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Antropologia

Um mistério inca

Vilarejo nos Andes peruanos guarda relíquia que pode comprovar como os incas se comunicavam na vasta região sem o uso da escrita

Coleção de quipos guardada na casa cerimonial Kaha Wayi,em San Cristóbal de Rapaz: instrumento em fios e nós ajudou os incas a construir um império sem o domínio da escrita | Kohut Meridith/The New York Times
Coleção de quipos guardada na casa cerimonial Kaha Wayi,em San Cristóbal de Rapaz: instrumento em fios e nós ajudou os incas a construir um império sem o domínio da escrita (Foto: Kohut Meridith/The New York Times)
Um dos modelos de quipo preservados em San Cristóbal de Rapaz, no Peru |

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Um dos modelos de quipo preservados em San Cristóbal de Rapaz, no Peru

Veja onde fica |

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Veja onde fica

San Cristóbal de Rapaz, Peru - A estrada para esse vilarejo a quase 4 mil metros acima do ní­­­vel do mar parte da costa desértica do Peru e sobe pelas montanhas andinas, oferecendo uma mistura de êxtase e medo a quem passa por ela . Condores sobrevoam os penhascos cobertos por ne­­­­blina. Pastores conversando em quéchua (língua andina fa­­lada no local) olham de viés para os forasteiros que chegam até o lo­­cal com claras dificuldades para respirar o ar rarefeito dos Andes.

O isolamento do povoado de San Cristóbal de Rapaz permitiu que seus moradores guardassem um mistério arqueológico antigo: uma coleção de quipos, um esquecido instrumento formado por nós e que pode explicar co­­mo os incas – ao contrário de seus contemporâneos no Im­­pé­­rio Otomano e a dinastia Ming, na China – tiveram um império vasto e administrativamente com­­plexo sem o uso da escrita.

Os arqueólogos afirmam que os incas, dizimados pelos conquistadores espanhóis, utilizaram os quipos – que não passam de nós em uma trama de fios feitos com o pêlo de animais co­­mo lhamas ou alpacas – co­­mo uma alternativa para a escrita. A prática pode ter permitido a esse po­­vo compartilhar informações na região que vai do sul da Co­­lôm­­bia até o norte do Chile.

De acordo com os especialistas, poucas das chamadas escritas perdidas do mundo se provaram tão difíceis de decifrar quanto os quipos, conforme apontam os relatos de cronistas do período colonial, que relataram jamais ter conseguido decifrar o código.

Pesquisadores da Universida­­de de Harvard estão utilizando bases de dados e modelos matemáticos nos esforços mais atuais para entender o quipo, palavra que significa nó, em quéchua, a língua inca ainda falada por mi­­lhões de pessoas nos Andes.

Acredita-se que só existam 600 quipos remanescentes. Co­­lecionadores acabaram tirando muitos desses instrumentos do Peru há algumas décadas, inclu­­indo a enorme quantidade de 300 peças, todas hoje expostas no Museu Etnológico de Berlim. Acredita-se também que a maioria desses instrumentos havia sido destruída após o governo es­panhol tê-los declarado, em 1583, como sendo objetos de idolatria.

Todavia, San Cristóbal de Ra­­paz, lar de cerca de 500 pessoas que sobrevivem da criação de lha­­mas e gado e da agricultura, oferece um vislumbre raro do papel dos quipos durante o Im­­pério In­­ca e nos dias atuais. O vilarejo abri­­ga uma das últimas coleções de qui­­pos ainda utilizadas em rituais.

No povoado, como no resto dos Andes, ninguém sabe decifrar ou entende o conhecimento codificado nos quipos, que são armazenados e protegidos em uma casa cerimonial chamada de Kaha Wayi. As tranças intrincadas são decoradas com nós e minúsculos figurinos, e em al­­guns deles pode-se encontrar bol­­sas ainda menores recheadas com folhas de coca.

A habilidade dos rapacinos, como são chamados os aldeões, de decifrar os quipos parece ter se perdido junto com a morte dos mais velhos, apesar dos especialistas acreditarem que o uso de quipos pela vila pode ter se es­­tendido por todo o século 19.

Mesmo atualmente, os rapacinos conduzem rituais na Kaha Wayi ao lado de seus quipos, conforme foi descrito por Frank Sa­­lomon, um antropólogo da Uni­­versidade de Wisconsin, que con­­duziu um recente projeto destinado a auxiliar o vilarejo a proteger os quipos em um casulo a prova de terremotos.

Uma tradição consiste nos aldeões murmurarem invocações durante as noites geladas para as montanhas deificadas que rodeiam o vilarejo, clamando aos céus por chuvas. Após es­­sa sessão de murmúrios, os aldeões se reúnem ao redor de um fogareiro onde se queima gordura de lhama para sacrificar um animal, que será depositado em uma cova repleta de flores e fo­­lhas de coca.

A sobrevivência de tais rituais e dos quipos de San Cristóbal de Rapaz testemunham a resistência do vilarejo após séculos de dificuldades. Murais desbotados nas paredes da igreja colonial de Rapaz ilustram demônios arrastando indígenas para as chamas do inferno por causa de seus pe­­cados. Famílias feudais forçaram os ancestrais de muitos dos atuais moradores a trabalhar como escravos.

Os rapacinos também tiveram de enfrentar desafios recentes. Na década de 70, o governo ameaçou a região com nacionalizações. Nos anos 90, guerrilheiros da facção maoísta Sendero Luminoso aterrorizaram Rapaz, eliminando o contato que o vilarejo tinha com o resto do Peru.

Apesar de tudo, talvez pelo alto nível de coesão e propriedade comum da terra e rebanhos, os rapacinos preservaram seus quipos na Kaha Wayi.

Longe de Rapaz, decifrar os quipos é um processo que en­­frenta seus próprios desafios, mesmo quando novas descobertas sugerem que eles eram utilizados nas sociedades andinas muito antes de o Império Inca ter surgido como a potência do século 15.

Especialistas declaram não possuir uma equivalente da Pe­­dra de Roseta para os quipos. A Pedra de Roseta é uma placa de granito cujas inscrições em grego ajudaram a decifrar os antigos hieróglifos egípcios. Manuscritos jesuítas descobertos em Nápoles, na Itália, pareciam ser uma luz no fim do túnel para aqueles que tentavam decifrar os quipos, mas acredita-se atualmente que tais manuscritos sejam uma fraude.

Em San Cristóbal de Rapaz, os aldeões guardam seus quipos mesmo sem sa­­ber todos os significados que eles tiveram um dia.

"Eles de­­­­vem permanecer aqui porque pertencem ao nosso povo. Jamais os entregaremos", diz o aldeão Fidêncio Alejo Fal­­cón, 42 anos.

Tradução: Thiago Ferreira

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