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Navio da Maersk Line, pioneíra no transporte de contêineres no Ártico | Divulgação/Maersk Line
Navio da Maersk Line, pioneíra no transporte de contêineres no Ártico| Foto: Divulgação/Maersk Line

Sob um céu parcialmente ensolarado e temperaturas relativamente amenas, o Venta Maersk navegou pelo Estreito de Bering na semana passada e começou uma viagem moderna de descobrimento que pode representar uma transformação para o transporte marítimo global e para o ambiente ártico. 

O Venta é um grande, novo e caro navio da frota da gigante dinamarquesa Maersk e é o primeiro navio porta-contêineres do mundo a tentar a Rota do Mar do Norte, a lendária Passagem do Noroeste que vai do Alasca até a Escandinávia, passando pela desolada costa siberiana da Rússia. 

Agora, é possível o trânsito marítimo entre julho e outubro por causa do rápido e, para muitos, profundamente inquietante recuo do gelo do Ártico devido a profundas mudanças climáticas, uma tendência que se amplificada nos pólos Norte e Sul. 

A Rússia, a China e os interesses comerciais estão entre aqueles que têm grandes esperanças de que a rota marítima do Norte possa se tornar uma alternativa ao Canal de Suez, reduza o tempo de transporte e diminua os custos de combustível para os navios que viajam entre os portos da Europa, Ásia e Américas. 

A empresa russa Rosatom, que administra a maior frota de quebra-gelo movida a energia nuclear do mundo, se vangloria de que a rota "não tem filas nem piratas", uma alusão à ameaça representada pelos piratas africanos no Golfo de Aden nos últimos anos. 

Desafios e transformação 

Mas à medida que o ritmo do tráfego no Ártico se acelera, um ambiente que hoje é predominantemente imaculado e escassamente povoado - por baleias e morsas, cientistas e povos indígenas, tripulações de quebra-gelo e trabalhadores do petróleo - pode ser transformado. 

E a Rússia e seus concorrentes podem entrar em desacordo sobre quem controla o quê e onde. "O Ártico se tornou um objeto de interesse territorial, de recursos e estratégico-militar para vários Estados", alertou o ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, no mês passado. "Isto pode levar ao aumento do potencial de conflito nesta região". 

Décadas atrás, a calota polar era um tabuleiro de xadrez da Guerra Fria para duelos de marinhas e jogos de guerra submarinos. A próxima luta será mais comerical. 

Imagens de satélite com lapsos de tempo mostram o gelo marinho girando no sentido horário ao redor do Polo Norte, estendendo-se no inverno e encolhendo no verão, ano após ano. É claramente perceptível que a extensão do gelo no verão vem encolhendo, em um ritmo de 13,4% por década, segundo a NASA. 

Olhando para o futuro, Walt Meier, cientista sênior do National Snow and Ice Data Center no Colorado (EUA), disse que os modelos climáticos sugerem verões livres de gelo no Ártico em algum momento entre 2050 e 2070, com alguns cenários prevendo uma mudança mais rápida como em 2030. 

Como seria isso visto de um satélite? "Um oceano azul sobre o Pólo Norte em setembro", disse Meier. 

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Isto é extremamente angustiante para muitos que se preocupam com o futuro da vida no planeta. Mas esse "novo Ártico" pode ser um benefício para alguns, começando pela Rússia. 

A rota do Mar do Norte, por causa de sua localização ao longo dos mares pouco profundos da Sibéria, fica livre do gelo mais cedo e permanece livre de gelo por mais tempo que outras áreas do Ártico. Grande parte da rota passa pelas águas ao longo da zona econômica exclusiva da Rússia. Os navios que buscam essa passagem devem solicitar permissões e autorizações da Administração da Rota do Mar do Norte da Rússia. Os russos também cobram taxas pela navegação e pela assistência para quebrar o gelo. 

Pode ser uma passagem perigosa. "Se você estiver em apuros, estará muito longe da civilização", disse Mika Hovilainen, gerente sênior de projetos da Aker Arctic Technology, que projeta navios com sistemas de propulsão rígidos suportar o impacto do gelo marinho flutuante. Ele chamou as condições no Ártico, mesmo no verão, de "extremas". 

Mas a principal vantagem é o tempo. Um navio que vai da Coréia do Sul para a Alemanha, via Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, levaria em média 46 dias, segundo o site searoutes.com. A mesma viagem pelo canal de Suez seria de 34 dias. A viagem pela Rota do Mar do Norte: 23 dias. 

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Centenas de navios menores já estão por ali. Alguns cliques no site marinetraffic.com (que monitora o trafego marítimo) mostram petroleiros, navios de carga, navios de pesquisa nesssa região. Até mesmo alguns navios de cruzeiro estão navegando por estas águas neste verão. A companhia chinesa de navegação Cosco está a caminho de completar uma dezena de rotas neste ano em cargueiros. 

O tráfego de contêineres e o de petroleiros são o coração e o pulmão na economia mundial. E este é um grande momento para ambos no Ártico. 

