
Na charge, uma imagem de Recep Tayyip Erdogan monta guarda enquanto dois ladrões esvaziam um cofre cheio de dinheiro. "Não tenha pressa", um dos ladrões diz com um sorriso. "Temos um vigia holográfico."
A mensagem da charge, publicada em fevereiro no Cumhuriyet, jornal de oposição, era inconfundível, chegando no momento em que membros do círculo interno do líder turco eram alvo de uma investigação de corrupção.
Erdogan não achou graça. O cartunista agressor, Musa Kart, foi levado ao tribunal acusado de insultar o primeiro-ministro (agora presidente), violar a privacidade de uma investigação e cometer difamação. Kart foi absolvido em outubro, e até o momento está livre o advogado de Erdogan recorreu para continuar desafiando a autoridade com suas caricaturas.
"Esse ciclo vicioso de ações judiciais afeta todos os cartunistas, escritores e intelectuais neste país. Vamos continuar trabalhando e dizendo o que pensamos para o bem de nossas futuras gerações", disse Kart.
Mas o episódio mostra um ambiente cada vez mais difícil para cartunistas editoriais, os quais há muito tempo fazem parte da cultura política da Turquia, que precisam conviver com a falta de tolerância de Erdogan às críticas e à dissidência. Os críticos do presidente e de seu governo estão envolvidos em processos criminais, e dezenas perderam seus empregos.
Cartunistas continuam a exibir seus trabalhos em uma variedade de publicações independentes e usam a divulgação das mídias sociais. Mas estão preocupados com o que veem como um clima político cada vez mais opressivo.
"Sempre soube que havia um tipo de pressão sobre escritores e ilustradores. Hoje, sentimos a mesma pressão, mas com uma nova cara. Pode não ser a ameaça de prisão que vimos durante o golpe militar de 1980, mas é uma atmosfera de opressão criada pelo governo civil", disse Aslan Özdemir, editor da Leman, revista turca de charges políticas.
Kart, que enfrentou o processo por difamação em 2004, tinha sido deixado em paz nos últimos anos. Mas suas charges que se referiam à investigação da corrupção foram longe demais para Erdogan. A investigação, que resultou na renúncia de três ministros, foi vista como uma das mais graves ameaças ao governo.
"A Turquia tem uma tradição longa e rica de sátira política. Esse caso não só representa um ataque à liberdade de expressão, mas também uma traição à herança artística e democrática da Turquia", disse Alev Yaman, pesquisador na Turquia da PEN International, organização de direitos da mídia baseada em Londres.
O caso Kart foi abraçado por cartunistas em todo o mundo em uma campanha do Twitter depois que Martin Rowson, do The Guardian, pediu caricaturas de Erdogan.
O interrogatório policial de um manifestante que segurava uma charge que apareceu no International New York Times em dezembro também gerou preocupações sobre a liberdade de imprensa. A charge, de Patrick Chappatte, mostrava Erdogan fatiando carne de um espeto estampado com uma bandeira da Turquia e com a palavra "Democracia".
"Não tinha absolutamente nada a ver com fatiar a bandeira turca. Era sobre os ataques a organizações de mídia que destroem a democracia turca", disse Bayram Ali Hanedar, de 29 anos, professor de matemática que segurava a charge.
Muitas revistas de charges na Turquia são pequenas, independentes e de propriedade privada, o que lhes dá uma liberdade financeira que muitos na mídia não possuem. Os principais títulos são Leman, Uykusuz e Penguen.
Quando os canais de notícias locais e as principais publicações inicialmente ignoraram os protestos antigovernamentais em junho de 2013, a mídia social foi instrumental como fonte alternativa de notícias.
Mas as revistas de charges também ajudaram a preencher o vazio. A Leman distribuiu edições de protesto. A circulação aumentou para algumas revistas. De uma média de 55 mil exemplares por semana, a circulação da Penguen chegou a 80 mil durante os protestos. "Nós estávamos lá para expressar a raiva e a frustração que não são facilmente traduzidas em palavras", disse Selcuk Erdem, da Penguen.
Para Kart, essa frustração resumiu-se ao seu dia no tribunal, que veio apenas uma semana depois que os 96 suspeitos na investigação de corrupção que ele criticou em suas charges terem sido absolvidos.
"Sinto-me agora dentro de uma charge. Confesso que é muito engraçado que, enquanto foram retiradas todas as acusações contra os suspeitos de corrupção, eu sou o único acusado", disse Kart em seu depoimento.



