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Mulheres de um grupo de protesto hindu realizam uma greve de fome para exigir que o Escritório Central de Investigação assuma a investigação do assassinato de uma jovem muçulmana, supostamente por um grupo de homens hindus. | SAURABH DAS/NYT
Mulheres de um grupo de protesto hindu realizam uma greve de fome para exigir que o Escritório Central de Investigação assuma a investigação do assassinato de uma jovem muçulmana, supostamente por um grupo de homens hindus.| Foto: SAURABH DAS/NYT

Não houve empatia pela menina de oito anos de idade; era como se ela não fosse um ser humano, como se sua vida só servisse de alvo. Os investigadores da polícia dizem que uma gangue de jovens hindus a escolheu especificamente para aterrorizar sua comunidade de nômades muçulmanos. Eles foram acusados de raptá-la no campo, drogá-la e prendê-la por três dias em um templo, onde a espancaram, estupraram e estrangularam no final.

 Enquanto os protestos irromperam em cidades por toda a Índia, e até mesmo internacionalmente, em Rasana, a aldeia no estado de Jammu e Caxemira onde a garota foi morta, o clima é diferente. 

 Rasana é minúscula, com cerca de 20 casas, e atravessá-la a pé leva apenas cinco minutos: pelo caminho, há os campos de trigo irregulares com cheiro do estrume de vaca, as pequenas casas de tijolo que ficam meio escondidas atrás das paredes e, finalmente, um pequeno templo cor-de-rosa, agora fechado com um cadeado. 

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 Parece haver pouco remorso ou compaixão aqui. Poucas pessoas da aldeia de maioria hindu falam sobre a desumanidade do crime ou o fato de os pais da menina, traumatizados, terem fugido. Proibidos de enterrar a filha perto de sua casa, a família teve que levar o corpo. 

 Em vez disso, ouve-se coisas como: "a nossa terra" e "a terra deles". Nós e eles. "Essa é uma grande conspiração para desmoralizar os hindus", disse Bhagmal Khajuria, ancião de uma aldeia próxima, que insistiu que os oito homens presos em conexão com a morte da menina haviam sido incriminados injustamente. 

 Quem está por trás dessa conspiração?  "Os separatistas", resmungou, referindo-se aos muçulmanos de outra parte do estado de Jammu e Caxemira que querem a independência da Índia. 

 Muitos indianos esperavam que, após o último caso horrível de estupro, em 2012, quando uma jovem foi fatalmente brutalizada em um ônibus em Nova Délhi, as coisas fossem diferentes, mas pouca coisa mudou. 

Algumas leis foram reforçadas e o governo indiano agora quer aplicar a pena de morte para estupradores de crianças, porém as condenações por esse tipo de crime são poucas, e dezenas de políticos indianos acusados de abuso sexual ainda são eleitos (fato que não é uma exclusividade indiana). 

Profunda divisão religiosa

 A Índia permanece tão profundamente dividida em termos religiosos, étnicos e políticos que até mesmo um crime dessa natureza acaba sendo imediatamente politizado, trazido para o centro de uma interminável guerra comunal. Muitos estudiosos culpam a ascensão do direito hindu, dizendo que esse abriu a temporada contra os muçulmanos, não importando sua origem ou idade. 

 Após a morte da menina, o primeiro-ministro Narendra Modi, cujo partido está enraizado no nacionalismo hindu, se viu sob pesadas críticas por não ter se pronunciado rápido o bastante para denunciar o ataque. Somente depois que protestos irromperam, ele se referiu ao caso e a outra recente acusação de estupro, dizendo que "nossas filhas definitivamente terão justiça". 

 Autoridades do partido de Modi negam ter dado uma condução errada ao caso e não concordam que sua política tenha polarizado a nação. Tudo que tentaram fazer depois da morte da menina, disseram, foi "pacificar as pessoas". 

 Mesmo assim, alguns dos defensores mais fiéis dos suspeitos de assassinarem a garota são autoridades do alto escalão do partido de Modi. Para os analistas, o fato se encaixa no modo em que o partido vem operando há anos. 

 "Os jovens aprendem que os muçulmanos são uma mancha nesta nação, que podem fazer o que quiserem com eles", disse J. Devika, historiadora do Centro de Estudos do Desenvolvimento em Thiruvananthapuram.  Ela acusou o partido do Modi e seus aliados de "transformar a fé hindu em uma arma". 

 Crimes de ódio tem grande crescimento

Especialistas dizem que é difícil não ver essa morte como parte de um padrão sinistro. De acordo com uma análise recente, os crimes de ódio aumentaram consideravelmente no mandato do Modi. As vítimas são na sua maioria muçulmanos e hindus de castas inferiores. 

