
Ouça este conteúdo
A Gazeta do Povo publica, com exclusividade no Brasil, o perfil do cardeal Charles Bo preparado pelos vaticanistas Diane Montagna e Edward Pentin, autores do projeto The College of Cardinals Report. Jornalistas com décadas de experiência na cobertura do Vaticano, Montagna e Pentin escreveram perfis de todos os cardeais apontados como principais candidatos a suceder Francisco no comando da Igreja Católica, com informações biográficas e suas posições sobre temas em debate dentro da Igreja.
Nascido em 1948, ano em que Mianmar se tornou independente, o cardeal Charles Bo foi criado em uma família católica devota de dez filhos. Ele vem de uma origem humilde e relativamente pobre, e cresceu em uma vila que descreve como “muito religiosa, com amor e respeito especial pelo que era sagrado e santo” e com uma “orientação voltada para Deus” (1).
Batizado com o nome de Charles (São Carlos Borromeu é seu santo padroeiro), seu pai era um fazendeiro que morreu quando Charles tinha apenas 2 anos, e cinco de seus irmãos morreram quando ainda eram muito jovens. Foi sua mãe que alimentou sua fé, contando-lhe histórias dos santos todas as noites, na hora de dormir, e que inspirou sua vocação para o sacerdócio. Seu pároco local, Don Luwi, que lhe ensinou o catecismo quando Charles tinha de 5 a 7 anos, foi outra fonte de inspiração.
Aos 8 anos, Charles entrou em um internato salesiano em Mandalay e foi educado na Lafon Memorial School, administrada pelos salesianos. Ele se inspirou no reitor, padre Giacomin Fortunato, que lhe ensinou Filosofia e Teologia e se tornou seu mestre no noviciado. Incentivado por missionários italianos do Pontifício Instituto para Missões Estrangeiras e padres franceses da Sociedade de Missões Estrangeiras de Paris, Charles decidiu que queria ser missionário e pároco. Sendo católico em um país predominantemente budista, ele sempre teve forte contato com outros grupos étnicos e religiosos (2).
Bo começou seus estudos em 1962 – ano em que o general Ne Win tomou o poder em um golpe que levou a décadas de ditadura militar em Mianmar – matriculando-se no Aspirantado de Nazaré, um seminário salesiano na vila de Anisakan, perto de Pyin Oo Lwin (formalmente conhecido como Maymyo).
Ele foi ordenado padre salesiano em 9 de abril de 1976. Durante a maior parte de seu sacerdócio até sua nomeação como arcebispo de Yangon, em 2003, Charles Bo trabalhou principalmente nos estados étnicos de Mianmar. Após a ordenação, foi nomeado pároco em Loihkam, perto de Lashio, no norte do estado de Shan, uma região que servia de base para organizações de resistência armada étnica, como o Exército da Independência de Kachin (KIA), que estava lutando uma guerra civil com os militares de Mianmar. Bo trabalhou em Loihkam até 1981 e aprendeu o maru, o dialeto local de Kachin, bem o suficiente para pregar homilias neste idioma. Em 1981, ele foi transferido para Lashio, onde foi pároco até 1983; em seguida, foi formador em Anisakan, de 1983 a 1985.
Charles Bo combina uma rara mistura de coragem e sabedoria, tradição e criatividade, humildade e humor, uma fé firme e uma abertura a novas ideias
Em 1985 – menos de uma década após sua ordenação como padre –, Charles Bo foi nomeado administrador apostólico em Lashio por um ano; depois, foi prefeito apostólico de 1986 a 1990. Quando a prefeitura se tornou a Diocese de Lashio, em 1990, ele se tornou seu primeiro bispo, e foi consagrado em 16 de dezembro de 1990. No mesmo ano, fundou uma nova ordem religiosa, a Congregação dos Irmãos e Irmãs de São Paulo, com “uma visão de compartilhar a Boa-Nova de Jesus Cristo com aqueles que não ouviram falar dele”. Hoje, a congregação tem mais de 100 irmãs e cerca de 30 irmãos e padres trabalhando em seis dioceses localizadas em algumas das áreas mais remotas do país.
