisões também significa que você é responsável pelas consequências." 

Porta-vozes de De Block, o Ministério da Justiça e o primeiro-ministro da Bélgica se recusaram a fazer comentários para essa reportagem. Eles não confirmaram se o governo estava pagando a multa prescrita pelo juiz de 5 mil euros por criança por dia se não tivessem retornado até 4 de fevereiro. 

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Mesmo para as crianças, a simpatia belga tem limites. Muitas pessoas estão angustiadas. A Bélgica contribuiu com o maior número per capita de combatentes do Estado Islâmico para a Síria de qualquer nação da União Europeia, e o país continua marcado pelos ataques de 2016, quando cidadãos belgas com conexões com o Estado Islâmico alvejaram Bruxelas com atentados a bomba mortais. Discussões em talk shows e páginas de editoriais alimentaram o medo sobre o que as crianças possam ter aprendido com seus pais ou com campos de treinamento do Estado Islâmico, que visavam crianças de até 6 anos para doutrinação – embora existam poucas evidências de que qualquer um dos belgas tenha sido exposto. 

A Bélgica precisa proteger "essas crianças, bem como nossos filhos, e proteger os pais de nossos filhos", disse Nadia Sminate, legisladora do parlamento regional do norte da Bélgica sobre planos para trazer de volta as crianças. "Essas crianças foram criadas com diferentes valores e normas que nossos filhos. Não precisamos ser inocentes sobre isso. Eles viram as coisas mais cruéis do mundo”. 

Campo brutal

Quando Fatiha precisa se animar, ela assiste a um vídeo que sua filha mandou no último verão de seus netos cantando "Cabeça, Ombro, Joelho e Pé" em holandês – a primeira e única língua deles. 

Os dias dela são um amontoado de frustração. Uma visita da polícia, entrevistando-a novamente para descobrir se ela criaria os netos em um lar radicalizado. Um telefonema com seu advogado, que está lutando contra o governo belga para executar a ordem do juiz. Uma cansativa viagem de trem a Bruxelas ao lado de outras avós que estão pressionando os políticos a repatriar suas crianças. Uma busca ansiosa na internet sobre as condições das prisões em Deir Ezzour, na Síria. Ela estava preocupada que sua filha, nora e netos tivessem sido levados para lá depois que eles deixaram de fazer contato por mais de duas semanas no mês passado. 

Quando eles reapareceram, relataram que as autoridades curdas os vendaram e os transferiram não para Deir Ezzour, mas para um campo mais brutal do que o que estavam antes. Um dos netos de Fatiha tem diarreia crônica, e agora ele tem apenas um par de calças, disse sua mãe. Outro tem asma, mas não tem remédio. 

"Tudo continua piorando", disse Bouchra Abouallal, 25, filha de Fatiha, em entrevista ao The Washington Post por meio de um serviço de mensagens. "Eu continuo dizendo às crianças: 'Não tenha medo. Nada vai acontecer.' Mas eles não são bobos". 

Após a decisão judicial de dezembro, "nós dissemos aos nossos filhos: 'Estamos quase em casa. Estaremos lá em um mês'", disse Abouallal, com a voz embargada. 

Uma voz de garoto interrompeu. "Porque você está chorando?" 

"Agora são eles que estão me acalmando, e não o contrário", disse Abouallal ao The Post. 

Radicalização

Segundo o relato de Fatiha, os problemas de sua família começaram com o divórcio do pai de seus filhos em 2009, que os fez procurar apoio em outro lugar. 

A família praticava pouco a sua fé. Fatiha disse que eles praticavam o "Islã moderno". Mas seu filho mais velho, Noureddine Abouallal, se juntou a um grupo de Antuérpia chamado Sharia4Belgium – que mais tarde estaria ligado aos ataques terroristas de 2015 e 2016 em Paris e Bruxelas. Noureddine Abouallal raspou a cabeça e deixou crescer a barba. Ele e sua esposa – Tatiana Wielandt, que se converteu ao Islã para se casar com ele em 2010 – marcaram o nascimento do filho com uma única mensagem que incluía imagens de um combatente e uma arma. 

Bouchra Abouallal e seu marido também se juntaram à Sharia4Belgium. 

Em 2013, quando os ávidos adeptos do jihadismo estavam correndo em direção aos combates, os dois casais foram com seus bebês para a Síria. Os homens foram mortos dentro de um ano. Abouallal e Wielandt – cada uma grávida do filho de seus falecidos maridos, e cada uma com um filho mais velho a reboque – retornaram à Bélgica em 2014. O estado não procurou processá-las naquela época. 

Fatiha disse que estava furiosa por elas terem fugido, mas as deixou entrar em sua vida novamente. Abouallal e Wielandt se espremiam em uma cama de beliche. Dois meninos nasceram. Seus filhos pequenos entraram em uma escola na mesma rua. 

