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Equipe administra vacina contra ebola a moradores do distrito de Kanyihunga, no Congo, começando com aqueles que tiveram contato com a mais recente vítima local |  Diana Zeyneb Alhindawi / The New York Times
Equipe administra vacina contra ebola a moradores do distrito de Kanyihunga, no Congo, começando com aqueles que tiveram contato com a mais recente vítima local| Foto:  Diana Zeyneb Alhindawi / The New York Times

Quatro médicos caminhavam com cuidado ao longo do vale, usando botas de borracha, e entraram em uma floresta tão cerrada, com árvores tão altas, que o ar se tornou mais fresco instantaneamente. Eles rumavam para um vilarejo na região leste da República Democrática do Congo, onde uma mulher sucumbira recentemente ao ebola. 

O vacinólogo Kasereka Bernardin olhou por sobre o ombro, fez o sinal da cruz e disse que o vírus, embora letal, não era seu temor mais imediato. 

"O que nos assusta são os Mai-Mai", informa, usando o termo local para as milícias, a testa levemente banhada em suor. "O medo é que eles nos matem." 

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A viagem já tinha sido adiada pelos confrontos entre as forças do governo e o grupo de milicianos no município de Kanyihunga, novo foco de um surto do ebola, e os nervos estavam à flor da pele. A equipe, composta de um epidemiologista, dois rastreadores de contato e Bernardin, não tinha conseguido fechar garantias de passagem livre com a liderança miliciana; aliás, nem contato tinha feito. 

Porém, apesar da preocupação com a própria segurança, com o passar das horas os homens se mostravam mais temerosos com a disseminação do vírus fatal no vilarejo de Luseghe – ou, pior ainda, que se expandisse além de suas divisas. 

Houve muitos avanços importantes na batalha contra o vírus do ebola: agora já existe uma vacina e os tratamentos experimentais parecem estar salvando muitas vidas. Graças à ajuda internacional, em 2018 o Congo pôde evitar rapidamente um surto na província de Équateur. 

Apesar disso, a porção oriental do país, onde se concentram mais de cem grupos armados, sofre com um conflito praticamente constante desde a revolução que levou à sua independência, em 1960, tendo sido também afetado pelo genocídio de 1994 na vizinha Ruanda e pela guerra civil que estabeleceu o regime de Joseph Kabila. 

Acredita-se que milhões de pessoas foram mortas, vítimas da violência crônica, muitas das quais nas mãos das forças do governo. A insegurança está frustrando os esforços de combate ao surto mais recente do ebola – o segundo maior da história, depois daquele que castigou a África Ocidental de 2014 a 2016, resultando em 11.310 vítimas –, o que faz da crise atual uma fabricação política. 

A doença ainda mata a maioria de pessoas que a contrai. Desde que o surto foi confirmado aqui, em agosto, foram registrados 583 casos, confirmados ou suspeitos, até 25 de dezembro. Desses, um terço se recuperou, mas 354 morreram. 

A comunidade médica congolesa e a internacional calculam que o combate ao vírus deve se estender ao longo deste ano. A maior preocupação, na verdade, é que, se não controlada, a epidemia chegue à cidade de Goma, que é a capital regional. 

"Se chegar à cidade, estamos perdidos", confessa o dr. Jean-Christophe Shako, diretor de uma equipe de resposta rápida cujas tarefas exigem negociação com a milícia, de modo que os profissionais da saúde possam entrar em seus territórios em segurança. A cidade fica em uma área movimentada na fronteira com Ruanda e conta com um aeroporto internacional que pode espalhar a doença com ainda maior rapidez. 

Aventurando-se no território das milícias 

A população da zona atingida pelo ebola é profundamente desconfiada de forasteiros, sejam soldados do governo ou profissionais de saúde, e quase sempre procura afastar os visitantes, muitas vezes até com ameaças. Antes de partir rumo a Luseghe, os médicos discutiram extensivamente os riscos, inclusive o de levar dois jornalistas ocidentais consigo. 

Por fim, consideraram que era seguro, mas, a caminho de cidade, não conseguiram deixar de tentar adivinhar que tipo de recepção teriam ao chegar. 

Saindo de Butembo, centro movimentado na região leste do Congo, logo as lojas deram espaço à selva. A região é montanhosa, com vales profundos, cobertos de eucaliptos, abacateiros e bananeiras, cujas folhas largas bloqueiam a luz do sol nas partes mais baixas. 

De fato, a vegetação é tão cerrada que era difícil ver além de um metro de distância, em qualquer direção, para saber o quê, ou quem, poderia estar à espreita. 