Após seis anos como bispo de Lashio, o papa São João Paulo II nomeou Bo como bispo de Pathein em 13 de março de 1996, fazendo dele o primeiro bispo em Mianmar a ser transferido de uma diocese para outra. Ele trabalhou em Pathein até ser nomeado arcebispo de Yangon – então capital e maior cidade de Mianmar –, em 24 de maio de 2003, onde permaneceu desde então. Charles Bo também foi presidente da Conferência dos Bispos Católicos de Mianmar de 2000 a 2006, e novamente de 2020 até hoje; e presidente da Federação das Conferências Episcopais Asiáticas, de 2018 a 2024. Desde 2020, enquanto ainda cumpria suas responsabilidades como cardeal-arcebispo de Yangon, o cardeal Charles Bo tornou-se administrador apostólico da Diocese de Myitkyina, no estado de Kachin, no norte do país.
No consistório de 14 de fevereiro de 2015, o papa Francisco criou o arcebispo Bo como o primeiro cardeal de Mianmar, dando-lhe a igreja titular romana de Santo Irineu em Centocelle. Desde então, ele desempenhou um papel de destaque na Igreja, representando o papa e a Igreja de seu país em vários cargos, e sendo nomeado membro de vários dicastérios do Vaticano (3).
Suas homilias, que entrelaçam esperança, fé, paz, reconciliação e desafio profético, são bem características do cardeal Charles Bo e oferecem uma janela para sua espiritualidade e caráter. Ele combina uma rara mistura de coragem e sabedoria, tradição e criatividade, humildade e humor, uma fé firme e uma abertura a novas ideias.
Generoso, pastoral e compassivo, ele ama as artes e – como o papa São João Paulo II – é um dramaturgo. Também ama esporte e joga futebol e basquete com padres e religiosos. Ele fala várias línguas – birmanês e inglês principalmente, mas também é proficiente em várias línguas étnicas de Mianmar, bem como o italiano. Sendo salesiano, ele tem uma preocupação especial com os jovens (4).
Considerado por alguns como “solidamente ortodoxo”, o cardeal Charles Bo foi profundamente inspirado por Bento XVI e leal a ele; depois, desenvolveu uma lealdade semelhante e um relacionamento próximo com o papa Francisco. Em particular, ele apoia a sinodalidade, a ênfase de Francisco na misericórdia e seu foco em questões ambientais e mudanças climáticas. Ele criticou fortemente o Partido Comunista Chinês, mas não chegou a criticar o papa por seu acordo com Pequim sobre a nomeação de bispos. Charles Bo às vezes foi criticado por ser muito diplomático e parecer fazer concessões em algumas assuntos (5).
Considerado por alguns como “solidamente ortodoxo”, o cardeal Charles Bo foi profundamente inspirado por Bento XVI e leal a ele; depois, desenvolveu uma lealdade semelhante e um relacionamento próximo com o papa Francisco
Aqueles que conhecem bem o cardeal Charles Bo dizem que ele não é a favor de ordenar mulheres ao sacerdócio, nem de tornar o celibato sacerdotal opcional, e nem de bênçãos para casais do mesmo sexo. Mas ele falou pouco, se é que falou, sobre essas questões, pois elas geralmente não são questões relevantes para a Igreja em Mianmar, e porque ele prefere se concentrar em promover justiça e paz em uma nação tão marcada por conflitos e repressão – são essas questões que ele considera prioritárias em suas intervenções públicas.
Como um dos cardeais mais importantes da Ásia, o cardeal Charles Bo conquistou considerável respeito mundial por sua liderança na Igreja em Mianmar, ao longo de décadas de conflito e repressão, bem como durante uma década – de 2011 até o golpe de 2021 – de abertura e reforma limitadas.
Bo é visto como um líder inspirador, leal tanto à Igreja quanto ao papa, ao mesmo tempo em que está disposto a falar corajosamente contra a injustiça, bem como ouvir os outros. Ele também se concentrou na juventude, bem como na paz, reconciliação e diálogo inter-religioso. Com sua experiência liderando a Federação das Conferências Episcopais Asiáticas, alguns o consideram um forte candidato se os cardeais escolherem um pontífice da Ásia.
