
San Cristóbal de Rapaz, Peru - A estrada para esse vilarejo a quase 4 mil metros acima do nível do mar parte da costa desértica do Peru e sobe pelas montanhas andinas, oferecendo uma mistura de êxtase e medo a quem passa por ela . Condores sobrevoam os penhascos cobertos por neblina. Pastores conversando em quéchua (língua andina falada no local) olham de viés para os forasteiros que chegam até o local com claras dificuldades para respirar o ar rarefeito dos Andes.
O isolamento do povoado de San Cristóbal de Rapaz permitiu que seus moradores guardassem um mistério arqueológico antigo: uma coleção de quipos, um esquecido instrumento formado por nós e que pode explicar como os incas ao contrário de seus contemporâneos no Império Otomano e a dinastia Ming, na China tiveram um império vasto e administrativamente complexo sem o uso da escrita.
Os arqueólogos afirmam que os incas, dizimados pelos conquistadores espanhóis, utilizaram os quipos que não passam de nós em uma trama de fios feitos com o pêlo de animais como lhamas ou alpacas como uma alternativa para a escrita. A prática pode ter permitido a esse povo compartilhar informações na região que vai do sul da Colômbia até o norte do Chile.
De acordo com os especialistas, poucas das chamadas escritas perdidas do mundo se provaram tão difíceis de decifrar quanto os quipos, conforme apontam os relatos de cronistas do período colonial, que relataram jamais ter conseguido decifrar o código.
Pesquisadores da Universidade de Harvard estão utilizando bases de dados e modelos matemáticos nos esforços mais atuais para entender o quipo, palavra que significa nó, em quéchua, a língua inca ainda falada por milhões de pessoas nos Andes.
Acredita-se que só existam 600 quipos remanescentes. Colecionadores acabaram tirando muitos desses instrumentos do Peru há algumas décadas, incluindo a enorme quantidade de 300 peças, todas hoje expostas no Museu Etnológico de Berlim. Acredita-se também que a maioria desses instrumentos havia sido destruída após o governo espanhol tê-los declarado, em 1583, como sendo objetos de idolatria.
Todavia, San Cristóbal de Rapaz, lar de cerca de 500 pessoas que sobrevivem da criação de lhamas e gado e da agricultura, oferece um vislumbre raro do papel dos quipos durante o Império Inca e nos dias atuais. O vilarejo abriga uma das últimas coleções de quipos ainda utilizadas em rituais.
No povoado, como no resto dos Andes, ninguém sabe decifrar ou entende o conhecimento codificado nos quipos, que são armazenados e protegidos em uma casa cerimonial chamada de Kaha Wayi. As tranças intrincadas são decoradas com nós e minúsculos figurinos, e em alguns deles pode-se encontrar bolsas ainda menores recheadas com folhas de coca.
A habilidade dos rapacinos, como são chamados os aldeões, de decifrar os quipos parece ter se perdido junto com a morte dos mais velhos, apesar dos especialistas acreditarem que o uso de quipos pela vila pode ter se estendido por todo o século 19.
Mesmo atualmente, os rapacinos conduzem rituais na Kaha Wayi ao lado de seus quipos, conforme foi descrito por Frank Salomon, um antropólogo da Universidade de Wisconsin, que conduziu um recente projeto destinado a auxiliar o vilarejo a proteger os quipos em um casulo a prova de terremotos.
Uma tradição consiste nos aldeões murmurarem invocações durante as noites geladas para as montanhas deificadas que rodeiam o vilarejo, clamando aos céus por chuvas. Após essa sessão de murmúrios, os aldeões se reúnem ao redor de um fogareiro onde se queima gordura de lhama para sacrificar um animal, que será depositado em uma cova repleta de flores e folhas de coca.
A sobrevivência de tais rituais e dos quipos de San Cristóbal de Rapaz testemunham a resistência do vilarejo após séculos de dificuldades. Murais desbotados nas paredes da igreja colonial de Rapaz ilustram demônios arrastando indígenas para as chamas do inferno por causa de seus pecados. Famílias feudais forçaram os ancestrais de muitos dos atuais moradores a trabalhar como escravos.
Os rapacinos também tiveram de enfrentar desafios recentes. Na década de 70, o governo ameaçou a região com nacionalizações. Nos anos 90, guerrilheiros da facção maoísta Sendero Luminoso aterrorizaram Rapaz, eliminando o contato que o vilarejo tinha com o resto do Peru.
Apesar de tudo, talvez pelo alto nível de coesão e propriedade comum da terra e rebanhos, os rapacinos preservaram seus quipos na Kaha Wayi.
Longe de Rapaz, decifrar os quipos é um processo que enfrenta seus próprios desafios, mesmo quando novas descobertas sugerem que eles eram utilizados nas sociedades andinas muito antes de o Império Inca ter surgido como a potência do século 15.
Especialistas declaram não possuir uma equivalente da Pedra de Roseta para os quipos. A Pedra de Roseta é uma placa de granito cujas inscrições em grego ajudaram a decifrar os antigos hieróglifos egípcios. Manuscritos jesuítas descobertos em Nápoles, na Itália, pareciam ser uma luz no fim do túnel para aqueles que tentavam decifrar os quipos, mas acredita-se atualmente que tais manuscritos sejam uma fraude.
Em San Cristóbal de Rapaz, os aldeões guardam seus quipos mesmo sem saber todos os significados que eles tiveram um dia.
"Eles devem permanecer aqui porque pertencem ao nosso povo. Jamais os entregaremos", diz o aldeão Fidêncio Alejo Falcón, 42 anos.
Tradução: Thiago Ferreira



