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Putin se encontrou esta semana com Raisat Akipova, menina de oito anos que foi convidada a ir ao Kremlin depois de não ter conseguido ver o presidente no Daguestão devido à multidão e o episódio viralizar na internet russa
Putin se encontrou esta semana com Raisat Akipova, menina de oito anos que foi convidada a ir ao Kremlin depois de não ter conseguido ver o presidente no Daguestão devido à multidão e o episódio viralizar na internet russa| Foto: EFE/EPA/ALEXANDER KOZAKOV

Após as tropas do Grupo Wagner, lideradas por Yevgeny Prigozhin, chegarem a cerca de 200 quilômetros de Moscou, com quase nenhuma resistência das forças de defesa, o Kremlin ordenou que se fizesse um controle total dos danos causados em suas relações públicas pelo fiasco perante a Rússia e o mundo.

Às vésperas de um previsível anúncio de que o presidente Vladimir Putin concorrerá à reeleição, novamente tenta-se passar a imagem de que as coisas estão correndo bem e que o motim do Wagner foi um mero contratempo.

Na sexta-feira (30), o Ministro de Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, comentou em coletiva de imprensa que a rebelião do Grupo Wagner não foi “nada mais que um arranhão”.

Em resposta às palavras do ministro minimizando as consequências internas e externas do levante, o blogueiro Igor Strelkov disse para os seus quase 900 mil seguidores no Telegram: “Não posso deixar de concordar com o senhor Lavrov. Após a rebelião de Prigozhin, a Rússia se tornou muito mais forte; do mesmo modo como o corpo fica mais forte depois de um ataque cardíaco”, ironizou.

Para as relações públicas do governo russo, o motim representou um problema que exige uma solução urgente, pois é a maior crise já vista nos 23 anos da era Putin. De acordo com fontes próximas ao Kremlin, é preciso urgentemente salvar a imagem de Putin como uma figura apoiada por todo o país.

Isso fez com que o presidente russo abandonasse seu distanciamento usual e a estrita quarentena e saísse em meio à população para tirar selfies com o público que o recepcionou na última quinta-feira (29) no Daguestão, uma das republicas autônomas da Rússia com maioria muçulmana.

Lá, ele falou à população que a rebelião não teve apoio popular e que serviu para que as forças militares e de segurança se unissem, mostrando sua unidade para impedir uma “guerra civil”.

De acordo com o historiador russo Andrei Zubov, o que aconteceu não poderia ser chamado propriamente de uma revolução, mas sim de uma “típica rebelião militar”. Segundo ele, a imagem pública do governo de Putin como garantidor da unidade e da segurança para os povos da Rússia foi rompida, pois ficou claro aos olhos de todos que não existe unidade nos altos círculos político-militares.

Uma fonte próxima ao Kremlin, citada pelo The Moscow Times, disse que a viagem do presidente russo ao Daguestão é somente a primeira de uma série de eventos para reforçar a imagem pública de Putin e conter ativamente seu desgaste junto à sociedade russa. Segundo o jornal, todo o staff recebeu ordens de “combater esse desastre de relações públicas e inventar algo urgentemente, para demonstrar vividamente o amor dos russos por Putin”.

Uma sociedade indiferente

Do ponto de vista do russo médio, o incidente marcou o início da destruição de inúmeros mitos sobre o poderio do Kremlin e a suposta unidade patriótica entre os diferentes grupos de poder no país.

Para Zubov, sinal claro disso é que, embora as autoridades não tenham ficado do lado de Prigozhin durante a revolta, elas tampouco ficaram no caminho do líder mercenário, o que revelou uma profunda indiferença. “Falar de autoridades reunidas ao redor de Putin é um absurdo. Se isto fosse verdade, então Prigozhin não teria chegado nem a Rostov”, disse o historiador.

Em sua análise, Putin evidentemente já não mais comanda as elites e é vítima da própria propaganda que fomentou. A guerra, que era para durar três dias, chegará na sexta-feira (7) ao seu 500º dia e toda a elite político-militar é vista como incompetente.

Neste cenário, as forças do Grupo Wagner, que entraram em Rostov e receberam calorosas boas-vindas, representaram um choque de realidade para as relações públicas do aparato estatal.

Nas palavras de um oficial russo, que pediu para não ser identificado: “Quando as tropas de Prigozhin tomaram facilmente Rostov e quase chegaram a Moscou sem resistência, criou-se a imagem de que ninguém defendia o chefe [Putin]. Isso contradiz a imagem do líder nacionalmente amado”, disse a autoridade russa.

As diferentes personas públicas de Putin

Um Putin distinto para as distintas Rússias – talvez assim possa ser descrita a trajetória política do líder russo desde a sua ascensão como discípulo de Boris Yeltsin, apoiador de reformas liberais, passando por sua “traição” a ele quando sequer lhe telefonou após sua primeira vitória nas urnas, afastando sua imagem pública do ex-presidente, conforme mostrado no documentário britânico em três partes “Putin: A Russian Spy Story”.

