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Guerra no Afeganistão
Uma sessão conjunta de treinamento de artilharia em um posto avançado de combate em Jaghatu, na província de Wardak, Afeganistão, em 10 de setembro de 2012| Foto: Lorenzo Tugnoli/Washington Post

Índice da reportagem:

Um acervo confidencial de documentos do governo dos Estados Unidos obtido pelo jornal Washington Post revela que altas autoridades americanas falharam em dizer a verdade sobre a guerra no Afeganistão durante a campanha que já dura 18 anos, fazendo afirmações positivas que elas sabiam serem falsas e escondendo provas inegáveis de que a guerra não poderia ser vencida.

Os documentos foram gerados por um projeto do próprio governo que examina as falhas fundamentais do maior conflito armado da história dos Estados Unidos. São mais de 2.000 páginas de notas de entrevistas inéditas com pessoas que desempenharam um papel direto na guerra, de generais e diplomatas a trabalhadores de serviços humanitários e autoridades afegãs.

O governo americano tentou proteger as identidades da maioria dos entrevistados e ocultar quase todas as suas observações. O jornal, porém, conseguiu ter acesso aos documentos com base na Lei da Liberdade de Informação (FOI, Freedom of Information Act), semelhante à brasileira Lei de Acesso à Informação (LAI), após uma batalha legal de três anos.

Nas entrevistas, mais de 400 funcionários falaram sobre o que deu errado no Afeganistão e como os Estados Unidos ficaram atolados em quase duas décadas de guerra. Com uma franqueza raramente expressa em público, as entrevistas continham queixas, frustrações e confissões, além de tentativas de previsões e críticas.

"Estávamos desprovidos de uma compreensão fundamental do Afeganistão - não sabíamos o que estávamos fazendo", disse em 2015 Douglas Lute, general de três estrelas que serviu como czar de guerra (alto oficial) da Casa Branca durante as administrações Bush e Obama. Ele acrescentou: "O que estamos tentando fazer aqui? Não tínhamos a menor noção do que estávamos empreendendo".

"Se o povo americano soubesse a magnitude desse problema (...) 2.400 vidas perdidas", acrescentou Lute, culpando a burocracia do Congresso, o Pentágono e o Departamento de Estado pela morte dos militares americanos. "Quem diria que isso foi em vão?"

Desde 2001, mais de 775.000 soldados americanos foram enviados ao Afeganistão, muitos deles mais de uma vez. Desses, 2.300 morreram lá e 20.589 foram feridos em ação, segundo dados do Departamento de Defesa.

As entrevistas, por meio de vozes variadas, destacam as principais falhas da guerra que persistem até hoje. Elas ressaltam como três presidentes - George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump - e seus comandantes militares foram incapazes de cumprir suas promessas de vencer no Afeganistão.

Acreditando que seus comentários não se tornariam públicos, as autoridades americanas reconheceram que suas estratégias de combate eram imperfeitas e que Washington desperdiçou enormes somas de dinheiro tentando transformar o Afeganistão em uma nação moderna.

As entrevistas também destacam as tentativas frustradas do governo americano de reduzir a corrupção descontrolada, construir um exército afegão e uma força policial competentes e prejudicar o próspero tráfico de ópio do Afeganistão.

O governo americano não fez uma contabilidade abrangente de quanto gastou na guerra no Afeganistão, mas os custos são surpreendentes.

Desde 2001, o Departamento de Defesa, o Departamento de Estado e a Agência para o Desenvolvimento Internacional dos EUA gastaram entre US$ 934 bilhões e US$ 978 bilhões, de acordo com uma estimativa corrigida pela inflação calculada por Neta Crawford, professora de ciências políticas e codiretora do projeto Custos de Guerra, na Brown University.

Esses números não incluem o dinheiro gasto por outras agências, como a CIA e o Departamento de Assuntos dos Veteranos, responsáveis pelos cuidados médicos aos veteranos feridos.

"O que recebemos por esse esforço de US$ 1 trilhão? Valeu US$ 1 trilhão?", perguntou Jeffrey Eggers, funcionário aposentado dos SEAL da Marinha e da Casa Branca de Bush e Obama, a entrevistadores do governo. Ele acrescentou: "Após o assassinato de Osama bin Laden, eu disse que Osama provavelmente estava rindo no fundo do mar, considerando o quanto gastamos no Afeganistão".

Os documentos também contradizem declarações públicas de presidentes, comandantes militares e diplomatas que garantiam aos americanos, ano após ano, que estavam progredindo no Afeganistão e que a guerra valia a pena.

Vários dos entrevistados revelaram esforços explícitos para induzir o público ao erro. Eles disseram que era comum, no quartel-general em Cabul - e na Casa Branca -, distorcer as estatísticas para fazer parecer que os Estados Unidos estavam vencendo a guerra.

