
Na longa fila formada logo cedo, ontem, num posto de votação de Dhoki, bairro de classe média na região central do Cairo, as preferências eram tão variadas que explicavam o clima de total indefinição em torno da eleição presidencial no Egito.
A população é conservadora na alma, mas está dividida entre candidatos seculares e islamitas e sobre a identidade que o país deve assumir.
O primeiro de dois dias de votação da primeira eleição presidencial livre de sua história praticamente não teve incidentes.
Quinze meses após o levante popular que hipnotizou o mundo e levou à queda do ditador Hosni Mubarak, a histórica eleição se concentra no duelo entre ex-membros do regime e líderes islâmicos.
Os favoritos no campo secular são o ex-chanceler Amr Moussa e Ahmed Shafiq, último premiê de Mubarak. Entre seus detratores os dois são conhecidos como "fulul" (remanescentes, em árabe), símbolos da antiga ordem que o levante tenta enterrar.
Odiado pelos ativistas anti-Mubarak, Shafiq foi alvo de hostilidade após votar no Cairo. Manifestantes jogaram sapatos contra ele, obrigando o chefe da seção a suspender a votação por alguns minutos. "Criminoso", gritaram. "Abaixo o regime militar".
Governada por três ditadores militares desde sua fundação, em 1953, a república egípcia abre uma página cercada pelo desejo popular por um "pai da nação", desta vez manifestado num inédito processo democrático.
O declínio da economia no último ano e principalmente a insegurança pública sentida desde a queda de Mubarak estimulam esse desejo também entre os eleitores dos candidatos islâmicos.
Um deles, o independente Abdel Aboul Fotouh, conseguiu uma aliança improvável entre liberais e salafistas (muçulmanos ultraconservadores) e tornou-se um dos favoritos para chegar a um provável segundo turno, daqui a três semanas.
O outro candidato islamita mais cotado, Mohamed Mursi, conta com a lealdade de seus seguidores gerada pela formidável estrutura de assistência social da Irmandade Muçulmana, o maior movimento político do país.
A possível vitória de um candidato de orientação religiosa preocupa os liberais, principalmente depois que os islamistas conquistaram 70% do Parlamento nas eleições do início do ano.
"Se o presidente for um islamita haverá um desequilíbrio que empurrará o Egito para um extremo religioso que não corresponde à sua identidade natural", afirma o analista político Hisham Kassem.
IslãReligião está no foco do debate para definição do futuro Estado
A religião se transformou em um dos principais campos de batalha da corrida eleitoral à Presidência egípcia, na qual os candidatos se definem pelo nível de islamismo que influenciará na vida política do futuro Egito.
No foco das discussões, o modelo de Estado e a separação entre religião e política entram em destaque neste país árabe conservador, cuja última Constituição estabelecia, no artigo 2, que o islã é a religião do Estado e os princípios da "sharia" (lei islâmica) são a base da legislação.
A aplicação desta Carta Magna, de 1971, ficou suspensa a partir de 13 de fevereiro de 2011, após o triunfo da revolução que pôs fim ao regime de Hosni Mubarak. Diante da falta de um marco constitucional, a postura dos candidatos presidenciais sobre o assunto adquire uma maior relevância.
"Todos os candidatos utilizam a religião para ganhar votos, mas o grau do islã que cada um pretende botar em prática ao chegar ao poder é diferente", diz o especialista em assuntos religiosos Ibrahim Ishak.
Diante do papel privilegiado da religião no debate eleitoral, os eleitores deverão resolver até que ponto o islã deve ser a referência ou não para o novo presidente que construa o novo Egito.