A Rússia enviou, em julho, a primeira carga de gás natural liquefeito de sua nova instalação em Yamal (acima do Círculo Polar Ártico), avaliada em US$ 27 bilhões, ao porto chinês de Rudong, completando a viagem inaugural em 19 dias no mar. É 16 dias a menos do que via Canal de Suez. Os envios de gás de Yamal para a Europa se tornaram rotineiras no início deste ano. 

Teste para navios

O próximo teste é como se sairá um navio moderno com capacidade para 3.600 contêineres, como o Venta Maersk. No primeiro trajeto histórico pela Rota do Mar do Norte, o Venta está transportando uma carga de eletrônicos colocados a bordo em Busan, na Coreia do Sul, e peixes congelados embarcados no porto russo de Vladivostok. A embarcação está programada para parar em Bremerhaven, na Alemanha, e concluir sua viagem na Rússia, em São Petersburgo, no final de setembro. 

A linha de navegação destaca que este é um "teste marítimo único", uma viagem exploratória para observar, aprender e coletar dados científicos, disse Janina von Spalding, porta-voz da Maersk. 

Há pilotos russos a bordo que ajudam a navegar além os perigos do gelo flutuante. O gelo do primeiro ano tem geralmente 90 cm de espessura, mas em alguns anos, impulsionado pelo vento e pela correnteza, as pilhas de gelo mais antigo se acumulam ao longo das ilhas russas, podendo chegar a seis metros de altura. 

Quatro navios quebra-gelo movidos a energia nuclear russos estão prontos para ajudar o Venta, se for preciso. Eles são rotineiramente utilizados para quebrar o gelo e conduzir comboios de navios entre o outono e a primavera. 

Malte Humpert, fundador do Arctic Institute, que monitora o tráfego marítimo no pólo, alertou que o ambiente continua imprevisível. "A força vital do transporte de contêineres é o tempo. Você reserva um lugar em um terminal portuário hora a hora", disse ele, como parte dos sistemas de entrega just-in-time da economia global. 

Poucas semanas atrás, um navio de passageiros no Ártico canadense encalhou e os passageiros tiveram que ser evacuados. Em junho, o gelo ainda sufocou o Golfo de Ob, na Rússia, paralisando os navios, de acordo com o Barents Observer, um site de notícias voltado para a região do Ártico 

O derretimento adicional esperado para os próximos anos não necessariamente ajudará, disse Andrey Todorov, especialista em questões do Ártico do Instituto Primakov de Economia Mundial e Relações Internacionais, em Moscou. "Mesmo que o gelo continue a diminuir, isso não significa que as condições se tornarão mais fáceis para os navios comerciais. Haverá um risco ainda maior de que grandes pedaços flutuantes de gelo possam se soltar do bloco e colidir", disse ele. "Navios mais reforçados para condições de gelo custam muito.” 

Os riscos

Há preocupações que vão além dos perigos para as embarcações e o que transportam. Animais terrestres e marinhos podem estar expostos a novas ameaças, não só pelo aumento do transporte marítimo, mas também pela extração de petróleo, gás e minerais ao longo da costa da Sibéria, que abriga uma infinidade de reservas inexploradas. 

Os ambientalistas não estão tão preocupados com a possibilidade de um navio atingir um urso polar, mas temem possíveis vazamentos já que os navios-tanque carregados de petróleo e gás operam em condições extremas, especialmente no inverno. Derramamentos em água fria, um dos quais envolveu o Exxon Valdez em Prince William Sound, no Alasca, em 1989, levam décadas para se dispersar e limpar. 

Além disso, o desenvolvimento de portos, o uso de combustíveis pesados e o aumento da poluição causam preocupação - especialmente o "carbono negro" emitido pelos navios e pela indústria. A poluição em forma de fuligem, quando espalhada pelo gelo, acelera seu derretimento, já que as superfícies escuras absorvem, em vez de refletir, o calor do sol. 

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A geopolítica também pode ficar um pouco confusa no Ártico. Antes que começasse o grande derretimento, a região era de grande interesse para os exploradores, cientistas e populações locais. Agora é visto como um campo de petróleo e uma via aquática, com Rússia, Dinamarca, Canadá, Noruega e Estados Unidos reivindicando direitos - e outros países, como a China, lutando para pescar, perfurar e atravessar. A ver o que a região se tornará: se um campo comum global ou um ponto de tensão. 

Em depoimento perante o Senado, neste ano, o então chefe do Comando do Pacífico dos EUA, o almirante Harry Harris - agora na reserva e servindo como embaixador dos EUA na Coréia do Sul - disse: "De particular interesse são os esforços russos para construir presença e influência no Alto Norte. A Rússia tem mais bases ao norte do Círculo Ártico do que todos os outros países juntos, e está construindo mais com capacidades claramente militares " 

Laurence C. Smith, professor de geografia da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que modelou cenários futuros de tráfego marítimo no Ártico, disse que a Rota do Mar do Norte, no curto prazo, pode ser um nicho de mercado. Mas ele se questiona: "Imagine um tempo em um futuro não tão distante, quando o gelo deixar de ser o fator limitante".

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