"Todos os dados eram alterados para apresentar a melhor imagem possível", disse Bob Crowley, coronel do Exército que atuou como consultor sênior de contrainsurgência dos comandantes militares americanos em 2013 e 2014. "As pesquisas, por exemplo, não eram nada confiáveis, mas reforçavam que tudo que fazíamos era certo e nos tornamos um cachorro correndo atrás do próprio rabo".

Como surgiram as entrevistas

John Sopko, chefe da agência federal que conduziu as entrevistas, reconheceu ao Washington Post que os documentos mostram que "mentiras são contadas ao povo americano constantemente".

As entrevistas são o subproduto de um projeto liderado pela agência de Sopko, o Escritório do Inspetor Geral Especial de Reconstrução do Afeganistão. Conhecida como SIGAR, na sigla em inglês,, a agência foi criada pelo Congresso em 2008 para investigar desperdícios e fraudes em zonas de guerra.

Em 2014, sob a direção de Sopko, o SIGAR abandonou sua missão de realizar auditorias e lançou um empreendimento paralelo. Intitulado "Lições Aprendidas", o projeto de US$11 milhões tinha como objetivo diagnosticar falhas políticas no Afeganistão para que os Estados Unidos não repetissem os erros da próxima vez que invadissem um país ou tentassem reconstruí-lo.

A equipe entrevistou mais de 600 pessoas envolvidas na guerra. A maioria era americana, mas os analistas do SIGAR também viajaram para Londres, Bruxelas e Berlim para entrevistar aliados da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Além disso, eles entrevistaram cerca de 20 autoridades afegãs sobre programas de reconstrução e desenvolvimento.

Com base nas entrevistas, assim como em outros registros e estatísticas do governo, o SIGAR publicou sete relatórios desde 2016, destacando os problemas no Afeganistão e recomendando mudanças para estabilizar o país.

Mas os relatórios, escritos de forma burocrática e focados na sopa de letrinhas de instituições governamentais, deixaram de fora as críticas mais duras e sinceras das entrevistas.

"Descobrimos que a estratégia de estabilização e os programas usados ​​para alcançá-la não estavam adequadamente adaptados ao contexto afegão, e os sucessos na estabilização de distritos afegãos raramente iam além da presença física de tropas e civis da coalizão", dizia a introdução de um relatório divulgado em maio de 2018.

Os relatórios também omitiram os nomes de mais de 90% das pessoas que foram entrevistadas para o projeto. Algumas autoridades concordaram em falar no SIGAR, mas a agência disse que prometeu anonimato a todos os entrevistados para evitar controvérsias sobre questões politicamente sensíveis.

Os documentos identificam 62 das pessoas que foram entrevistadas, mas o SIGAR apagou os nomes de 366 outras. Em documentos legais, a agência sustentava que esses indivíduos deveriam ser vistos como denunciantes e informantes que poderiam sofrer humilhação, assédio, retaliação ou dano físico se seus nomes se tornassem públicos.

Por meio de referências cruzadas e outros detalhes dos documentos, o Post identificou independentemente outras 33 pessoas que foram entrevistadas, incluindo vários ex-embaixadores, generais e funcionários da Casa Branca.

O pessoal do Exército dos EUA embarca em um avião para uma missão no Afeganistão, de Fort Campbell, Kentucky, em 6 de novembro de 2014 | Foto:  Washington Post/Matt McClain
O pessoal do Exército dos EUA embarca em um avião para uma missão no Afeganistão, de Fort Campbell, Kentucky, em 6 de novembro de 2014 | Foto: Washington Post/Matt McClain| The Washington Post

O jornal recorreu à justiça federal para que o SIGAR divulgue os nomes de todos os outros entrevistados, argumentando que o público tem o direito de saber quais oficiais criticaram a guerra. Uma decisão da juíza Amy Berman Jackson, do Tribunal Distrital de Washington, está pendente desde o final de setembro.

O Post está publicando os documentos agora, em vez de esperar uma decisão final, para informar o público enquanto o governo Trump negocia com o Talibã e considera retirar 13.000 soldados americanos que permanecem no Afeganistão.

"Não invadimos os países pobres para torná-los ricos", disse James Dobbins, ex-senador norte-americano e diplomata que serviu como enviado especial ao Afeganistão sob Bush e Obama. "Não invadimos países autoritários para torná-los democráticos. Invadimos países violentos para torná-los pacíficos e claramente falhamos no Afeganistão".