Notas
(1) Os ancestrais de Charles Bo estavam entre os primeiros católicos de Mianmar, convertidos pelos portugueses há mais de 400 anos. Sua vila natal, Monhla, no centro de Mianmar, perto de Shwebo e logo além do antigo centro cultural do país, Mandalay, é um dos nove assentamentos estabelecidos pelos portugueses, e até hoje é uma vila mista de católicos e budistas. Ele se lembra de ter crescido em um “ambiente católico” no qual a fé era central. “Não havia problemas de materialismo e secularismo. Era tão calmo e havia uma atmosfera religiosa. Toda a vila era muito religiosa, com um amor e respeito especiais pelo que era sagrado e santo. Havia uma orientação voltada para Deus”, ele recordou. Fonte: Benedict Rogers, From Burma to Rome: A Journey into the Catholic Church, 2015, p. 122.
(2) Ao contrário da maioria dos católicos de Mianmar, o cardeal Charles Bo pertence à ao grupo étnico majoritário Bamar ou Burman, que é predominantemente budista. A maioria dos católicos – assim como dos cristãos de outras tradições – provém dos grupos étnicos minoritários do país, particularmente os Karenni, Karen, Kachin e Chin. Assim, Bo é um Burman minoritário entre a população cristã e um cristão minoritário entre os Burmans. No entanto, sua educação e grande parte de seu sacerdócio lhe proporcionaram muito contato com outros grupos étnicos, o que lhe fez apreciar de forma especial a diversidade étnica e religiosa de Mianmar.
(3) Charles Bo foi o legado papal no 51.º Congresso Eucarístico Internacional, nas Filipinas, em 2016; e presidente delegado papal na XV Assembleia Geral Ordinária sobre os Jovens, a Fé e o Discernimento Vocacional, em outubro de 2018. Ele também é membro do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-Religioso, do Conselho Pontifício para a Cultura e de vários dicastérios, incluindo o dos Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica; para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos; e para a Comunicação. Bo também atua internacionalmente como copresidente de Religions for Peace.
Bo é visto como um líder inspirador, leal tanto à Igreja quanto ao papa, ao mesmo tempo em que está disposto a falar corajosamente contra a injustiça, bem como ouvir os outros
(4) Em 2017, Bo foi o orador principal no Flame, a maior conferência católica de jovens do Reino Unido, reunindo mais de 10 mil jovens em Wembley. Ele conquistou seus corações quando começou: “Vejo um mar de juventude à minha frente. Dizem-me que 10 mil de vocês estão aqui, orando, celebrando e aproveitando. Isso me faz sentir tão jovem. Que energia ver tantos jovens – de todos os cantos da Inglaterra e do País de Gales. Uma chance de celebrar nossa fé nesta arena incrível, com 10 mil de nossos irmãos e irmãs... Meus jovens! Toda vez que a Jornada Mundial da Juventude é realizada em várias partes do mundo, vocês trazem grande esperança para a Igreja. Sua alegria, sua vibração, sua energia – nós, que estamos envelhecendo, somos energizados pela energia e esperança que vocês trazem para a Igreja. Sua alegria é uma mensagem para mim também – sua presença é um grande elixir de esperança para mim. Venho de um país que sofreu muito. Mas a juventude aqui, no meu país, me dá energia extra para seguir em frente”.
Então, ele lhes lançou um desafio: “Como vejo – em seus olhos, grandes sonhos. Alguns de vocês serão cientistas, outros esportistas, professores, médicos... Seu nome é ‘amanhã’, meus queridos amigos. Minha mensagem para cada jovem aqui é esta: vocês têm a oportunidade, se escolherem aceitá-la, de se colocarem à disposição de Deus, de abrirem seus corações ao Seu Espírito, de se colocarem em Suas mãos e, então, juntos com Ele, tornarem este mundo um lugar melhor. Vocês realmente carregam a chama da esperança. Incendeiem o mundo. Sejam o fogo que acende outro fogo. Cuidado, muito fogo é aquecimento global! Mas o fogo de que falo é o fogo da esperança, o fogo do amor, o fogo da compaixão, o fogo da fraternidade com os irmãos e irmãs menos afortunados”.
Ele continuou: “Santo Agostinho explica a natureza da esperança dizendo que ‘a esperança tem duas filhas lindas: seus nomes são raiva e coragem. Raiva de que as coisas sejam como são. Coragem para torná-las como deveriam ser’”. Destacando os desafios do mundo –conflitos, destruição ambiental, extremismo, falta de moradia, pobreza, violência, desestruturação familiar, depressão, doença –, o cardeal Bo instou sua audiência a “pensar em um desses e se comprometer a fazer tudo o que puder para manter a esperança viva ali. E enfrentar esse desafio com a confiança de que vocês nunca estarão sozinhos”.