Eventualmente, conforme a estrada foi ficando mais estreita e deserta, os soldados e policiais que até então nos acompanhavam deram meia-volta. A partir dali, continuaríamos até nosso destino a pé e sem escolta, pois os médicos tinham de mostrar sua neutralidade aos moradores. 

Ao nos aproximarmos de Luseghe, tínhamos todas as razões para ficar apreensivos, pois é ocorrência comum o cidadão ser atacado tanto pelas milícias quanto pelas forças do governo, além de tudo acusadas de cobrar impostos ilegais e estuprar e matar com impunidade – e a grande ironia é que a maioria dos grupos Mai-Mai começou como grupos de defesa formados para proteção dos vilarejos contra soldados criminosos. 

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Assim, os civis não sabem em quem confiar, e acabam rechaçando a aproximação de qualquer um que seja de fora. Quando recentemente a polícia tentou tirar um bebê de duas semanas, infectado, da família, a avó da criança saiu da casa em que morava com um facão e ameaçou matar os homens. 

Um agravante para a desconfiança geral é a atitude dos políticos da oposição, que exploraram a crise às vésperas das eleições gerais espalhando boatos de que o ebola teria sido uma doença fabricada pelas autoridades para acabar com a população – e que os novos termômetros digitais, que lembram vagamente uma pistola, quando apontados para a testa do paciente, serviriam não para tirar a temperatura, mas sim para roubar votos. Há quem diga também que o ebola chegou ao país pelas mãos dos estrangeiros. 

Especialista em biomedicina, epidemiologista e diplomata 

Como diretor da equipe de resposta rápida ao ebola, o dr. Shako é peça-chave da operação para conter a doença e está profundamente preocupado porque sabe que a violência pode frustrar e até impedir as tentativas de resgate dos pacientes. 

"O que me preocupa é não saber como chegar às pessoas que precisam de nossa ajuda. Temos de salvá-las", explica Shako, 49 anos, em voz baixa em seu escritório, em Butembo. 

O surto teve início no vilarejo de Mangina e se espalhou entre os membros de um único clã. E por causa dos boatos insistentes de que morreriam se fossem ao centro de tratamento, seus membros fugiram para evitar as autoridades. 

O vírus então se alastrou em centros de saúde informais, onde curandeiros tradicionais mantêm poucos registros dos pacientes, dificultando para as autoridades a tarefa de rastrear e romper a cadeia de transmissão. 

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As guerras sem fim da região acrescentaram mais uma função ao currículo de Shako: diplomata. Antes mesmo de atuar na Biomedicina ou na Epidemiologia, ele primeiro procura convencer os grupos armados a abrir o território e garantir a segurança dos profissionais. 

A tarefa pode ser bem arriscada. Atos violentos surgem em explosões imprevisíveis, com os civis quase sempre sendo os mais prejudicados. Há algumas semanas, por exemplo, um grupo de rebeldes bem conhecido, do nada, matou doze pessoas a machadadas e os 17 soldados que tentaram recolher os corpos. Em outro ataque, mais quatro pessoas foram mortas sem motivo aparente. 

Shako diz que escolhe as palavras com o maior cuidado ao se aproximar dos líderes das milícias, pois eles são extremamente desconfiados de quem quer que tenha ligação com o governo. "Uma palavra errada e você pode desencadear um show de horrores. Sempre digo que o vírus é o inimigo, e é mais forte que nós." 

Ele chegou ao cúmulo de só usar roupas imundas e levar sabonete para os encontros com os milicianos. "Eles ficam bravos se encontram alguém que estiver mais limpo que eles", ri. "Sério." O processo pode levar dias, mas, na maioria dos casos, os rebeldes se convencem de que os médicos querem só ajudar. 

Quando finalmente conseguem chegar aos doentes, os profissionais de saúde já têm uma coleção impressionante de novos tratamentos a oferecer. Quatro remédios estão em testes no Congo, e os especialistas garantem que todos parecem funcionar bem. 

A organização humanitária francesa Aliança para Ação Médica Internacional desenvolveu um cubo plástico "biosseguro" para abrigar os pacientes necessitados de tratamento intensivo – que, além de reduzir o risco da contaminação, permite aos profissionais trabalhar sem equipamento de proteção. 

Os profissionais também procuram respeitar sempre as tradições locais, ao mesmo tempo que tentam romper as barreiras que impedem o tratamento – muitas vezes são coisas simples, como enterrar um corpo dentro de um saco protetor dentro do caixão, e não só no invólucro plástico. 

Os sobreviventes do vírus, que se tornam imunes a ele e cujo número aumenta a cada dia, estão sendo recrutados para cuidar dos órfãos que foram infectados pelos pais. 

 

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