Para reforçar as entrevistas das Lições Aprendidas, o Washington Post obteve centenas de páginas de memorandos previamente confidenciais sobre a guerra do Afeganistão ditados pelo Secretário de Defesa Donald Rumsfeld entre 2001 e 2006. Juntas, as entrevistas do SIGAR e os memorandos de Rumsfeld sobre o Afeganistão constituem uma história secreta da guerra e uma avaliação inigualável de 18 anos de conflito.

Bandidos e mocinhos

"A história do conflito militar no Afeganistão [foi] um sucesso inicial, seguida por longos anos de fracassos e um fracasso final. Não vamos repetir esse erro".

Presidente George W. Bush, em discurso no Instituto Militar da Virgínia

Com seu retrato explícito de como os Estados Unidos ficaram presos em uma guerra distante, bem como da determinação do governo de esconder isso do público, o dossiê das entrevistas do projeto “Lições Aprendidas” se assemelha aos Documentos do Pentágono, a história secreta do Departamento de Defesa dos EUA na Guerra do Vietnã.

Quando vazaram, em 1971, os Documentos do Pentágono causaram incômodo ao revelar que o governo vinha enganando o público havia muito tempo sobre como os Estados Unidos se envolveram na Guerra do Vietnã.

Encadernado em 47 volumes, o estudo de 7.000 páginas foi inteiramente baseado em documentos internos do governo — telegramas diplomáticos, memorandos de tomada de decisão, relatórios de inteligência. Para preservar o sigilo, o secretário de Defesa Robert McNamara emitiu uma ordem proibindo os autores de entrevistar pessoas.

O projeto Lições Aprendidas da SIGAR não enfrentou tais restrições. As entrevistas foram realizadas entre 2014 e 2018, principalmente com funcionários que serviram durante os anos Bush e Obama.

Cerca de 30 registros de entrevistas estão transcritos, palavra por palavra. O restante são resumos datilografados de conversas: páginas de anotações e citações de pessoas com diferentes pontos de vista no conflito, de postos avançados nas províncias aos mais altos círculos de poder.

Algumas das entrevistas são inexplicavelmente curtas. A entrevista com John Allen, o general da Marinha que comandou as forças da Otan e dos EUA no Afeganistão de 2011 a 2013, tem apenas cinco parágrafos.

Por outro lado, o ex-embaixador americano Ryan Crocker, outra figura influente, participou de duas entrevistas que renderam 95 páginas transcritas.

Diferentemente dos Documentos do Pentágono, nenhum dos documentos das Lições Aprendidas foi originalmente classificado como segredo do governo. Porém, depois que o Washington Post fez pressão para torná-los públicos, outras agências federais intervieram e tornaram parte do material confidencial.

O Departamento de Estado, por exemplo, afirmou que a liberação de partes de certas entrevistas poderia comprometer as negociações com o Talibã para encerrar a guerra. O Departamento de Defesa e a Administração de Repressão às Drogas também tornaram confidenciais alguns trechos de entrevistas.

As entrevistas das Lições Aprendidas contêm poucas revelações sobre operações militares. Mas há uma torrente de críticas que refutam a narrativa oficial da guerra, desde seus primeiros dias até o início do governo Trump.

No início, por exemplo, a invasão do Afeganistão tinha um objetivo claro e declarado – retaliar a al-Qaeda e impedir a repetição dos ataques de 11 de setembro de 2001.

No entanto, as entrevistas mostram que, à medida que a guerra se arrastava, os objetivos e a missão continuavam mudando e a falta de fé na estratégia americana contaminou o Pentágono, a Casa Branca e o Departamento de Estado.

Discordâncias profundas não foram resolvidas. Algumas autoridades americanas queriam usar a guerra para transformar o Afeganistão em uma democracia. Outros queriam transformar a cultura afegã e promover os direitos das mulheres. Outros ainda queriam reformular o equilíbrio regional de poder entre Paquistão, Índia, Irã e Rússia.

"Com a estratégia da AfPak, havia um presente debaixo da árvore de Natal para todos", disse um funcionário americano anônimo, em 2015. "No fim, você tinha tantas prioridades e aspirações que parecia que não havia nenhuma estratégia".

As entrevistas das Lições Aprendidas também revelam como os comandantes militares dos Estados Unidos lutavam para explicar contra quem estavam lutando, sem falar no porquê.

O inimigo era a al-Qaeda ou o Talibã? O Paquistão era um amigo ou um adversário? E o Estado Islâmico e a impressionante variedade de jihadistas estrangeiros, sem falar nos senhores da guerra na folha de pagamento da CIA? De acordo com os documentos, o governo americano nunca definiu uma resposta.

Como resultado, no campo, as tropas americanas muitas vezes não conseguiam distinguir o amigo do inimigo.

