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80 anos sem guerra mundial graças à invenção da bomba atômica?

Teste Trinity realizado em Alamogordo, no estado do Novo México, EUA, em 16 de Julho de 1945 (Foto: US Govt. Defense Threat Reduction Agency/ Domínio público)

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Em 16 de julho de 2025 completou 80 anos do teste da mais emblemática das invenções humanas da era contemporânea. Trata-se da explosão da primeira bomba atômica, um produto originado do até então secreto Projeto Manhattan, concebido e executado nos Estados Unidos da América (EUA) com a finalidade de construção de armas de fissão nuclear dos elementos químicos Urânio (U) e Plutônio (Pu).

A arma nuclear ou bomba atômica denominada apenas de Gadget explodiu em Alamogordo, na reserva militar de White Sands, cerca de 300 km de Los Alamos, sede científica e tecnológica do Projeto, no estado do Novo México. Sua potência explosiva foi estimada na época entre 17 e 24 kt (quilotons = mil toneladas de TNT). Uma estimativa mais refinada feita em 2021 e baseada em métodos radioquímicos nas amostras de trinitita, uma formação vítrea de coloração verde que se forma dos minerais do solo sujeitos às altíssimas temperaturas geradas no meio circundante à explosão, sugerem uma potência de 25 kt.

As fotografias do evento histórico, denominado de teste Trinity, foram feitas pelo fotógrafo texano Berlyn Brixner, numa sequência de expansão da onda composta por gases quentes da atmosfera, captada por 52 câmeras conectadas ao sistema de disparo da arma e distantes dela entre 730 e 9100 metros. As imagens foram registradas em uma velocidade de 10.000 quadros por segundo, o que proporcionava capturar a propagação da onda de choque da explosão em incrementos de 0,1 milissegundo. As imagens da explosão foram publicadas pelo governo norte americano em 18 de agosto de 1945 no jornal Chicago Daily Tribune e uma delas que mais chama a atenção refere-se aos primeiros 16 milissegundos: uma hemisfera de aproximadamente 280 m de diâmetro e 140 m de altura.

A potência de uma arma desta natureza pode ser compreendida qualitativamente pela comparação da imagem da explosão aos 16 milissegundos e o intervalo de tempo de uma piscada involuntária dos olhos, a qual ocorre no mínimo em 290 milissegundos. Ou seja, em 1/18 avos de uma piscada involuntária dos olhos, a expansão da onda de choque da explosão formou uma hemisfera da altura de um edifício de 93 andares e diâmetro equivalente a 1,5 vez a distância trave a trave de um campo de futebol.

É paradoxal, mas nesses 80 anos, ao mesmo tempo que a humanidade passou por momentos de temor de que uma guerra mundial se tornasse realidade e o apocalipse se concretizasse devido à existência das armas nucleares, estas mesmas impediram que uma guerra mundial eclodisse

A Gadget consumiu uma parte significativa nos dois anos e meio do Projeto Manhattan. Seu combustível nuclear foi o Plutônio e esta escolha fez toda a diferença. Ao contrário do Urânio utilizado na bomba Little Boy, lançada em Hiroshima, o Plutônio produzido nos reatores de Hanford, estado de Washington, continha vários isótopos altamente emissores de nêutrons, o que poderia provocar a pré-detonação da massa crítica do combustível nuclear.

Esta característica tornava impossível replicar o mecanismo de disparo da Little Boy, que era balístico: uma camada cilíndrica de U-235 chocava-se com um cilindro de massa 33% menor e estático, formando uma única peça supercrítica. A solução foi criar uma forma inusitada de detonação: o método da implosão. O combustível nuclear era submetido a uma violenta compressão provocada por altos explosivos simetricamente dispostos ao redor de uma camada esférica de Plutônio. A massa supercrítica originada desta compressão era a condição necessária para evitar a pré-detonação do combustível nuclear, levando a Gadget a atingir sua eficiência máxima. Este método foi o mesmo utilizado na bomba atômica Fat Man lançada sobre Nagasaki, e acabou sendo o método preferido na quase totalidade das armas nucleares subsequentes, em todo o mundo.

O teste Trinity inaugurou o que mais tarde foi denominado como Era Atômica, um novo período, tecnologicamente disruptivo, geopoliticamente definido pelo temor da nova arma e pela busca intensa do equilíbrio bélico entre as nações diretamente envolvidas na 2ª Guerra Mundial, justamente pelo desenvolvimento desta arma. É paradoxal, mas nesses 80 anos, ao mesmo tempo que a humanidade passou por momentos de temor de que uma guerra mundial se tornasse realidade e o apocalipse se concretizasse devido à existência das armas nucleares, estas mesmas impediram que uma guerra mundial eclodisse. E isto é bastante tempo, se lembrarmos que entre o término da 1ª Guerra Mundial e o início da 2ª, decorreram somente 21 anos.

