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Demolições geram conflitos étnicos

O governo da China demoliu milhares de casas centenárias em Kashgar, irritando os uigures, grupo étnico muçulmano | Gilles Sabrie para The New York Times
O governo da China demoliu milhares de casas centenárias em Kashgar, irritando os uigures, grupo étnico muçulmano (Foto: Gilles Sabrie para The New York Times)

As pilhas de tijolos de argila e as crateras abertas onde antes havia casas e bazares dão aos visitantes a impressão de que a cidade de Kashgar, na antiga Rota da Seda, foi vítima de uma demolição em massa. Um cartaz sobre as ruínas tenta mudar essa impressão: "Valorize e preserve a cultura histórica para poder ter uma nova Kashgar".

Há cinco anos, as autoridades chinesas se dispuseram a modernizar a Cidade Velha, prometendo preservar seu charme antigo e clima de casbá, mas os resultados mostram como são grandes as diferenças entre o governo e a minoria étnica daqui: os uigures, povo muçulmano de idioma com raízes turcomanas que vive às turras com Pequim desde que as tropas comunistas ocuparam sua pátria tradicional, em 1949.

Sessenta e cinco mil casas foram destruídas e 220 mil moradores, remanejados. "A maioria das casas na Cidade Velha está caindo aos pedaços, extremamente vulnerável aos terremotos e incêndios", é o veredito do relatório de 2010 feito pela agência estatal de notícias Xinhua, cujas matérias servem de base para a imprensa chinesa.

Os uigures já protestaram contra a discriminação, a política religiosa restritiva e a supressão da educação em seu próprio idioma, já que milhões de chineses do grupo étnico Han se estabeleceram em Xinjiang.

As tensões levaram à violência. Em 1° de março, a China culpou os separatistas de Xinjiang por um ataque ocorrido em uma estação de trem em uma cidade chinesa do sudoeste distante, Kunming. Ali, um grupo armado com facas matou pelo menos 29 pessoas e feriu 143.

Para muitos uigures, a demolição da Cidade Velha de Kashgar é um símbolo da intenção chinesa de destruir sua identidade cultural. Mais de 60 por cento das casas centenárias foram substituídas por construções novas, "maquiadas" para parecerem antigas, mas equipadas com aquecimento central, encanamento interno e eletricidade. O governo se dispõe a pagar pela construção do andar térreo.

Há morador que se sinta satisfeito. "Mesmo que o bairro tenha mudado, estamos muito satisfeitos com a nossa casa nova", conta a costureira que se identificou apenas como Ayesha. Embora todos os detalhes em filigrana e arabescos da casa de 500 anos de sua família tenham desaparecido, ela incorporou elementos tradicionais nas novas portas e janelas.

O problema é que muitos dos moradores antigos não têm mais condições de viver na região. Os uigures que voltaram geralmente são os mais ricos, funcionários públicos e comerciantes bem sucedidos, cujo bem-estar econômico depende da cooperação das autoridades predominantemente Han.

A grande maioria está espalhada por prédios de apartamentos na periferia, muito longe da vida que levava. No fim de uma viela empoeirada, uma mulher envelhecida me recebeu em sua casa de 300 anos. Construída por um ancestral rico que comprava e vendia seda, a casa está em ruínas. Na sala de estar, a luz ilumina os mosaicos em formato de diamante de lajotas verdes e brancas e destaca as prateleiras antigas em formato de arco.

O governo se ofereceu para ajudar a financiar a reforma, mas se recusou a manter o trabalho original. "Se fosse para reconstruir, teria que perder toda essa história tão bonita", lamenta. Então decidiu deixar a casa como estava para servir de chamariz para os turistas.

Há séculos Kashgar é considerada a joia da civilização uigur, centro de comércio e aprendizado islâmico na rota das caravanas que ligava a Europa e a Pérsia com a China; hoje, é uma cidade média que fica no ponto mais ocidental do país. Pequim apostava que o fluxo de investimento e projetos de infraestrutura ajudassem a acabar com a instabilidade política.

O que restou da Cidade Velha está rapidamente se transformando em um parque temático cultural, com direito a ingresso de US$5.

Beatrice Kaldun, especialista cultural da Unesco em Pequim, descreve essas mudanças como "uma mancha na conservação do patrimônio".

Relembrando a visita que fez a Kashgar em 2009, ela confessa ter ficado chocada com a extensão da destruição. "Parecia um deserto em plena cidade", descreve. As autoridades chinesas usaram sua viagem como propaganda para tentar passar a ideia de que a Unesco apoiava a reforma.

Ela afirma que já é tarde demais para resgatar a antiguidade de Kashgar. "Já não dá mais para parar esse trem."

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