"Eles achavam que eu iria até eles com um mapa para mostrar onde mocinhos e bandidos vivem", disse um ex-conselheiro anônimo de uma equipe das Forças Especiais do Exército a entrevistadores do governo em 2017. "Foram necessárias várias conversas para que eles entendessem que eu não tinha essa informação em minhas mãos. No começo, eles continuavam perguntando: 'Mas quem são os bandidos, onde estão?'"

O soldado Terry Heise grita de dor enquanto os médicos da Força-Tarefa Shadow cuidam de um ferimento em sua perna após um acidente de carro na província de Kandahar, Afeganistão, em 10 de outubro de 2010. O PFC do exército Jeff Springer, à esquerda, e o sargento Rodrigo Santos são transportados com Heise depois que um IED explodiu sob seu veículo, matando outros dois soldados. Os três sobreviveram, mas com ferimentos nas extremidades inferiores; um perdeu um pé | Foto: Washington Post/Linda Davidson
O soldado Terry Heise grita de dor enquanto os médicos da Força-Tarefa Shadow cuidam de um ferimento em sua perna após um acidente de carro na província de Kandahar, Afeganistão, em 10 de outubro de 2010. O PFC do exército Jeff Springer, à esquerda, e o sargento Rodrigo Santos são transportados com Heise depois que um IED explodiu sob seu veículo, matando outros dois soldados. Os três sobreviveram, mas com ferimentos nas extremidades inferiores; um perdeu um pé | Foto: Washington Post/Linda Davidson| The Washington Post

A visão do Pentágono não era mais clara.

"Não sei quem são os bandidos", reclamou Rumsfeld em setembro de 2003. "Somos terrivelmente deficientes em inteligência".

Dinheiro rolando solto

"A época dos cheques em branco terminou (...) Deve ficar claro que os afegãos terão que assumir a responsabilidade por sua segurança e que os EUA não têm interesse em travar uma guerra sem fim no Afeganistão".

Barack Obama, em um discurso na Academia Militar americana de West Point, Nova York

Como comandantes em chefe, Bush, Obama e Trump prometeram ao público a mesma coisa. Eles evitaram cair na armadilha da "construção da nação" no Afeganistão.

Nesse ponto, os presidentes falharam miseravelmente. Os Estados Unidos destinaram mais de US$ 133 bilhões para construir o Afeganistão - mais do que o país gastou para revitalizar toda a Europa Ocidental com o Plano Marshall após a Segunda Guerra Mundial.

As entrevistas do projeto Lições Aprendidas mostram que o grandioso projeto de construção da nação foi prejudicado desde o início.

As autoridades americanas tentaram criar - a partir do zero - um governo democrático em Cabul, modelado com base no governo de Washington. Era um conceito estranho para os afegãos, acostumados ao tribalismo, monarquismo, comunismo e à lei islâmica.

"Nossa política era criar um governo central forte, o que era idiotice, porque o Afeganistão não tem um histórico de governo central forte", disse um ex-funcionário do Departamento de Estado não identificado a entrevistadores do governo em 2015. "O prazo para a criação de um governo central forte é de 100 anos, um tempo que não tínhamos".

Enquanto isso, os Estados Unidos inundaram o frágil país com muito mais ajuda do que ele poderia absorver.

Durante o auge dos combates, de 2009 a 2012, os legisladores e comandantes militares dos EUA acreditavam que, quanto mais gastassem em escolas, pontes, canais e outros projetos de obras civis, mais rapidamente a segurança melhoraria. Os trabalhadores das missões humanitárias disseram aos entrevistadores do governo que se tratava de um erro colossal, semelhante a jogar gasolina em uma fogueira que estava apagando só para manter a chama viva.

Um executivo da Agência para o Desenvolvimento Internacional (USAID) disse que 90% do que gastaram foi um exagero: "Perdemos a objetividade. Recebemos dinheiro, fomos instruídos a gastá-lo e o fizemos, sem motivo".

Muitos trabalhadores das missões humanitárias culparam o Congresso pelo que viram como uma corrida sem sentido para gastar.

Um empreiteiro não identificado disse aos entrevistadores do governo que ele esperava distribuir US$ 3 milhões por dia para projetos em um único distrito afegão, aproximadamente do tamanho de um condado dos EUA. Certa vez, ele perguntou a um congressista que visitava o Afeganistão se o legislador poderia gastar essa quantia nos EUA: "Ele disse que não. 'Bem, senhor, é isso que você acabou de nos obrigar a gastar e estou fazendo isso por comunidades que vivem em cabanas de barro sem janelas’".

A enorme quantidade de dinheiro que Washington gastou no Afeganistão também deu origem a níveis nunca vistos de corrupção.

