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Rebeldes se preparam para atacar forças do regime em Damasco | Diaa Al-Din/Reuters
Rebeldes se preparam para atacar forças do regime em Damasco| Foto: Diaa Al-Din/Reuters

Os números não mentem. No caso de uma guerra, os números também assustam, assombram, devastam. Após quatro anos de conflito interno na Síria, mais de 220 mil pessoas já foram mortas e 11 milhões dos 23 milhões de habitantes do país, expulsos de seus lares pelos combates — 3,9 milhões fugiram para países vizinhos. É a mais grave crise humanitária dos últimos 20 anos, segundo a ONU.

Hoje, quem nasce ou mora na Síria, vai morrer bem mais cedo: a expectativa de vida caiu de 75,9 anos, em 2010, para 55,7 anos, no final de 2014. “Esta, que é a maior crise humanitária na nossa era, deveria ter encorajado um clamor global por ajuda, mas, em vez disso, o auxílio está diminuindo”, afirmou o chefe do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (UNHCR), António Guterres.

O secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, criticou a falta de atuação das principais nações do mundo em realizar ações efetivas na Síria: “A comunidade internacional está dividida e incapaz de tomar uma ação coletiva”, afirmou em comunicado. “A população síria se sente cada vez mais abandonada pelo mundo. A perspectiva temível é de total colapso do país.”

Homem caminha por área devastada em Deir al-AsafirReuters

Endossando as críticas das Nações Unidas, um relatório elaborado por 21 agências de defesa dos direitos humanos em conjunto, intitulado “Fracasso em torno da Síria”, afirma que ambas as partes do conflito - o governo do presidente Bashar al-Assad e as forças opositoras - ignoraram as três resoluções que pediam acesso para assistência humanitária. E critica a incapacidade de os Estados-membros da ONU em garantir a aplicação das medidas para proteger os civis, afirmando que a comunidade internacional é em parte responsável pelo “ano mais sombrio” no país.

“As resoluções e as esperanças que estas traziam se converteram em algo vazio de sentido para os civis sírios. Foram ignoradas ou menosprezadas pelas partes beligerantes, por outros países-membros da ONU e inclusive por membros do Conselho de Segurança”, afirma o documento. “Não vejo o Conselho de Segurança tão inerte desde a ampliação da guerra no Iraque, em 2003. Acho que eles não estão dispostos”, afirmou o chefe do Conselho Norueguês de Refugiados, Jan Egeland, que participou da redação do levantamento.

Menos doações

O relatório acusa diretamente as forças do regime, e também os rebeldes, de atacar infraestruturas civis, incluindo escolas e hospitais, e de limitar a chegada de ajuda humanitária. Segundo o texto, há 7,8 milhões de sírios vivendo em zonas catalogadas pela ONU como “de difícil acesso” para a entrega de assistência, mais que o dobro de 2013. De acordo com a Human Rights Watch, nesse último quarto ano do conflito, as forças do governo lançaram 1.450 ataques indiscriminados e usaram, com frequência, bombas-barril, que são carregadas com explosivos e pedaços de metal e lançadas de helicópteros.

O financiamento privado para a crise síria “sempre foi baixo”, seguindo Nigel Pont, da ONG Mercy Corps. Ele explica que, ao contrário dos desastres naturais, as causas geopolíticas complexas da crise síria não geram a mesma resposta emocional de potenciais doadores. Agora, por conta dos impedimentos, as doações para as agências caíram bastante, enquanto a necessidade só aumenta.

Em 2014, somente 57% dos fundos necessários para a entrega de material humanitário foram recebidos, frente a 71% em 2013. De acordo com Egeland, que já foi chefe da agência de ajuda humanitária das Nações Unidas, a ONU vai precisar de US$ 8,4 bilhões em ajuda para os civis.

“Isso representa a sexta parte do custo dos últimos Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi (na Rússia). Como é possível que a Rússia possa custear esses jogos e não importantes contribuições para esta operação?”, questiona Egeland, criticando o governo de Moscou, aliado de Damasco e que já fez ameaças de veto no Conselho de Segurança contra medidas mais enérgicas na Síria.

