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Histórias escritas em pedra

A história de Nukain Mabuza, visto aqui pintando uma pedra em meados dos anos 1970, inspirou uma nova peça de Athol Fugard | Rene Lion-Cachet, via JFC Clarke/
A história de Nukain Mabuza, visto aqui pintando uma pedra em meados dos anos 1970, inspirou uma nova peça de Athol Fugard (Foto: Rene Lion-Cachet, via JFC Clarke/)

Cinco anos atrás, Athol Fugard, 82, grande cronista do passado da África do Sul, marcado pelo apartheid, e seu presente, ouviu uma história surpreendente.

Ela dizia respeito a um lavrador chamado Nukain Mabuza que passou 15 anos —no final da década de 1960 e início da década seguinte— pintando desenhos coloridos e altamente estilizados sobre as pedras grandes e pequenas de terrenos da província de Mpumalanga, no leste do país.

O nome e o trabalho de Mabuza são quase desconhecidos. Fugard, que morava na Califórnia quando ouviu a história, ficou intrigado, especialmente porque sua peça de 1985 “O caminho para Meca” tratava de outra artista plástica outsider, Helen Martins.

“Aquele era um homem que sem dúvida tinha tido uma visão individual, alguém que passou décadas de sua vida criando uma incrível montanha de flores de pedra”.

O fruto de seu interesse foi a peça “The Painted Rocks at Revolver Creek”, escrita e dirigida por Fugard. A peça estreou recentemente no Pershing Square Signature Center, em Nova York.

“Pode parecer estranho, mas eu mesmo me vejo como artista bruto”, ele escreveu. “Quando comecei a trabalhar com teatro, aquilo era uma paixão que me consumia totalmente. Eu escrevia as peças, as dirigia, atuava nelas, construía os sets e criava os figurinos. Isso acontecia também porque minha situação na África do Sul do regime do apartheid, durante os anos em que me formei como escritor, era de relativo isolamento.”

Mas em sua tentativa inicial de trabalhar com o material, Fugard não conseguiu produzir nada. Quando James Houghton, diretor artístico do Signature Theater lhe pediu um trabalho novo, Fugard encontrou a resposta.

“Enxerguei uma solução: no segundo ato eu traria de volta dois dos personagens do primeiro, e agora eles estariam na nova África do Sul”, ele explicou.

A história de Nukain Mabuza é triste, e nem todos os detalhes são conhecidos. Ele se suicidou em 1981, um ano depois de ter repentinamente abandonado sua casa e seu jardim de pedras pintadas.

Ele nasceu em Moçambique e na década de 1950 foi para a África do Sul em busca de trabalho. Em 1965 acabou se radicando numa fazenda chamada Esperado.

Com a ajuda do dono da fazenda, que lhe comprou tinta, Mabuza começou a decorar sua casa e as pedras em volta dela. As pedras eram visíveis da estrada e com o tempo viraram atração turística, mas Mabuza, que morava sozinho, nunca cobrou nada das pessoas que entravam e faziam fotos.

“O conceito de arte bruta ainda não existia na época”, comentou J.F.C. Clarke, cujo livro “The Painted Stone Garden of Nukain Mabuza” é o único relato escrito e fotográfico abrangente do trabalho, hoje prejudicado pelo sol, enquanto o terreno em que as pedras se espalham está abandonado.

“Mabuza era um homem humilde, mas obcecado por seu trabalho, uma obsessão diferente daquela de um artista convencional. Independentemente do estado psicológico ou psiquiátrico em que pudesse se encontrar, ele era capaz de converter terra não arável, destituída de valor, em algo de valor imenso para ele mesmo.”

Athol Fugard conhecia os dados principais sobre Mabuza e tinha visto as fotos de Clarke ao reescrever a peça.

Os elementos essenciais são baseados nos fatos conhecidos, como o local onde a arte foi criada, a recriação das pedras e detalhes sobre a vida árdua de Mabuza.

Mas, segundo Fugard, o retrato feito do artista e dos personagens que dividem o palco com ele é fictício. Ele escreveu num linguajar tipicamente sul-africano, misturando ao texto palavras e referências em xhosa, zulu e africâner.

Fugard disse que nunca deixou de escrever para o público sul-africano, mesmo no exterior. Ele voltou a morar na África do Sul há dois anos, depois de o Fugard Theater ser aberto em 2010 na Cidade do Cabo. Quatro de suas recentes peças estrearam no teatro.

Na nova peça, Mabuza se vê diante de uma última pedra que ainda não foi pintada. E hesita.

“Tem que chegar um ponto na vida de um artista em que ele encara a possibilidade de que tudo tenha terminado”, explicou Fugard. “Pensei: ‘Esta pedra virginal tão bela será sua última pintura’. E talvez esta seja minha última peça de teatro.”

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