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O conclave que começa nesta quarta-feira (7) vai escolher o novo líder da Igreja Católica, após a morte do papa Francisco, que ocupou o cargo por doze anos, desde a renúncia de Bento XVI. Com mais de 1,3 bilhão de fiéis e presença em quase todos os países, a Igreja é conduzida por uma figura que, embora essencialmente religiosa, também exerce influência diplomática, política e social.
Além de comandar a Igreja, o papa é o chefe do Estado do Vaticano, que mantém relações diplomáticas com 184 países e tem assento permanente na Organização das Nações Unidas (ONU).
No campo espiritual, o papa é a autoridade máxima em matéria de fé e moral, e publica documentos como encíclicas e exortações apostólicas, que definem diretrizes doutrinárias e pastorais. A forma como esses ensinamentos impactam a vida interna da Igreja e a formação da consciência dos fiéis representa, em grande parte, o núcleo de sua influência no mundo atual — mais decisiva, inclusive, do que eventuais impactos em temas políticos.
"O poder temporal direto diminuiu consideravelmente desde a era medieval ou mesmo moderna, quando os papas exerciam autoridade política direta sobre os estados pontifícios e influência determinante sobre monarcas católicos. No entanto, paradoxalmente, sua capacidade de articular posições morais e sociais com alcance global aumentou devido aos meios modernos de comunicação", afirma Jeovah Simões, doutorando em Teologia pela PUC-RJ.
Ele cita um fato histórico relativamente recente que mostra como esse tipo de poder é relevante. "Um exemplo paradigmático desta influência é a encíclica Humanae Vitae [1968] de Paulo VI sobre a regulação da natalidade, que continua sendo referência doutrinal na compreensão católica da sexualidade e procriação", diz. A publicação dessa encíclica coincidiu temporalmente com o início da revolução sexual e serviu como contraponto às suas ideias, reafirmando a visão cristã da sexualidade.
"Este documento demonstra como o magistério papal, mesmo enfrentando resistência cultural significativa, estabeleceu princípios morais que continuam formando a consciência e a prática pastoral de muitas comunidades católicas, mesmo quando sua aplicação concreta passa por processos de discernimento pessoal", acrescenta.
Mesmo quando não são absorvidos plenamente por todas as comunidades, os pronunciamentos dos papas e seus ensinamentos sobre temas morais por meio de documentos ainda têm grande influência sobre o campo da formação dos católicos, o que acaba impactando a cultura e, por extensão, a política.
Para Simões, "os documentos do magistério sobre família e matrimônio continuam informando programas de preparação matrimonial, catequese familiar e formação de agentes pastorais em escala global. Desta forma, mesmo quando a recepção prática dos ensinamentos é desigual, seu impacto formativo permanece substancial".
Esta influência, segundo o especialista, não deve ser medida apenas por sua capacidade de determinar comportamentos imediatos, mas também por sua contribuição para manter viva "uma visão antropológica e ética alternativa aos paradigmas culturais dominantes", explica.
"Católicos self-service" podem ser um desafio para a influência do papa
Um dos empecilhos atuais à influência do papa em temas morais e sociais pode ser a fragmentação interna dentro da Igreja, especialmente em um contexto de redes sociais, em que cresce o número de grupos e lideranças que pretendem interpretar a fé de forma independente, muitas vezes se distanciando do magistério papal.
"Aqui no Brasil, por um tempo, falava-se em 'católico self-service', que é o católico que escolhe a parte em que ele quer acreditar, que ele quer obedecer, e o resto ele finge que não existe ou desobedece sem nenhum sentido de culpa", afirma Márcio Campos, colunista da Gazeta do Povo e correspondente especial em Roma para o conclave.
Como antídoto a essa tendência, Simões destaca a importância, dentro da Igreja, da “hermenêutica da continuidade”, expressão usada pelo papa Bento XVI que define o critério para garantir que o desenvolvimento doutrinário da Igreja permaneça fiel à sua tradição. Quando esse princípio é ignorado, afirma, o papel do papa como referência de unidade fica enfraquecido.