Certa vez, em um churrasco no quintal, um neto se escondeu embaixo de uma mesa quando um avião sobrevoou – talvez uma reação entranhada pelos atentados a bomba. Mas, fora isso, os meninos demonstravam poucos sinais do que haviam passado, disse Fatiha. 

Então, um dia em 2015, todos desapareceram, deixando Fatiha com uma casa cheia de brinquedos e uma marca de mão de Nutella na porta para o quintal dos fundos. 

"Eu senti como se tivesse sido esfaqueada nas costas. Eu senti que não queria ter nada a ver com eles", disse ela. Ela deixou a marca da mão. 

No final, ela decidiu que era melhor manter contato. As moças chegaram com seus filhos à fortaleza do Estado Islâmico de Raqqa. Elas se casaram novamente, mas seus novos maridos foram mortos na época em que Wielandt deu à luz seu terceiro filho. Depois que as forças ocidentais bombardearam a cidade no final de 2017, elas fugiram para território controlado por curdos e eventualmente para o campo de al-Hol, no nordeste da Síria. 

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Sua filha e nora pedem a Fatiha por lembretes sobre o que as escolas primárias belgas ensinam, para que possam tentar reproduzir as lições. Nos vídeos, as crianças mostram suas cambalhotas. Recentemente, Abouallal enviou um vídeo da mais nova neta de Fatiha, nascida em abril passado, usando sua primeira tiara. 

"Eu disse a elas que quero ver tudo enquanto eles crescem”, disse Fatiha. "Eu não quero perder nada." 

Mas enquanto o governo belga paralisa, e à medida que a situação de segurança na Síria se torna cada vez mais incerta, Fatiha e as outras avós estão ficando amarguradas. 

Nabila Mazouz – cujo filho foi pego no aeroporto enquanto tentava ir para a Síria – criou um grupo de apoio chamado Mothers 'Jihad para ajudar na luta pelo retorno dos belgas que passaram algum tempo no califado. 

"Eu entendo o governo. Eu entendo os problemas de segurança", disse Mazouz. "Mas eu garanto que eles vão voltar, e se eles voltarem daqui a 15 ou 20 anos, que tipo de estado de espírito eles terão quando voltarem?" 

Ela disse que depois de ser repetidamente rejeitada pelas autoridades belgas, ela agora entende melhor a insatisfação de seu filho. 

"Eu nunca me perguntei: 'Eu sou marroquina ou belga?' Eu dizia que era belga", disse ela. "Eu nasci aqui. Eu trabalho aqui. Eu pago meus impostos aqui. Mas agora eu me pergunto. Agora os pais entendem a perspectiva dos jovens adultos." 

Decisões erradas

Os defensores das crianças na Síria foram alvo de comentários raivosos. 

"Normalmente, todo mundo gosta do que fazemos", disse Heidi De Pauw, diretora da Child Focus, uma organização belga que faz parte do Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas nos Estados Unidos. Mas por pressionar as autoridades belgas neste caso, ela recebeu ameaças de morte e foi informada de que as crianças deveriam ser "afogadas como gatinhos". 

De Pauw e outros dizem que as crianças não devem ser condenadas porque seus pais tomaram decisões erradas. 

Um psicólogo que viajou à Síria em outubro para avaliar as crianças belgas nos campos, incluindo os netos de Fatiha, disse que apesar de tudo o que passou, as suas brincadeiras e o seu desenvolvimento eram relativamente normais. 

"Ficamos realmente surpresos com o desempenho dessas crianças", disse Gerrit Loots, psicólogo infantil da Universidade Livre de Bruxelas. "Uma vez que essas crianças tenham se adaptado, elas podem ir para a escola, elas podem estar com as outras". 

Loots disse que sua maior preocupação era como as crianças eram ligadas às mães. "Eles nunca passaram um dia separados", observou ele. 

Ele disse que levar as crianças de volta à Bélgica sem suas mães seria "psicologicamente desastroso". Reunir todos eles de volta, mesmo supondo que as mães fossem direto para a prisão, seria mais fácil de administrar, concluiu Loots. 

As mães dizem que querem voltar, mas estão prontas para ficar na Síria, se esse é o custo de levar seus filhos de volta à Bélgica e à segurança. 

"Eu não tenho nenhum problema com isso", disse Abouallal. "Eu só quero que meus filhos tenham uma vida segura e tenham uma vida normal, e que eles não os castiguem pelos erros que cometemos." 

Fatiha respirou fundo e enxugou uma lágrima, enquanto a filha descrevia as condições do novo acampamento. 

"Tente mantê-los ocupados", Fatiha pediu à filha. "Conte a eles uma história." 

"Eu te amo", a avó disse a todos, antes de desligar o telefone e cair no sofá.

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