Em público, os funcionários americanos insistiam que não toleravam corrupção. Mas nas entrevistas do Lições Aprendidas eles admitiram que governo dos EUA fazia vista grossa quando autoridades afegãs - aliadas de Washington - roubavam impunemente.

Christopher Kolenda, coronel do Exército que se deslocou várias vezes ao Afeganistão e aconselhou três generais encarregados da guerra, disse que o governo afegão, liderado pelo presidente Hamid Karzai, havia se "transformado em uma cleptocracia" em 2006 - e que as autoridades americanas não reconheceram a ameaça que isso representava para sua estratégia.

"Gosto de fazer uma analogia com o câncer", disse Kolenda a entrevistadores do governo. "A corrupção pequena é como o câncer de pele; existem maneiras de lidar com isso e você provavelmente ficará bem. A corrupção nos ministérios, no alto escalão, é como o câncer de cólon; é pior, mas, se você descobrir a tempo, provavelmente ficará bem. A cleptocracia, no entanto, é como câncer no cérebro; é fatal".

Ao permitir que a corrupção se espalhasse, os funcionários americanos disseram a entrevistadores que ajudaram a destruir a legitimidade popular do instável governo afegão que estavam lutando para sustentar. Com juízes, chefes de polícia e burocratas exigindo subornos, muitos afegãos não viram com bons olhos a democracia e se voltaram para o Talibã para fazer cumprir a ordem.

"Nosso maior projeto individual, infelizmente e sem querer, é claro, pode ter sido o desenvolvimento de corrupção em massa", disse Crocker, o principal diplomata dos EUA em Cabul em 2002 e novamente entre 2011 e 2012. Ele acrescentou: "Quando chega ao nível que vi, quando eu estava lá, é algo inacreditavelmente difícil e impossível de consertar".

O exército afegão e o ópio

"Este exército e essa força policial têm sido muito, muito eficazes no combate aos insurgentes todos os dias. E acho que é uma história importante a ser contada em todos os sentidos".

Ex-tenente-general do exército Mark A. Milley, elogiando as forças de segurança afegãs durante uma coletiva de imprensa de Cabul. Milley é agora general de quatro estrelas e chefe do Estado-Maior Conjunto.

Ano após ano, os generais americanos disseram publicamente que estavam fazendo progressos constantes no eixo central de sua estratégia: criar um exército afegão robusto e uma força policial nacional capazes de defender o país sem ajuda estrangeira.

Nas entrevistas do Lições Aprendidas, no entanto, treinadores militares descreveram as forças de segurança afegãs como incompetentes, desmotivadas e cheias de desertores. Eles também acusaram os comandantes afegãos de embolsar salários - pagos pelos contribuintes americanos - de dezenas de milhares de "soldados fantasmas".

Ninguém acreditava que o exército e a polícia afegãos pudessem se defender, muito menos derrotar o Talibã por conta própria. Mais de 60.000 membros das forças de segurança afegãs foram mortos, uma taxa de baixas que os comandantes americanos disseram ser insustentável.

Um soldado americano não identificado disse que as equipes das Forças Especiais "odiavam" a polícia afegã com quem treinavam e trabalhavam, chamando-as de "horrível - o fundo do poço no país que já está no fundo do poço".

Um militar americano estimou que um terço dos recrutas da polícia eram "viciados em drogas ou talibãs". Outro os chamava de "ladrões tolos" que roubavam tanto combustível das bases dos EUA que estavam sempre cheirando à gasolina.

"Pensar que poderíamos construir as forças armadas tão rapidamente e tão bem era insano", disse uma alta autoridade da USAID a entrevistadores do governo.

Enquanto os Estados Unidos perdiam as esperanças de criar uma força de segurança local, o Afeganistão se tornava o principal fornecedor mundial de um flagelo crescente: o ópio.

Os Estados Unidos gastaram cerca de US$ 9 bilhões para combater o problema nos últimos 18 anos, mas os agricultores afegãos estão cultivando mais papoulas do que nunca. No ano passado, o Afeganistão foi responsável por 82% da produção global de ópio, de acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime.

Nas entrevistas do programa federal, ex-funcionários disseram que quase tudo o que fizeram para restringir o cultivo do ópio deu errado.

"Declaramos que nosso objetivo era estabelecer uma 'economia de mercado próspera'", disse Douglas Lute, czar de guerra da Casa Branca de 2007 a 2013. "Achei que deveríamos especificar um comércio próspero de drogas - essa é a única parte do mercado que está funcionando".

Desde o início, Washington nunca encontrou uma forma de  incorporar uma guerra às drogas à sua guerra contra a al-Qaeda. Em 2006, as autoridades americanas temiam que os narcotraficantes se tornassem mais fortes que o governo afegão e que o dinheiro do comércio de drogas alimentasse a insurgência.

