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“Gostou do lugar?”

É o que as pessoas na “Selva” de Calais costumam perguntar. Elas querem saber o que eu acho desse terreno sujo, sem eletricidade, embaixo de uma rodovia e cheio de barracas de camping, abrigos de plástico e banheiros imundos. É o lar temporário de milhares de pessoas, a maioria das quais fugiu recentemente da África Oriental ou do Oriente Médio.

Não tenho certeza de como responder a essa pergunta. Deveria ser educada e dizer que não é tão ruim? Rapidamente percebo que é a resposta errada. Aqueles homens querem ouvir a mesma coisa que eu iria querer se vivesse aqui: que é miserável e indigno.

“Não queremos uma frase longa. Queremos apenas: ‘Sim, é ruim’”, explica Mohammed, sudanês que estudou física e matemática em seu país. Como muitos que estão aqui, ele não dá seu sobrenome.

Estou passando o dia em uma parte relativamente confortável da Selva: uma biblioteca improvisada aberta há três semanas por uma voluntária britânica chamada Mary Jones. A biblioteca é feita de tábuas de madeira e folhas plásticas, com um teto de metal corrugado. (“Biblioteca é uma palavra grande para isto. É um depósito”, diz Jones.)

Uma placa na parede externa diz “Livros da Selva” em inglês, francês e árabe. Fica em um caminho de terra ao lado da igreja eritreia e a cerca de 14 quilômetros da atração principal da Selva: o túnel entre a França e o Reino Unido. Toda noite, alguns moradores da Selva tentam invadir o túnel ou se esgueirarpara dentro de caminhões —ou sobre eles— com destino ao país vizinho.

Lá dentro há algumas centenas de livros doados: um manual de economia, os “Sonhos de Meu Pai” de Barack Obama, “O Corpo Perfeito: o Caminho de Pilates”, “Mil Lugares para Conhecer Antes de Morrer” e três edições diferentes de Zohar, o texto místico judaico. Jones teve a ideia da biblioteca depois de passar algum tempo na Selva e “conhecer tanta gente qualificada”.

Peter Bouckaert, diretor de emergências da Human Rights Watch, diz que muitos refugiados sírios são profissionais preparados, que pedem material de leitura, especialmente livros de idiomas para ajudá-los a se integrar.

A Bibliotecas Sem Fronteiras, grupo francês, envia ao acampamento “Caixas de Ideias” cheias de livros e material didático, além de prover uma conexão wi-fi.

Durante minha visita, os moradores procuravam principalmente livros que o ajudariam a aprender o francês. “Como estou na França, tenho de falar a língua”, disse Babiker Mater, sudanês que usava uma blusa feminina xadrez muito pequena para ele —uma doação que recebeu em sua escala em Paris.

Mater não tem uma história simples e polida sobre por que está vivendo em um acampamento sujo, em trânsito, sem levar nada além de uma pequena mochila.

O governo sudanês estava bombardeando os civis em seu Estado, o Nilo Azul. Ele estudou engenharia, mas trabalhava no Sudão como operário da construção para sustentar sua mãe e um irmão. Tem 25 anos. Vir para a Europa parecia uma chance de fazer algo na vida. Agora, sentado no purgatório da Selva, sem dinheiro e usando uma blusa de mulher, não tem certeza.

Tenho dificuldade para imaginar os homens que estão na biblioteca saltando nos caminhões à noite. Um deles, um eritreu de 22 anos muito magro, fala tão baixo que tenho de me inclinar para escutá-lo. Em casa, ele era um estudante universitário antes de ser pego no campus e colocado na prisão por 18 meses. “Quero ir para o Reino Unido, porque lá você tem o direito de estudar”, murmura. “Quero continuar meus estudos, quero me formar.”

Ali perto, uma jovem espanhola conduz quatro africanos em uma aula de francês. Seus manuais estão abertos em um capítulo sobre o sistema de castas indiano. Mas a classe rapidamente se torna uma sessão de terapia de grupo: os homens passam seus telefones ao redor, mostrando fotos horríveis de suas recentes viagens de barco através do Mediterrâneo.

Um sudanês diz que seu barco se partiu em três na costa da Líbia. Ele nadou até a praia, onde os mesmos traficantes líbios mandaram os sobreviventes subirem em outro barco sob a mira de armas. Os traficantes não queriam que ninguém voltasse à cidade para contar aos outros migrantes sobre o acidente.

Samer, 30, mostra um vídeo feito no oitavo de seus dez dias de viagem do Egito à Itália. Nele, Samer está no convés de um navio tentando ressuscitar um amigo que é diabético e desmaiou porque seu nível de açúcar no sangue caiu. Não há comida. “Estou tentando fazê-lo sobreviver”, explica Samer. No final do vídeo, seu amigo está morto.

Quando pergunto há quanto tempo isso aconteceu, ele faz uma pausa e balança a cabeça, descrente: 12 dias. Quando você se põe no lugar dele, o tempo parece distorcido.

No final do dia, percebo que a biblioteca é principalmente um lugar tranquilo para as pessoas digerirem o que lhes aconteceu e meditar sobre o que fazer a seguir. Jamal, motorista de riquixá elétrico da região de Darfur, no Sudão, está sentado em um canto, digitando em árabe em seu iPad. (Ele o carrega na Salam, organização de caridade francesa que também fornece comida.) “Estou trabalhando”, foi tudo o que disse.

Enquanto o sol se põe sobre a Selva, Jamal finalmente revela o que estava fazendo: sua autobiografia, do nascimento até Calais. “Desde que cruzei a fronteira e o mar Mediterrâneo, comecei a pensar na minha vida”, explica. Não é o que ele esperava. “A vida são etapas: criança, jovem. Agora refugiado na Europa”, diz ele. “Às vezes sinto que errei ao vir para a Europa. De qualquer modo, não tenho opção, saí à força.”

Dois meninos eritreus de seis anos entram, procurando brinquedos. Encontram um caminhão de 18 rodas, e Jamal aponta para uma porta no fundo dele. “Vocês entram aqui e se escondem”, diz aos meninos. Quando eles não compreendem, Jamal acrescenta: “Por que estamos aqui? Para cruzar a fronteira”. “Para a Inglaterra!”, replica um menino.

Não tenho certeza de quantas pessoas aqui chegarão ao Reino Unido. Algumas se inscreveram para ficar na França.

No final do dia, não tenho dificuldade para dizer o que penso sobre essa terra inóspita e sem dono. Ninguém deveria ter de viver assim. Devemos tratar as pessoas com humanidade enquanto elas —e nós— decidimos o que vamos fazer agora.

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