Quarenta anos após o encerramento do Concílio Vaticano II, os acontecimentos daquele início dos anos 60 ainda estão presentes na memória dos bispos participantes. O concílio foi um divisor de águas na história recente da Igreja porque trouxe uma nova maneira de apresentar a doutrina católica, mais positiva e sem repetidas condenações; impulsionou o diálogo da Igreja com o mundo moderno e outras religiões; e solicitou uma revisão no ritual da missa, adotando os idiomas de cada país. Posições que mobilizaram os maiores líderes católicos do mundo, que ditaram os rumos das discussões e, mesmo sem querer, acabaram se tornando as "estrelas" do concílio.
Segundo dom José de Aquino Pereira, bispo emérito de São José do Rio Preto (SP), todos os quase 2.600 prelados que passavam os dias na Basílica de São Pedro podiam ser considerados protagonistas do grande evento. "Antes mesmo de ir a Roma, já conhecíamos alguns nomes que tinham projeção internacional na Igreja", lembra dom Waldyr Calheiros, bispo emérito de Volta Redonda (RJ). Como exemplo, ele cita o cardeal belga Leo Suenens: "sua habilidade pastoral e sua concepção de Igreja como comunidade já tinham chegado até nós." Foi Suenens quem trabalhou para que a Igreja fosse definida como "povo de Deus". Belgas, holandeses, austríacos, alemães, suíços e franceses se organizaram, logo no começo do Vaticano II, em um grupo que ganharia o nome de Aliança Européia e seria responsável por uma reviravolta no concílio, derrubando aos poucos o programa que a Cúria Romana desejava discutir e impondo sua própria agenda.
Auxílio
Um dos grandes líderes desta ala era o cardeal-arcebispo de Colônia (Alemanha), Josef Frings. Foi sugestão sua, por exemplo, que o tema da Virgem Maria fosse um capítulo da constituição dogmática sobre a Igreja, em vez de formar um documento próprio. "Ele já tinha muitos problemas de visão, então quando tinha algum discurso para fazer, preparava por escrito e pedia a um sacerdote, perito que havia trazido da Alemanha, para ler a intervenção", recorda dom Francisco de Mesquita Filho, bispo emérito de Afogados da Ingazeira (PE). O perito, de menos de 40 anos, era o padre Joseph Ratzinger hoje Papa Bento XVI.
Frings foi o responsável por um dos momentos mais tensos do Concílio. Em 8 de novembro de 1963, ele lançou um ataque contra os métodos do Santo Ofício (atual Congregação para a Doutrina da Fé), chefiado à época pelo cardeal Alfredo Ottaviani. "O Santo Ofício não se adapta às necessidades do nosso tempo. Ele causa grande dano ao fiel e se torna motivo de escândalo", afirmou, provocando uma resposta furiosa do italiano.
"Ottaviani marcou pelo amor que tinha à Igreja", define dom Jaime Coelho, arcebispo emérito de Maringá. Como o cardeal fosse avesso às mudanças, circulava uma piada em Roma segundo a qual Ottaviani entrava em um táxi e dizia ao motorista "para o Concílio, por favor", e recebia a resposta "o senhor quer dizer Trento?", uma referência ao concílio do século 16, convocado para combater o protestantismo.
Lefèbvre
No campo dos bispos que pretendiam barrar a Aliança Européia estava o francês Marcel Lefèbvre, que havia sido missionário na África. Ele era o presidente do Coetus Internationalis Patrum, grupo fundado pelo brasileiro dom Geraldo Sigaud, arcebispo de Diamantina (MG). "Não eram muitos, cerca de 50 ou 60 padres conciliares. Queríamos ouvir os argumentos deles também", conta dom Waldyr. Um dos maiores opositores dos esquemas sobre a reforma litúrgica e a liberdade religiosa, Lefèbvre seria excomungado por João Paulo II em 1988, após ordenar quatro bispos sem a permissão do Papa.
Entre os partidários de mais reformas, dom Jaime também cita o cardeal Giacomo Lercaro, arcebispo de Bolonha. "A cidade era a sede do Partido Comunista Italiano. Ele foi muito importante para a abertura da Igreja às questões sociais", recorda. Dom Francisco lembra com admiração do patriarca melquita Maximos IV Saigh. "Ele falava em francês, e não em latim; acho que de propósito. Um dia, disse que a Igreja não tinha sido criada por Deus para fabricar pecados, mas para acabar com eles. Era o Espírito Santo falando por ele", diz o bispo.
Além do atual Papa, estavam no concílio seus dois predecessores: Albino Luciani, que se tornaria João Paulo I, era bispo de Vittorio Veneto, na Itália; o polonês Karol Wojtyla, que seria João Paulo II, começou o concílio como bispo auxiliar de Cracóvia e terminou como arcebispo da mesma cidade. "Ele se sentava perto de mim nas primeiras sessões. Uma vez eu lhe disse que o invejava, porque conseguia falar com vários bispos em suas próprias línguas, enquanto eu só sabia italiano, latim e um português não muito fluente", lembra dom Armando Cirio, arcebispo emérito de Cascavel e italiano de nascimento.