Nenhuma agência ou país ficou encarregado da estratégia antidrogas do Afeganistão por toda a guerra; portanto, o Departamento de Estado, o Departamento Antidrogas (DEA), os militares americanos, aliados da Otan e governo afegão batiam cabeça constantemente.

"Era uma bagunça do cão sem chance de dar certo", disse uma ex-alta autoridade britânica não identificada a entrevistadores do governo americano.

As agências e aliados pioraram as coisas ao adotar uma confusão ineficaz de programas, de acordo com as entrevistas.

A princípio, os agricultores afegãos que cultivavam papoula eram pagos pelos britânicos para que destruíssem suas colheitas - o que apenas os encorajou a produzir mais no plantio seguinte. Mais tarde, o governo americano erradicou os campos de papoulas sem pagar indenização - o que apenas enfureceu os agricultores e os incentivou a ficarem do lado do Talibã.

"Foi triste ver tantas pessoas se comportando tão estupidamente", disse um funcionário dos EUA.

As mentiras

"Estamos perdendo esta guerra? De jeito nenhum. O inimigo pode vencer? De jeito nenhum".

Major-general do Exército Jeffrey Schloesser, comandante da 101ª Divisão Aerotransportada, em uma entrevista coletiva do Afeganistão

O espectro do Vietnã pairou sobre o Afeganistão desde o início.

Em 11 de outubro de 2001, alguns dias de os Estados Unidos começarem a bombardear o Talibã, um repórter perguntou a Bush: "Você será capaz de evitar ser arrastado para um atoleiro semelhante ao Vietnã no Afeganistão?"

"Aprendemos algumas lições muito importantes no Vietnã", respondeu Bush com confiança. "As pessoas costumam me perguntar: 'Quanto tempo isso vai durar?' Essa frente de batalha em particular durará o tempo necessário para levar a al-Qaeda à justiça. Pode acontecer amanhã, daqui a um mês, daqui a um ano ou dois. Mas vamos vencer".

Naquele tempo, outros líderes dos EUA zombavam da ideia de que o pesadelo do Vietnã se repetiria no Afeganistão. Durante a guerra afegã, porém, os documentos mostram que oficiais militares dos EUA recorreram a uma tática antiga do Vietnã - a de manipular a opinião pública.

O general da Força Aérea Richard Myers (E), presidente do Estado-Maior Conjunto, e o secretário de Defesa Donald Rumsfeld durante uma coletiva de imprensa em 4 de março de 2002 no Pentágono falando sobre dois helicópteros americanos que caíram no Afeganistão | Foto: Washington Post/Robert A. Reeder
O general da Força Aérea Richard Myers (E), presidente do Estado-Maior Conjunto, e o secretário de Defesa Donald Rumsfeld durante uma coletiva de imprensa em 4 de março de 2002 no Pentágono falando sobre dois helicópteros americanos que caíram no Afeganistão | Foto: Washington Post/Robert A. Reeder| The Washington Post

Em coletivas de imprensa e outras aparições públicas, os responsáveis ​​pela falaram as mesmas coisas por 18 anos. Não importava como a guerra estava indo - e principalmente se estava indo mal - eles diziam que estavam fazendo progresso.

Por exemplo, trechos do livro de memórias de Rumsfeld mostram que ele recebeu uma série de avisos extraordinariamente assustadores da zona de guerra em 2006.

Depois de retornar de uma missão de investigação ao Afeganistão, Barry McCaffrey, general aposentado do Exército, informou que o Talibã havia retornado de forma impressionante e previu: "teremos surpresas muito desagradáveis ​​nos próximos 24 meses".

"Os líderes nacionais afegãos temem que deixemos o Afeganistão nos próximos anos - deixando o problema nas mãos da Otan - e de que tudo entre em colapso novamente", escreveu McCaffrey em junho de 2006.

Dois meses depois, Marin Strmecki, conselheiro civil de Rumsfeld, entregou ao chefe do Pentágono um relatório confidencial de 40 páginas cheio de más notícias. Ele disse que "o descontentamento popular está crescendo" contra o governo afegão por causa de sua corrupção e incompetência. Ele também disse que o Talibã estava ficando mais forte, graças ao apoio do Paquistão, aliado dos EUA.

No entanto, com a bênção pessoal de Rumsfeld, o Pentágono enterrou os avisos sombrios e contou ao público uma história muito diferente.

Em outubro de 2006, os redatores de discurso de Rumsfeld entregaram um artigo intitulado "Afeganistão: cinco anos depois". Repleto de otimismo, o relatório destacava mais de 50 fatos e números promissores, desde o número de mulheres afegãs treinadas em "gerenciamento aprimorado de aves" (mais de 19.000) até a "velocidade média na maioria das estradas".

