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Mohamed Hamemi (segundo a partir da esquerda), um dos milhares de tunisianos que relataram ter sofrido torturas | Mauricio Lima/New York Times
Mohamed Hamemi (segundo a partir da esquerda), um dos milhares de tunisianos que relataram ter sofrido torturas| Foto: Mauricio Lima/New York Times

Uma das mais conhecidas formas de tortura era o “frango assado” [pau de arara], em que a vítima, nua, fica pendurada como uma ave num espeto.

Durante meses de interrogatório, iniciados quando ele tinha apenas 17 anos, o técnico de atletismo Mohamed Hamemi, hoje com 45, foi repetidamente torturado dessa maneira, como parte da repressão governamental a um movimento islâmico na década de 1980. “Você passa o dia todo nu, com os pés algemados, na posição de frango”, lembrou. “Quando o seu corpo fica azul, eles baixam você, jogam água e aí penduram de novo.”

Hamemi é um dos milhares de tunisianos que procuraram a recém-formada Comissão de Verdade e Dignidade do país, um ambicioso esforço para examinar os abusos do passado e responder ao clamor por justiça.

Antes da Tunísia, outros países em momentos de inflexão entre ditadura e democracia, como África do Sul e El Salvador, tentaram examinar publicamente seus pecados do passado. Mas o esforço tunisiano não é aceito por todos internamente. A comissão tem dificuldades para receber verbas e ter acesso a arquivos policiais.

Todos os dias, mulheres e homens de meia-idade como Hamemi chegam e se sentam em silêncio, aguardando para entregar seus documentos. Alguns descrevem que foram espancados até ficarem inconscientes, pendurados de cabeça para baixo, mergulhados na água ou em baldes de excrementos, submetidos a choques, estuprados e sodomizados, muitas vezes sob o olhar de cônjuges forçados a assistirem.

Antes das revoluções que varreram a região, mais de quatro anos atrás, esse tipo de tortura não era incomum no mundo árabe. O que é excepcional no caso da Tunísia, agora uma democracia, é que ela ousou examinar publicamente os abusos cometidos. Fala-se até mesmo em transmitir pela TV as audiências públicas que devem começar em junho.

Quando o presidente democraticamente eleito da Tunísia, Beji Caid Essebsi, visitou os EUA, no final de maio, o presidente Barack Obama disse que planeja recompensar o progresso desse país conferindo-lhe o status de aliado importante extra-Otan, o que propiciaria uma cooperação equivalente à que os EUA mantêm com nações como Japão e Israel.

Embora o processo de uma comissão da verdade seja doloroso, deixar de promovê-lo pode fazer com que antigas insatisfações fermentem e voltem a eclodir.

Porém, os questionamentos crescem. Os dois principais partidos políticos do país buscam a reconciliação, mas parecem menos interessados ​​em justiça. Além disso, os membros do antigo regime conservaram sua influência. O próprio Essebsi disse em uma entrevista que propôs anistiar empresários acusados ​​de corrupção se eles investirem seu dinheiro na Tunísia.

“Há uma resistência por parte do governo”, disse a ex-jornalista e ativista de direitos humanos Sihem Bensedrine, que chefia a comissão. “Esse é o nosso trabalho: desconstruir a máquina, entender como ela funciona e depois reconstruir e ver o que não fazer.”

Nos próximos quatro a cinco anos, a Comissão deve revelar violações de todo tipo ocorridas durante quase 60 anos de regime autoritário, e os autores dos piores abusos deverão ser judicialmente responsabilizados.

Sua abrangência tem início em 1955, um ano antes de a Tunísia se tornar independente da França, e inclui o regime de dois ditadores, Habib Bourguiba e Zine el Abidine Ben Ali. Isso inclui uma matança durante o movimento pela independência, a tortura e a prisão de cerca de 30 mil sindicalistas, estudantes, esquerdistas e ativistas islâmicos e também as vítimas —338 mortos e 2.147 feridos— da revolução de 2011 que deu início à Primavera Árabe.

“Não se trata de um ou outro regime”, disse Emtyez Bellali, da filial tunisiana da Organização Mundial Contra a Tortura. “A tortura tem sido a forma de governar o país. Devemos lutar contra isso, porque está na mentalidade de todos.”

Enquanto os líderes nacionais promoviam a Tunísia como sendo um país moderno, com educação universal e mulheres emancipadas, eles também mantinham um sistema de tortura e repressão.

As piores câmaras de tortura ficavam no porão do Ministério do Interior, edifício em um bulevar ladeado por cafés. Os moradores dos arredores escutavam gritos dos prisioneiros às 3h da madrugada, segundo Mounira Ben Kaddour, secretária-geral da Associação de Mulheres da Tunísia.

Hamemi e dois ex-colegas de cela foram juntos à comissão apresentar suas declarações. “Batiam em nós com paus e fios elétricos”, disse Hamemi. “Chegavam a enfiar pedaços de pau nas nossas partes íntimas. Amarravam as nossas partes íntimas e puxavam. Fiquei pendurado de ponta-cabeça numa porta, com as mãos amarradas, por cinco a seis horas.”

O taxista Mohamed Salah Barhoumi, que esteve preso em duas ocasiões, disse ter recebido tratamento semelhante. “Fui perseguido pelo governo durante 13 anos, e minha família também”, contou. “Por três dias consecutivos, fizeram o ‘frango assado’ em mim. Noite e dia —tapas, socos, todos os tipos de chutes.”

Os torturadores queriam informações, e todos deram nomes e até mesmo confessaram crimes que não cometeram, segundo Hamemi.

O professor de matemática Rached Jaidane passou 13 anos preso por conspirar contra o presidente, uma acusação inventada, segundo ele. Certa ocasião, ele tentou processar judicialmente os responsáveis, sem sucesso. “É importante que as audiências públicas estejam na televisão”, disse Jaidane, “para que as futuras gerações saibam o que aconteceu”.

Muitas vítimas que esperavam justiça rápida após a revolução estão desiludidas pela lentidão do processo. Os advogados se queixam da falta de vontade política, bem como das ineficiências da comissão da verdade.

Mas Hamemi disse que gostaria de ouvir um pedido de desculpas dos seus torturadores.

“Eu poderia ter feito isso com as minhas próprias mãos depois da revolução”, disse, “mas quero fazer pela lei”.

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