A guerra civil começou em março de 2011, após manifestações pacíficas contra o governo de Assad, que revidou com uma violenta repressão. O resultado foi a explosão de um conflito interno que vem devastando o país, e deixando vazios que são ocupados pelos extremistas do grupo Estado Islâmico (EI).

Soldados estrangeiros em zona de combate ao Estado IslâmicoReuters

Os jihadistas já tomaram vastas regiões no Norte do país, onde proclamaram um califado, que se estende pelo Iraque. Se a Rússia é aliada do presidente sírio, os Estados Unidos vivem um dilema, já que as forças leais a Damasco também combatem o EI. Além disso, há o caráter sectário do conflito, uma vez que países sunitas, como Arábia Saudita, Turquia e Qatar, apoiam a oposição síria, de maioria sunita, enquanto o Irã e o grupo político fundamentalista xiita Hezbollah, no Líbano, apoiam o governo alauita sírio. Enquanto isso, Assad segue firme e forte no poder.

O conflito já deixou mais de 11,5 milhões de desalojados: 3,9 milhões fugiram da Síria, a maioria para Turquia (1,7 milhão), Líbano (1,2 milhão), Jordânia (625 mil), Iraque (245 mil) e Egito (136 mil). Mais de 7,6 milhões de pessoas vagam pelo próprio país, muitas delas com as casas e vidas destruídas pela guerra.

A família de Mohammed Bakkar, de 44 anos, se dividiu em 2013. Ele e o pai, Ahmar, de 80 anos, foram para o Líbano. “Meu sofrimento é duro. Não vejo minha família há dois anos e, às vezes, temo que nunca voltarei a vê-los”, conta, em lágrimas, Bakkar, ao lado do pai, numa escola da pequena cidade de al-Rama. “Não sei como vivemos. Não temos comida ou bebida. Cada dia que passa é como um ano.”

A mulher de Bakkar, Hamida, duas filhas adolescentes e dois filhos pequenos cruzaram para a Jordânia clandestinamente com a mãe de Bakkar. “Então me dei conta de que não os veria nos próximos anos”, conta Hamida, na cidade jordaniana de Azraq.

Zona de pobreza

As crianças estão entre as maiores vítimas do confronto. Segundo o Unicef, 14 milhões de meninos e meninas - dois milhões estão entre os refugiados - passam por dificuldades na Síria e no vizinho Iraque, também afetado por uma luta sectária. Além de expostas à brutalidade do conflito, muitas vezes são recrutadas para o combate. “Violência e sofrimento não serão apenas cicatrizes do passado, mas vão moldar o futuro dessas crianças”, afirma Anthony Lake, diretor do Unicef.

Crianças sírias em campo de refugiados na JordâniaMuhammad Hamed/Reuters

Antes do conflito, 2.500 médicos trabalhavam em Aleppo, a segunda maior cidade do país. A ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) estima que restam menos de cem na cidade. A própria MSF foi forçada a diminuir as atividades na Síria, depois que cinco de seus membros foram capturados pelo EI. Segundo estimativas, cerca de 600 médicos morreram no conflito.

Além das vidas perdidas, a economia do país contabiliza perdas de US$ 200 bilhões, o que levou 80% dos sírios para a zona de pobreza, de acordo com um relatório do Centro Sírio para Investigação de Políticas, respaldado pela ONU. Quase três milhões perderam o trabalho, num efeito cascata que deixou 12 milhões de pessoas sem sua fonte primária de renda. A taxa de desemprego subiu de 14,9%, em 2011, para 57,7%, hoje.

O país vive literalmente nas trevas, como provam imagens de satélite divulgadas pela coalizão #ComASíria, formada por 130 ONGs: o número de luzes visíveis no país à noite caiu 83% desde março de 2011. “Passo três quartos do dia chorando. Meu coração arde de tanto sentir falta dos meus filhos e netos”, finaliza o ancião Ahmar Bakkar.

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