"Quando predominam visões que se afastam da hermenêutica da continuidade – seja pela relativização da autoridade tradicional, seja pela rejeição seletiva do magistério contemporâneo – ocorre um comprometimento substancial da função primacial do Romano Pontífice como princípio visível de unidade eclesial. Esta fragmentação na recepção do magistério não apenas compromete a eficácia do ministério petrino como serviço à comunhão, mas também fragmenta a própria autoconsciência eclesial, gerando um fenômeno que poderia ser caracterizado como uma atomização interpretativa no interior do catolicismo", afirma.
Para ele, esse cenário exige que o magistério da Igreja diferencie com clareza entre interpretações legítimas da fé e rupturas com a doutrina. "A Igreja Católica, em sua concepção teológica fundamental, acolhe a pluralidade legítima de expressões da fé e as tensões dialéticas próprias do mistério cristão, mas não pode integrar rupturas que comprometam a unidade substancial do Corpo de Cristo manifestada na comunhão hierárquica com o sucessor de Pedro", diz Simões.
O teólogo acrescenta que tanto as linhas progressistas quanto as tradicionalistas, "quando levadas a extremos hermenêuticos, comprometem profundamente a natureza do primado como ministério a serviço da unidade". "A Igreja Católica, em sua concepção teológica fundamental, acolhe a pluralidade legítima de expressões da fé e as tensões dialéticas próprias do mistério cristão, mas não pode integrar rupturas que comprometam a unidade substancial do Corpo de Cristo manifestada na comunhão hierárquica com o sucessor de Pedro", conclui.
Em questões políticas, "soft power" do pontífice ainda é importante
Simões ressalta que, em questões de ordem política, embora a influência do papa não seja direta, ainda há espaço para o exercício do chamado "soft power" (poder brando) – que, no caso do papa, o teólogo define como "a capacidade de articular princípios éticos fundamentais que informam o discernimento político e social".
Em 2006, em discurso no Congresso do Partido Popular Europeu o papa Bento XVI definiu como se dá esta influência: "No que se refere à Igreja Católica, o interesse principal das suas intervenções no campo público é a tutela e a promoção da dignidade da pessoa e, por conseguinte, ela chama conscientemente a uma particular atenção aos princípios que não são negociáveis", afirmou.
No pontificado de Francisco, por exemplo, encíclicas como Laudato Si', sobre meio ambiente, e Fratelli Tutti, sobre fraternidade, repercutiram até mesmo fora da Igreja.
"Em termos gerais, o papado ainda é uma referência moral. Tanto que quando o papa lançou a encíclica Laudato Si', a comunidade científica em geral comemorou, porque o papa estava falando da crise ambiental, e meio alinhado com o discurso dos cientistas que estudam este assunto", afirma Márcio Campos.
No plano diplomático, os pontífices costumam atuar como mediadores e defensores da paz. João Paulo II teve papel central na queda do comunismo. Francisco tentou exercer sua influência para ajudar a buscar soluções para a guerra entre Rússia e Ucrânia e as tensões em Gaza.
"Talvez ele [o papa] não tenha mais aquele poder de mediação que já teve no passado de realmente definir, mediar um conflito inteiro. Talvez a coisa esteja se deslocando para uma área mais humanitária. Por exemplo, no caso da Ucrânia, a Santa Sé não tentou costurar um acordo de paz amplo como o Trump está tentando. Mas houve muitos esforços, especialmente na questão das crianças ucranianas que foram raptadas e levadas pra Rússia", observa Campos.
Além de exercer seu "soft power" em questões políticas globais, o novo papa também precisará cuidar da política interna do Vaticano, onde chefiará quase 5 mil funcionários.
Durante seu papado, Francisco promoveu reformas inéditas nesse sentido, especialmente do ponto de vista financeiro, criando uma Secretaria para a Economia e impulsionando auditorias para favorecer a transparência. A Santa Sé ainda enfrenta déficit orçamentário.
"O Vaticano, no ano passado, publicou um relatório mostrando que tinha rombo na previdência. Um pouco antes de ir para o hospital, o papa criou um departamento específico do Vaticano para tentar incrementar as arrecadações. Está faltando grana mesmo. Internamente, o principal desafio é reequilibrar as finanças do Vaticano", diz Campos.