Ele terminou sua mensagem com estas palavras: “Meus queridos jovens amigos, vocês podem fazer maravilhas com suas mãos. Quando Deus está em suas mãos, a verdade está em suas mãos, vocês recebem um poder enorme. Acreditem no poder da verdade em seus corações, que fará maravilhas por meio de suas mãos. Que 10 mil corações sejam inflamados de amor por todos. Que 20 mil mãos sejam fortalecidas com Cristo hoje. Podemos mudar este mundo. Carreguem essa chama da esperança, incendiando um mundo de injustiça com a chama do Reino de Justiça de Deus”.
(5) Em 2018, Bo foi fotografado com o filantropo “progressista” Alex Soros (filho de George Soros), que o descreveu como um “amigo”, embora uma fonte próxima ao cardeal diga que eles não se conhecem bem e que o encontro ocorreu devido à estima de Alex pelo cardeal em questões de justiça e paz.
O que o cardeal Charles Bo pensa sobre…
Ordenação de diaconisas: É contra. O cardeal Charles Bo não se pronunciou sobre a ordenação de mulheres ao diaconato, mas acredita-se que ele seja contrário devido a manifestações anteriores relevantes para a questão.
Bênção para casais do mesmo sexo: É ambíguo. O cardeal Bo não falou sobre o tema. Ele tem repetido o ensino tradicional da Igreja sobre o assunto, ao mesmo tempo em que destaca a importância da misericórdia. Ele disse que a legalização do casamento homoafetivo é inaceitável em sua opinião, mas que o cuidado pastoral pode ser oferecido para trazer as pessoas para a Igreja por meio da misericórdia, indicando que talvez ele possa ser aberto a bênçãos para casais do mesmo sexo.
Tornar opcional o celibato para os padres: É contra. O cardeal Charles Bo não se pronunciou sobre a relativização do celibato sacerdotal, mas considera-se que ele tenha posições mais ortodoxas e, por isso, muito provavelmente seria oposto à flexibilização.
Restrições à missa tridentina: Não se sabe. Não foi possível encontrar nenhuma declaração do cardeal Bo sobre o assunto.
Acordos secretos entre China e Vaticano: É contra. O cardeal Bo tem sido muito franco sobre a China em geral, acusando-a de “negligência criminosa e repressão” durante a pandemia de Covid-19, mas a lealdade a Francisco fez com que ele evitasse críticas públicas aos acordos.
Promover uma “Igreja sinodal”: É a favor. O cardeal Charles Bo descreveu o Sínodo sobre a Sinodalidade como “uma longa marcha de esperança para toda a humanidade”, acrescentando que o encontro sinodal “nos encheu de energia para voltar aos grandiosos dias de evangelização pelos apóstolos”.
Foco nas mudanças climáticas: É a favor. O cardeal Bo disse que as mudanças climáticas são “uma bomba atômica prestes a explodir” e que o mundo enfrenta “um holocausto ambiental”. Ele também disse que “o aquecimento global tem devastado comunidades e a subsistência de milhões, ameaçando escapar à próxima geração”.
Reavaliar Humanae vitae: Não se sabe. Não foi possível encontrar nenhuma declaração do cardeal Bo sobre o assunto.
Comunhão para divorciados “recasados”: É a favor. O cardeal Bo apoiou um tratamento mais misericordioso do tema antes do Sínodo sobre a Família, em 2015. Ele disse esperar que a Igreja “se preocupasse mais com o indivíduo que com regras e regulamentos, e o que é ou não é pecado”.
“Caminho sinodal alemão”: Não se sabe. Não foi possível encontrar nenhuma declaração do cardeal Bo sobre o assunto.
Dados pessoais
Nome: Charles Maung Bo
Data de nascimento: 29 de outubro de 1948 (76 anos)
Local de nascimento: vila de Monhla (Mianmar)
Criado cardeal: 14 de fevereiro de 2015, por Francisco
Posição atual: arcebispo de Yangon (Mianmar) e administrador apostólico de Myitkyina
Lema: Omnia possum in eo (“Tudo posso Nele”)
© 2025 The College of Cardinals Report. Publicado com permissão. Original em inglês: Cardinal Charles Maung Bo



