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Pós-terremoto

Muitos países doadores não enviaram recursos para reconstruir o Haiti

Ricardo Seitenfus, representante da Organização dos Estados Americanos (OEA)para o Haiti

"O Haiti não é uma ameaça à paz, nem internacional nem regional. É um país desesperado, com uma miséria que atinge mais  de 50% da população." | Universidade Federal de Santa Maria/RS
"O Haiti não é uma ameaça à paz, nem internacional nem regional. É um país desesperado, com uma miséria que atinge mais de 50% da população." (Foto: Universidade Federal de Santa Maria/RS)

No próximo dia 12 de janeiro, o terremoto no Haiti completa 1 ano. Às vésperas da data, a mobilização internacional em prol do país está sendo duramente criticada pelo diplomata brasileiro Ri­­cardo Seitenfus, representante da Organização dos Estados Ameri­­canos (OEA) para o Haiti.

Em entrevista recente ao jornal suíço Le Temps, Seitenfus ques­­tionou o papel da Missão de Paz da ONU, a responsabilidade dos países doadores, o desempenho das organizações não governa­­men­­tais (ONGs) e a influência dos Es­­tados Unidos na gestão da crise. Dias depois, o diplomata ganhou férias compulsórias e teve de re­­tornar ao Brasil. Ele mesmo acredita que não retornará ao cargo na OEA, que ocupa há dois anos e cujo mandato expira em março.

De Brasília, onde estava para acompanhar a posse da presidente Dilma Rousseff, Seitenfus concedeu entrevista por telefone à Gazeta do Povo. Leia abaixo:

Os organismos internacionais es­­tão conseguindo gerir apropriadamente a reconstrução do país?

Eu creio que não. O auxílio de ur­­gência foi simplesmente extraordinário, apesar de nos primeiros dias os socorros terem alcançado essencialmente os estrangeiros que estavam soterrados. Os haitianos ficaram por conta própria, tentando resgatar seus familiares com as mãos nuas. Mas depois que se constatou a destruição de dezenas de milhares de edificações e 1,5 milhão de pessoas desabrigadas, se organizou uma ajuda internacional com a ajuda das ONGs e dos governos. Foi um trabalho muito positivo no sentido de dar a eles alimentação, remédios, água, e isso continuou assim nos primeiros meses.

No entanto, a fase da reconstrução ainda não começou. No dia 31 de março de 2010, em Nova York, os países prometeram doações de até centenas de milhões de dólares. A reconstrução das áreas atingidas demandaria US$ 11 bilhões, dos quais US$ 5 bilhões nos dois primeiros anos. Esses recursos não chegaram.

Por solicitação da comunidade internacional, foi montada uma Comissão Provisória para a Re­­construção do Haiti, da qual eu fiz parte representando a Or­­ga­­ni­­za­­ção dos Estados Americanos (OEA). Fizemos análises, mas eram apenas intenções de projetos porque não haviam recursos financeiros para implementá-los.

Muito dinheiro foi destinado ao Haiti via ONGs, mas que ficaram com as organizações. Há um estudo norte-americano mostrando que somente 27% dos recursos doados pelo mundo chegaram ao país. Houve uma espécie de contradição: o mundo se mostrou tão generoso, mas as doações ficaram no meio do caminho e o povo haitiano não vê a sua situação mudar.

O Estado brasileiro foi um dos que mais se comprometeram a ajudar, tanto com recursos fi­­nancei­­ros quanto de infraestrutura e pes­­soal. O Brasil está honrando suas promessas?

Acho que o Brasil, em termos fi­­nanceiros, não foi o estado que mais se comprometeu. Entre­­tan­­to, na contabilidade da Comissão Provisória havia depósitos de so­­mente dois países: da Noruega e do Brasil, somando US$ 150 mi­­lhões. O Brasil, não somente com apoio orçamentário, mas também com dinheiro vivo para a re­­cons­­trução, honrou o que havia prometido. Mas outros possíveis doadores não fizeram o depósito.

