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Cultura e democracia

Os dois lados do Oriente

Ocidente absorve – e consome – avidamente terapias e filosofias orientais, mas fecha os olhos para a repressão presente em alguns regimes do Leste

Imagine a seguinte cena: uma mulher abre o carro, pendura no espelho o novo enfeite em forma de yin yang e dirige até a aula de ioga. No rádio, ouve uma notícia sobre a prisão de seguidores de um culto proibido na China, seguida por um relato da perseguição às castas mais baixas na Índia. Seja brasileira, americana ou polonesa, a personagem fictícia recebe, assim como qualquer pessoa ocidental, informações contraditórias sobre o valor do que é considerado "oriental". De um lado, o misticismo, as terapias e exercícios físicos originados na Ásia são percebidos como superiores; de outro, criticam-se os abusos aos direitos humanos e costumes "atrasados" desses mesmos países. Em geral, a pessoa escolhe um dos lados apenas.

"É quase algo esquizofrênico. Quando uma pessoa adere a uma terapia ou religião oriental, ela a veste com um manto de espiritualismo e ignora as determinações políticas e econômicas do país de onde aquela ideia veio", diz a socióloga da Uni­­versidade Estadual Paulista (Unesp) Leila de Albuquerque.

"A relação Leste-Oeste tem dois lados: quando não achamos resposta para alguma coisa, apelamos ao esoterismo, às reli­­giões orientais. Mas quando achamos que somos mais avançados, o Oriente vira o gueto, lugar de gente pobre, atrasada e feia", acrescenta o professor de História da Faculdade Estadual de União da Vitória (Fafiuv) André Bueno.

A imagem do mundo oriental começou a tomar forma no Ocidente no século 14, quando Marco Polo, seu pai e seu tio publicaram livros contando sobre suas viagens asiáticas que teriam levado 24 anos. A imagem resultante mistura verdade e ficção, como a descrição de chineses com cabeça de cachorro – motivo pelo qual muitos historiadores questionam a veracidade de sua chegada aos impérios chinês e mongol.

Mais tarde, com a chegada de na­­vegadores portugueses a Macao, na China, e Goa e Gamão, na Índia, e o estabelecimento de colônias inglesas, os europeus pas­­sam a se interessar pela cul­­tura dos povos colonizados e levam à Europa informações sobre o misticismo orien­­tal e práticas como a ioga.

As novidades são bem recebidas. "Aquele era um momento de descontentamento com os rumos do capitalismo, e o Oriente surgiu com disciplinas milenares e formas de pensamento que privilegiam uma vida mais espiritualizada", explica Bueno.

Divulgaram-se então exercícios físicos que exigem o controle da mente e teses sobre a busca do equilíbrio, cuja expansão se intensifica no século 20. É na esteira dos movimentos de contracultura dos anos 50 e 60 que o orientalismo – termo cunhado em 1979 pelo intelectual palestino Edward Said – surge como resposta para os mais descontentes com o materialismo.

Já nos anos 80, as filosofias e terapias orientais ganham roupagem comercial e partem para o mercado, onde o sucesso de técnicas como a da acupuntura faz a própria classe médica correr atrás para se especializar.

Hoje, quem entra de corpo e alma na busca pelo conceito abrangente de "espiritualidade" chega a viajar à Índia com esse propósito. "Virou um grande negócio fazer palestras com gurus, mas os próprios indianos dão risada disso", diz Leila.

Com a popularização do conceito de democracia, que corre o mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o interesse pelo mundo oriental se expandiu do âmbito cultural para incluir também as questões políticas que envolvem esses "exóticos" países. A globalização trouxe um acesso maior a informações, tornando conhecidas as práticas de regimes fechados como o chinês e norte-coreano, que não admitem partidos políticos nem a livre expressão. A lista de críticas se estende para a rígida divisão em castas da Índia e até mesmo a modos de vida, como ao "vício no trabalho" japonês.

"O problema é que países como a China estão ficando mais ricos e poderosos e continuam a negar liberdade política à maioria de seus cidadãos", frisa o especialista em relações governamentais da consultoria Trilogy Advisors, de Washington, John Sitilides.

A dualidade inspirada pelo Oriente tende a se perpetuar. "O Oriente tem aspectos magníficos de História e cultura, e não acho que a repressão seja uma tradição a ser respeitada. É sim o maior assunto da geopolítica que teremos nos pró­­ximos anos."

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