Neste mesmo período, ele afirmou ao então presidente dos EUA, Bill Clinton, que “não se oporia” em juntar-se à OTAN. Já nos anos 2000, com a ascensão do terrorismo em território russo, um novo presidente se fez presente – forte, implacável e impiedoso contra quem atacava seu país.

Na administração de Dmitri Medvedev, membro de seu mesmo partido e entourage, porém visto como mais inclinado a concepções liberais que seu predecessor, o então premiê Putin desfez sua imagem anterior, fazendo-se presente em vários eventos públicos.

Talvez o momento mais emblemático tenha sido sua aparição em meio a centenas de jovens no “Batalha pelo Respeito”, concurso de rappers organizado pela Muz TV (então rival da MTV na Rússia). Na época, ele sofria uma baixa em sua popularidade, embora para os padrões ocidentais ainda fosse extremamente elevada.

O destino manifesto de uma nação

Voltando à presidência no ano de 2012 com uma plataforma de “oposição” à Medvedev, que era visto pela opinião pública como mais fraco, Putin se fez novamente o homem forte, que retomaria o “destino manifesto” da Rússia no mundo.

Para o ex-secretário de Estado americano Strobe Talbott, Putin de alguma forma personifica alguns elementos recorrentes da história russa e sua escolha como sucessor de Yeltsin foi proposital, para corrigir os excessos da pequena era liberal que a Rússia viveu desde a queda da URSS até o fim do mandato do seu antecessor.

“Yeltsin escolheu como sucessor alguém que veio da total obscuridade e o pôs em seu lugar, não para que levasse adiante seu legado [liberal], mas por ser alguém que personificava a antiga mentalidade soviética e pudesse colocar a Rússia de volta em um caminho quase soviético”, disse Talbott em um painel realizado pelo Aspen Institute em 2014, logo após a invasão da Crimeia.

Neste sentido, ao mesmo tempo em que os eventos da anexação ilegal da Crimeia e da guerra no Donbass se desenrolavam em 2014 e 2015, Putin era cada vez menos visto publicamente como apenas um político, e sim como uma personificação da unidade russa.

Suas aparições públicas davam-se no dia da vitória da URSS sobre a Alemanha e em outros grandes eventos civis, comemorando as glórias passadas da Rússia e seu poderio presente. Na Rússia, a este enfoque costuma-se dar o nome de a “Religião da Vitória” (“Religiya Pobedy”), um culto dessacralizado e civil às glórias passadas – à grandeza da URSS, à sua vitória contra as forças do Eixo, ao seu poderoso império, a Yuri Gagarin, ao Sputnik etc.

Com a pandemia de Covid-19, as aparições públicas de Putin se tornaram cada vez mais raras, e até mesmo nas grandes festas do calendário cristão ortodoxo ele aparecia longe dos fiéis, em um nicho próprio, normalmente sozinho ou acompanhado do prefeito de Moscou ou outra personalidade, em imagens que sugerem até mesmo serem montagens. Seus encontros com ministros e autoridades se tornaram memes pela distância entre ele e os demais.

Mudanças de imagem durante a guerra

O que já era uma medida sanitária (e talvez hipocondríaca) exacerbou-se ainda mais com o começo da guerra na Ucrânia. Putin, que já era poucas vezes visto em público, tornou-se ainda mais avesso a aparições públicas que não fossem comunicados oficiais.

Até mesmo a maior e mais alegre festa do calendário cristão, a Páscoa, foi celebrada em caráter particular. A transmissão realizada na Catedral da Anunciação, uma das cinco localizadas no Kremlin, mostrou o líder russo atendendo à liturgia sozinho.

Ante a proclamação das palavras “Cristo ressuscitou” – inúmeras vezes repetidas pelo sacerdote na liturgia pascal oriental –, ao invés da exaltada resposta “Em verdade, ressuscitou” por milhares de pessoas, tal anúncio encontrou a resposta de um único homem.

A estagnação do avanço das tropas russas no front, a perda de centenas de milhares de vidas russas e as recentes incursões com drones e por tropas ucranianas em território russo fizeram com que ele fosse forçado a aparecer mais vezes em público: na destruída Mariupol, inspecionando um novo bloco de apartamentos construído na cidade em ruínas e até mesmo descontraído, tomando champanhe em meio a outras pessoas e garantindo a todos que “tudo está conforme os planos” (“Vsyô po-planu”) – frase que se tornou o lema das comunicações oficiais do Kremlin durante a guerra.

Tais discrepâncias no comportamento do presidente levaram inclusive ao questionamento de se Putin teria ou não dubles.

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