 As autoridades na área de Rasana estão se esforçando para conter a revolta de ambos os lados. A região, como a maioria de Índia, é religiosamente mista, com hindus e muçulmanos vivendo em proximidade e geralmente se dando bem – até que alguém acirra os ânimos. 

 Primeiro, foram advogados hindus fisicamente impedindo que policiais apresentassem queixa da morte da garota em um tribunal; daí, protestos e contraprotestos eclodiram, alguns deles violentos e conduzidos por autoridades do partido de Modi, que afirmaram que houve armação e que os suspeitos eram inocentes.   Dezenas de donas de casa e avós hindus aderiram, realizando uma greve de fome, dizendo estar prontas para morrer. Várias quase chegaram a esse ponto e tiveram que ser hospitalizadas. 

 Os aspectos defendidos pelos manifestantes hindus apresentam uma certa mesmice: eles acusam o governo do estado de ser manipulado por muçulmanos. E estão exigindo que o Departamento Central de Investigação, uma agência federal amplamente vista como instrumento do partido de Modi, assuma a investigação da polícia estadual. 

 Ao mesmo tempo, os muçulmanos em outras partes do estado tomaram as ruas e entraram em confronto com a polícia, insistindo para que os suspeitos sejam enforcados. 

 De acordo com vários relatos na mídia indiana, um proeminente advogado hindu insultou um investigador, dizendo: "Ela é uma garota, que inteligência pode ter?".  Tudo isso pega bem localmente, mesmo que o relato de acusação mais se pareça com um roteiro de filme de terror. 

 Sinal de problemas

O primeiro sinal de problema veio na noite de 10 de janeiro, quando cinco cavalos voltaram ao acampamento nômade sem sua dona de oito anos de idade, contou o pai da menina em uma entrevista. A garota, que amava os cavalos e os montava sem sela, usando um lenço como rédeas, não foi encontrada. 

 Ele sentiu que algo estava profundamente errado. Imediatamente pegou uma lanterna e organizou um grupo de busca, percorrendo todos os buracos, as valas e as fazendas da área. Nada. Bateram de casa em casa. Nada. Com seu pânico aumentando e dezenas de companheiros nômades que se juntaram a ele, adentraram a floresta nas proximidades. Ainda assim, nada. 

 Então, chegaram a um pequeno templo hindu. Os nômades disseram que foram intimidados pelo homem que tomava conta do local, um ex-oficial da receita conhecido por sua habilidade de ler mãos, fazer mapa astral e, segundo alguns, até mesmo prever o futuro. Ele tranquilizou os pais da menina com sua voz austera: "Não se preocupe. Sua filha está bem. Alguém está cuidando dela." 

 De acordo com a polícia, naquele momento, um grupo de jovens, orientado pelo mesmo guardião, estuprava a menina no templo. Depois de três dias, decidiram matá-la. O motivo do crime, dizem os investigadores, foi nada menos que limpeza étnica. Os investigadores disseram que Sanji Ram odiava os nômades que vieram para a região, e que orquestrou o assassinato para afastá-los. 

 Esses nômades pertencem a um grupo étnico predominantemente muçulmano, os bakarwals. Há várias gerações, eles cruzam Jammu e Caxemira com rebanhos de ovelhas e cabras, cavalos e cães, abrindo caminho através de vales cercados por montanhas imponentes e cavalgando por estradas lotadas.  Eles chamam a atenção com seus olhos claros e suas tendas coloridas montadas ao lado de rodovias. 

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 Mas a vida está mudando para os bakarwals. Um punhado de famílias começou a se instalar na região de Rasana, comprando terras de agricultores hindus, construindo casas resistentes de tijolos e permanecendo no local durante a maior parte do ano, para que seus filhos possam ir à escola, o que é um grande avanço para eles. A família da menina morta era uma delas. 

 Isso enfureceu Sanji Ram, a quem os aldeões descrevem como hindu devoto e fã apaixonado de Modi. Vários moradores disseram que Ram preferia arrendar suas terras a nômades hindus, nunca aos muçulmanos. 

 Depois que a garota foi morta e seu corpo jogado em uma vala, os investigadores contaram que dois outros policiais, ambos hindus, destruíram provas. Antes que o vestido da menina fosse enviado a um laboratório criminalista, eles tentaram lavá-lo. Mas não funcionou, e os investigadores disseram que tinham provas contundentes de DNA. E também afirmaram que todos os oito suspeitos confessaram. 

 

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