Esta ausência de confronto direto entre nações nuclearmente armadas deve-se à certeza de que muito provavelmente não haveria vencedor, somente derrotados. Costuma-se atribuir a conduta de não confrontamento direto entre potências nucleares ao conceito da Destruição Mutuamente Assegurada, em língua inglesa, MAD - Mutual Assured Destruction. Do ponto de vista das forças armadas, o MAD é uma doutrina de estratégia militar, a qual se baseia em uma resposta maciça de contra-ataque em caso de agressão inimiga por meio de armamento nuclear.

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Da perspectiva dos 80 anos de paz de amplitude mundial, que sentimentos deveríamos ter em relação à invenção octogenária da bomba atômica: de conforto ou de lamentação? É claro que a sensação não seria de conforto, mas de uma mistura de apreensão e de receosa confiança da não utilização destes armamentos.

Até hoje não faltaram motivos para o confronto entre as duas maiores potências nucleares, os Estados Unidos da América (EUA) e a extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), atual Rússia, desde 1991. Dadas as inúmeras guerras consumadas neste período e outras em andamento, parece um milagre que dois ou mais países nuclearmente armados não tenham se enfrentado militarmente e como consequência da geopolítica mundial, arrastado a maioria das principais nações no conflito.

Podemos ainda citar um conflito permanente pela disputa territorial na região da Caxemira entre o Paquistão e a Índia, ambas nações nucleares, além da existência de mais cinco países detentores de armamento nuclear: Inglaterra, França, China, Israel e a provocativa Coreia do Norte.

Se as armas nucleares estão mais para instrumentos de dissuasão do que de armamento bélico a ser utilizado, deveríamos então comemorar todas as datas 16 de julho por mais um ano de vida da humanidade? Em minha opinião, francamente não. Uma manifestação desta natureza pareceria um absurdo, pois estaríamos reverenciando algo devastador de vidas e de tudo o que o ser humano construiu e produziu ao longo de milhares de anos. Além disso e principalmente, a memória das tragédias humanas vivenciadas pelos habitantes das cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki em 1945, já seria mais do que suficiente para categorizar a criação das armas nucleares como a mais abjeta invenção do intelecto humano.

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As consequências do uso destas armas de destruição em massa nas cidades de Hiroshima e Nagasaki ainda estão vivas na mente de boa parte da humanidade e esta lembrança, somada ao temor de repetição destes episódios, são o argumento do discurso pela paz mundial clamando por "um mundo sem armas nucleares". Este mundo seria possível?

Para citar um exemplo concreto do desejo de um mundo livre deste tipo de armamento, um projeto eficaz voltado para o desmantelamento e uso pacífico do combustível de ogivas de mísseis nucleares, em sua maioria russos, foi o denominado "Megatons para Megawatts" ou acordo HEU-LEU (High Enriched Uranium to Low Enriched Uranium), concebido pelo físico e professor norte americano do MIT Thomas L. Neff. Entre fevereiro de 1993 e dezembro de 2013, o programa foi capaz de transformar 20 mil ogivas nucleares da Rússia em mais de 15 mil toneladas de Urânio pouco enriquecido para uso em metade dos reatores de potência norte-americanos, contribuindo com 10% de toda a eletricidade produzida naquele país.

Os elementos combustíveis das armas nucleares são enriquecidos em seus isótopos úteis (U-235 e Pu-239), acima de 90%. O processamento de reciclagem do programa HEU-LEU reduziu o grau de enriquecimento de Urânio entre 3 e 5%, que corresponde ao grau combustível de reatores nucleares de potência.

Esta ação foi um bom exemplo de que seria possível desmantelar armas nucleares e modificar o combustível das ogivas, dando um destino útil e nobre a elas. No entanto, o programa teve início e fim estipulados e não serviu de inspiração para as demais nações nuclearmente armadas. Durante a validade do projeto houve críticas relacionadas aos milhares de quilômetros que o Urânio altamente enriquecido das ogivas era transportado por trens em território russo, expondo este material a roubos por grupos terroristas.

Como última questão, além do título desta matéria, eu deixaria uma outra para reflexão: se fosse possível acabar com todas as armas nucleares do mundo em um singelo aperto de botão, você o faria?

Dinis Gomes Traghetta, professor de Física, autor do livro “A Bomba Atômica Revelada”, finalista do Prêmio Jabuti de 2014.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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