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Opinião 2

A eutanásia dos desassistidos

Mistanásia. Poucos conhecem de imediato o significado dessa palavra que traduz, em quatro sílabas, a dor e o sofrimento impostos à sociedade pela desassistência. São homens, mulheres e crianças que nem têm a chance de se tornarem pacientes. Morrem antes, pois não conseguem ingressar efetivamente no sistema de atendimento. Ou pior: mesmo acolhidos num hospital ou pronto-socorro, não recebem o diagnóstico e o tratamento que esperam.

Num país como o Brasil, pretensamente recém-ingressado no clube das economias mais poderosas do planeta, soa estranho falar sobre mistanásia, que alguns especialistas em bioética chamam de "eutanásia social". Mas é uma situação que infelizmente nos ronda. Há alguns meses uma reportagem de televisão apresentou o drama de uma criança paraense que, mesmo cuidada por uma médica, não conseguiu leito de internação e acabou morrendo. O martírio dessa menina e o desespero da colega que a acompanhava – testemunhados pelas câmaras – comprovam que a mistanásia no Brasil existe. Como esse caso, há milhares de outros, anônimos, absorvidos pelas estatísticas.

Entendo que o governo – em diferentes esferas – até tem procurado fazer algo para evitar situações desse tipo. Contudo, é inegável que falta mais, especialmente por conta de pecados cometidos pelos gestores do Sistema Único de Saúde (SUS). A exemplo dos avestruzes diante do perigo, eles escondem a cabeça na areia, como se isso os livrasse da ameaça.

É preciso encarar o problema de frente. Os gestores devem entender que a condução de um sistema baseado nas diretrizes da universalidade, integralidade e equidade no acesso necessita de uma visão estruturante. As decisões não podem buscar respostas imediatas e muito menos midiáticas. O brasileiro precisa – e espera – de soluções permanentes, de longo prazo. Não queremos atalhos e improvisos, mas um caminho bem sinalizado, que nos afaste da sedução do mais fácil.

Nos últimos meses, é evidente que os gestores já escolheram um culpado, sobre o qual – no entendimento deles – deve recair o peso de todos os males da desassistência. Elegeram o médico (ou a falta dele) como o responsável pela agonia dos brasileiros, especialmente dos que têm amparo apenas no SUS. Desde então, a categoria médica se tornou o alvo de uma ação coordenada que oferece à sociedade placebo em lugar de remédio efetivo para o tratamento de suas demandas. Ressalte-se que se trata de categoria sem carreira, com salário irrisório (quando servidores públicos) ou remuneração paga pela Tabela SUS (quando prestador), cujos valores são aviltantes.

Apesar da alegada preocupação com "a falta de médicos", o país não ouviu ainda os gestores anunciarem mais recursos para a saúde e nem mudanças no modelo de gestão. Eles muito menos apresentaram medidas que qualifiquem a estrutura de atendimento nos municípios mais pobres e distantes e estimulem a fixação de médicos e outros profissionais da saúde nestas localidades. É como se vivêssemos no Reino das Águas Claras, onde a presença de um estetoscópio basta para recuperar a saúde do paciente.

A responsabilidade é bem maior e os médicos não arcarão com o ônus dessa fatura que, no nosso entender, nada mais é que a expressão da mistanásia social no Brasil. Em defesa da vida, os médicos não permitirão a manutenção desse pacto e nem a impunidade de seus signatários.

Roberto Luiz d’Avila é presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM).

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