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A crise de disponibilidade de água para o abastecimento das grandes cidades pela qual o Brasil está passando tem sido amplamente discutida na imprensa a partir de vários episódios distintos. O que chamou mais a atenção, de início, foram as explicações e especulações, nem sempre claras e convincentes, das autoridades e das concessionárias prestadoras do serviço de abastecimento de água, de que o estresse hídrico ora resultará em racionamento, ora em multas para os consumidores perdulários.

Mas as iniciativas dos cidadãos consumidores de água, pouco a pouco, vêm recebendo uma atenção cada vez maior na imprensa. São iniciativas para poupar ou reaproveitar a água utilizada domesticamente que aguçam a curiosidade das pessoas e são registradas em vídeos feitos com o celular, intensamente compartilhados depois de postados na internet. Enfim, o consumidor de água criativo e parcimonioso virou celebridade e um exemplo a ser seguido.

Entretanto, dentre todas essas iniciativas, uma particularmente despertou a minha curiosidade. Um colega advogado de São Paulo, Marco Antonio Silva, está protagonizando a defesa dos consumidores da empresa concessionária do serviço de abastecimento paulistano perante o Poder Judiciário e vem obtendo alguns resultados bastante expressivos. Em síntese, já são pelo menos duas sentenças de mérito favoráveis aos consumidores proferidas pelo Poder Judiciário paulista (processos nº 1002384-28.2014.8.26.0001 e nº 1015733-98.2014.8.26.0001) em ações patrocinadas pelo colega com o seguinte argumento: o art. 22 do Código de Defesa do Consumidor assegura que serviços essenciais (como é o abastecimento de água) devem ser prestados continuamente e as prestadoras desses serviços podem ser compelidas a prestá-los forçadamente ou a reparar os danos provocados pela sua interrupção.

Em outras palavras, a concessionária foi condenada a manter o abastecimento do consumidor continuamente, independentemente da situação de estresse hídrico, em vista da característica essencial do serviço. É certo que a concessionária tem brandido nesses e em outros processos o argumento de que, na situação atual, o interesse particular de consumidores específicos teria de ser relativizado diante do panorama negativo que é enfrentado pelo público em geral. Ou seja, a concessionária tem de diminuir a pressão ou interromper o abastecimento de alguns para salvar o sistema como um todo. Entretanto, esse argumento não está seduzindo o Judiciário paulista, mesmo porque, e com o devido respeito, parece ser nitidamente inconsistente.

Afinal, a imprensa, que vem noticiando os feitos do colega advogado, informou inclusive que os vizinhos dos consumidores tutelados pelo Poder Judiciário também foram beneficiados, em vista da instalação de aparelhos pela concessionária que garantem a chegada da água até as torneiras com pressão suficiente o tempo todo, em cumprimento às decisões judiciais. Ou seja, em vista da natureza coletiva do direito do consumidor do serviço de abastecimento de água, a tutela do direito de um acabou por satisfazer, na prática, o direito dos outros.

Mas, apesar de positiva a notícia de que o Poder Judiciário vem tutelando o direito dos cidadãos paulistanos ao abastecimento de água, ela também evidencia o modo como pensa a intelligentsia do sistema de gestão de água (que não se limita à concessionária do serviço de abastecimento, que é somente parte desse sistema). O argumento de que o direito do cidadão consumidor pode ser sacrificado por causa da situação de estresse hídrico não só é inconsistente do ponto de vista jurídico, como também evidencia que o sistema de gestão de recursos hídricos é incapaz de entender que ele existe justamente para satisfazer o direito do cidadão. Além disso, e infelizmente, ele se mostra relutante em fazer uma autocrítica e realizar as mudanças internas necessárias para que cumpra eficientemente o seu mister institucional.

Aliás, a crença do setor de que apenas obras de ampliação da infraestrutura de captação e tratamento de água são suficientes para garantir segurança hídrica, de que podem ser negligenciadas as obras de manutenção da rede de distribuição (que têm perdas elevadíssimas de preciosa água já tratada), de que as iniciativas de aproveitamento de água de chuva nas edificações não precisam ser estimuladas (inclusive financeiramente), e de que as medidas não estruturais (como a conservação ambiental de nascentes e das margens de reservatórios) são "ecochatices" é que me parece ser a verdadeira causa do estresse hídrico atual. Em outras palavras, São Pedro é totalmente inocente das acusações que essa mesma intelligentsia tem feito contra ele.

Enfim, diante desse contexto, parece-me que enquanto o sistema de gestão de recursos hídricos não for capaz de se reinventar e passar a agir em razão dos interesses do cidadão consumidor, o Poder Judiciário pode e deve continuar a intervir em defesa do cidadão consumidor do serviço de abastecimento. Afinal de contas, a água nossa de cada dia é um direito. Ou não é?

Rafael Ferreira Filippin, advogado especialista em Gestão de Recursos Hídricos pela UFPR, mestre em Direito Ambiental pela UFSC, doutorando em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR, é ex-conselheiro do Conselho Nacional do Meio Ambiente e do Conselho Estadual dos Recursos Hídricos e professor de Direito Ambiental.

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