Em declarações recentes, o senhor criticou a presença da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) no processo de pacificação após a queda do presidente Jean-Bertrand Aris­­ti­­de.

Mas, com o terremoto, a presença das forças de paz não passou a ser obrigatória?

Durante o segundo semestre de 2009, nós estávamos analisando modelos de saída de crise, porque nós sentimos que a situação estava muito melhor em relação àquilo que havíamos encontrado em 2004 (quando iniciou a crise política). No entanto, o terremoto de 12 de janeiro de 2010 jogou por terra essa projeção.

Antes do desastre, a presença das tropas era vista como uma missão de paz, talvez com demasiada in­­sistência na questão da segurança e com pouco envolvimento na questão socioeconômica. A partir do terremoto, essa constatação (de que o país tinha graves problemas sociais) se tornou flagrante. Tor­­nou-se algo inquestionável. Po­­rém a comunidade internacional não soube fazer uma avaliação pós-terremoto, para dar um outro rumo à sua participação no Haiti. E pior: enviou mais 2 mil soldados. O divórcio que existia entre as necessidades do país e o perfil de uma operação de paz se tornou ainda maior depois do de­­sastre. A contradição é ainda mais gritante.

A minha sugestão sempre foi pa­­rar um pouco, fazer um balanço do trabalho realizado e analisar o que é necessário, dialogando com o governo haitiano. E propor um outro modelo, que não fosse a Minustah.

O Haiti não é uma ameaça à paz, nem internacional, nem regional. É um país desesperado, com uma miséria que atinge mais de 50% da população. Em vez de ser analisado pelo Conselho de Se­­gurança, o Haiti deveria ser responsabilidade do Conselho de De­­senvolvimento Econômico e Social da ONU.

O sr. afirmou que o país "paga pela sua proximidade com os EUA". O país está sendo usado co­­mo campo de operações de disputas geopolíticas?

A história de todos os países está atrelada à sua geografia, e com o Haiti não é diferente. O país foi co­­­­lônia norte-americana de 1917 a 1934, e os EUA sempre tiveram uma influência muito forte no país caribenho. É necessário convencer Washington de que é preciso outro enfoque para as questões haitianas. Isso, baseado na experiência histórica do Haiti e as difíceis relações com os países que o circundam.

O Caribe é um mar de influência da grande potência norte-americana desde o século 19, e especialmente a partir da 2.ª Guerra Mun­­dial. De certa forma, o Haiti não somente é uma vítima de sua geografia, mas também de um Caribe muito dividido, com Cuba de um lado e os países pró-americanos do outro.

Esse corte deve ser levado em consideração. A imprensa brasileira e internacional não fala muito disso, mas há uma presença cubana extraordinária no Haiti, com 1,3 mil médicos. Uma das sugestões que eu fiz como membro da Co­­missão Provisória para a Re­­cons­­trução do Haiti foi convidar Cuba e a República Dominicana para integrarem a comissão, ao menos como observadores.

No final de dezembro, tivemos a confirmação de que o segundo turno das eleições foi adiado. Politicamente, o Haiti caminha para a estabilidade após o fim do processo, ou mesmo depois de eleições legitimadas o país vai continuar com debilidade institucional?

Encontrar o caminho da democracia está sendo um parto muito doloroso para o povo haitiano. O Haiti está nessa busca desde 1986, o que levanta uma questão essencial: a democracia pode ser im­­plantada com apoio externo ou deve ser uma vontade coletiva interna? É uma série de questões que o pequeno Haiti, que em princípio é marginal no sistema internacional, está emparelhado com Iraque e Afeganistão. São casos distintos, mas é também o desafio de implantar o sistema democrático. Será que um país com uma exclusão social e uma miséria tão aguda consegue adotar este regime? São várias perguntas que o Haiti coloca a nós, observadores internacionais. Não se pode imaginar um país estável politicamen­­te se 70% de sua população não tem os bens mínimos de sobrevivência.

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