"Cinco anos mais tarde, há muitas boas notícias", dizia o texto. "Embora em alguns círculos tenha virado moda chamar o Afeganistão de uma guerra esquecida ou dizer que os Estados Unidos perderam o foco, os fatos desmentem os mitos".

Rumsfeld achou o texto brilhante.

"Este artigo", escreveu ele em um memorando, "é excelente. Como o usaremos? Deve ser um artigo? Um artigo de opinião? Uma apostila? Um livro? Uma coletiva de imprensa? Todas as opções acima? Acho que isso deve chegar a muitas pessoas ".

Seus funcionários cuidaram disso. Eles distribuíram uma versão para os repórteres e a publicaram nos sites do Pentágono.

Desde então, os generais dos EUA quase sempre pregam que a guerra está progredindo bem, não importa a realidade no campo de batalha.

"Estamos fazendo progresso constante", disse o major-general Jeffrey Schloesser, comandante da 101ª Divisão Aerotransportada, em setembro de 2008, mesmo que ele e outros comandantes dos EUA em Cabul estivessem pedindo reforços urgentes para lidar com o aumento de combatentes talibãs.

Dois anos mais tarde quando a taxa de baixas entre as tropas dos EUA e da Otan chegou a outro patamar, o tenente-general do Exército David Rodriguez deu uma entrevista coletiva em Cabul.

"Primeiramente, estamos constantemente progredindo", disse ele.

Em março de 2011, durante audiências no Congresso, parlamentares céticos atacaram o general David H. Petraeus, comandante das forças dos EUA e da Otan no Afeganistão, duvidando que a estratégia dos EUA estivesse funcionando.

"Nos últimos oito meses, houve um progresso importante, mas à custa de muita luta", respondeu Petraeus.

Um ano mais tarde, durante uma visita ao Afeganistão, o secretário de Defesa, Leon Panetta, seguiu o mesmo roteiro - mesmo após ter escapado de um ataque suicida.

"A campanha, como já mostrei antes, acho que fez um progresso significativo", disse Panetta a repórteres.

Em julho de 2016, após uma onda de ataques do Talibã às principais cidades, o general do exército John W. Nicholson Jr., comandante das forças americanas no Afeganistão na época, repetiu o refrão.

"Estamos vendo algum progresso", disse ele a repórteres.

Os números distorcidos da guerra

"No futuro, não manteremos o curso cegamente. Em vez disso, definiremos métricas claras para medir o progresso e nos responsabilizar".

Obama, em discurso na Casa Branca

Durante o Vietnã, os comandantes militares dos EUA confiaram em números duvidosos para convencer os americanos de que estavam vencendo.

O Pentágono ficou famoso por destacar a "contagem de corpos" ou o número de combatentes inimigos mortos e por ter inflado os números como uma medida de sucesso.

No Afeganistão, com algumas exceções, os militares dos EUA geralmente evitam divulgar a contagem de corpos. Mas as entrevistas do Lições Aprendidas contêm inúmeras admissões de que o governo rotineiramente divulgava estatísticas que os funcionários sabiam serem distorcidas, falsas ou totalmente falsas.

Um caixão com o corpo do major-general do exército Harold Greene, 55 anos, chega à Base da Força Aérea de Dover em Delaware em 7 de agosto de 2014. Greene, morto em 5 de agosto de 2014 em Cabul, foi o primeiro general dos EUA morto no Iraque ou no Afeganistão | Foto: Washington Post/Linda Davidson
Um caixão com o corpo do major-general do exército Harold Greene, 55 anos, chega à Base da Força Aérea de Dover em Delaware em 7 de agosto de 2014. Greene, morto em 5 de agosto de 2014 em Cabul, foi o primeiro general dos EUA morto no Iraque ou no Afeganistão | Foto: Washington Post/Linda Davidson| Linda Davidson

Uma pessoa identificada apenas como uma autoridade sênior do Conselho de Segurança Nacional disse que havia pressão constante da Casa Branca e do Pentágono sob a administração Obama para produzir números que mostrassem que o aumento de tropas de 2009 a 2011 estava dando certo, apesar de fortes sinais em contrário.

"Era impossível criar boas métricas. Tentamos usar números de soldados treinados, níveis de violência, controle de território e nada disso nos dava uma imagem precisa", disse o alto funcionário do Conselho em 2016. "As métricas sempre foram manipuladas".

Mesmo quando a contagem de vítimas e outros números pareciam ruins, disse um alto funcionário do Conselho, a Casa Branca e o Pentágono as manipulavam a um ponto absurdo. Os atentados suicidas em Cabul foram retratados como um sinal do desespero do Talibã, um sinal de que os insurgentes eram fracos demais para se envolver em combate direto. Enquanto isso, o aumento nas mortes de soldados americanos foi citado como prova de que as forças americanas estavam levando a luta até o inimigo.

"Foram as explicações deles", disse o alto funcionário. "Por exemplo, os ataques estão piorando? 'Isso ocorre porque há mais alvos para eles atirarem, então mais ataques são um falso indicador de instabilidade'. Então, três meses mais tarde, os ataques ainda estão piorando: 'É porque o Talibã está ficando desesperado, então é realmente um sinal de que estamos vencendo'".

"E isso continuou por duas razões", disse o alto funcionário do Conselho, "para causar boa impressão e para fazer crer que os soldados e os recursos adicionais estavam tendo o tipo de efeito e que a remoção deles faria o país se deteriorar".

Em outros relatórios de campo enviados à cadeia de comando, oficiais militares e diplomatas seguiram a mesma linha. Independentemente das condições no terreno, eles alegavam que estavam fazendo progresso.

"Desde os embaixadores até os funcionários do mais baixo escalão, todos dizem que estamos fazendo um ótimo trabalho", disse em 2015 Michael Flynn, general de três estrelas aposentado do Exército. "Sério? Então, se estamos fazendo um ótimo trabalho, por que parece que estamos perdendo?".

Ao chegar ao Afeganistão, os comandantes da brigada e do batalhão do Exército dos EUA receberam a mesma missão básica: proteger a população e derrotar o inimigo, de acordo com Flynn, que serviu várias vezes no Afeganistão como oficial de inteligência.

"Então todos eram enviados para missões de nove meses ou seis meses, e recebiam essa tarefa, a aceitavam e a executavam", disse Flynn, que mais tarde serviu brevemente como consultor de segurança nacional de Trump, perdeu o emprego em um escândalo e foi condenado por mentir ao FBI. "Então todos diziam que, quando iam embora, haviam cumprido essa missão. Todos os comandantes. Nenhum comandante vai deixar o Afeganistão (...) e dizer: 'Sabe, não cumprimos nossa missão'".

Ele acrescentou: "Então, o próximo cara que aparece acha que [a área deles] está uma bagunça (...) e então eles voltam e dizem: 'Cara, isso é muito ruim'".

Bob Crowley, coronel aposentado do Exército que atuou como consultor de contrainsurgência no Afeganistão em 2013 e 2014, disse aos entrevistadores do governo que "a verdade raramente é bem-vinda" no quartel-general de Cabul.

"As más notícias costumavam ser omitidas", disse ele. "Havia mais liberdade para compartilhar más notícias se elas fossem pontuais - estávamos atropelando crianças com nossos MRAPs [veículos blindados] - porque essas coisas podem ser alteradas com as diretrizes políticas. Mas, quando tentamos expor maiores preocupações estratégicas sobre a disposição, capacidade ou corrupção do governo afegão, fica claro que isso não é bem-vindo".

John Garofano, estrategista da Escola Naval de Guerra que assessorou os fuzileiros navais na província de Helmand em 2011, disse que oficiais dedicavam uma quantidade desmedida de recursos à elaboração de gráficos coloridos que anunciavam resultados positivos.

"Eles tinham uma máquina muito cara que imprimia grandes pedaços de papel como em uma gráfica", disse ele a entrevistadores do governo. "Havia uma ressalva de que aqueles não eram realmente números científicos, ou que não havia um processo científico por trás daquilo".

Garofano, porém, disse que ninguém se atrevia a questionar se os gráficos e números eram confiáveis ​​ou relevantes.

"Não havia disposição para responder a perguntas como ‘qual é o significado desse número de escolas que você construiu?’, ‘Como isso o levou a alcançar seu objetivo?’", disse. "Como você pode dizer que isso é um sinal de sucesso, e não apenas um sinal de esforço e de que você está só fazendo uma coisa boa?"

Outras autoridades disseram ter dado grande importância a uma estatística específica, embora fosse uma estatística que o governo dos EUA raramente gosta de discutir em público.

"Acho que a principal referência foi a que sugeri: a do número de afegãos mortos", disse James Dobbins, ex-diplomata dos EUA, em um painel do Senado em 2009. "Se o número está aumentando, você está perdendo. Se o número está diminuindo, você está ganhando. Simples assim".

Em 2018, 3.804 civis afegãos foram mortos na guerra, segundo as Nações Unidas.

Este é o maior número para um ano desde que as Nações Unidas começaram a rastrear as vítimas, há uma década.

Conteúdo editado por:Isabella Mayer de Moura
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