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Espírito dos povos: a diferença civilizacional entre Brasil e EUA

Os Estados Unidos não são perfeitos, mas certamente o Brasil tem muito a aprender com sua experiência de liberdade e autogoverno (Foto: Imagem criada utilizando Chatgpt/Gazeta do Povo)

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Ser brasileiro e viver nos Estados Unidos é uma experiência que revela muito mais do que simples diferenças culturais. Há uma mudança estrutural, quase civilizacional, na forma como a cultura e o espaço urbano são concebidos. E isso impacta diretamente a vida cotidiana, a dinâmica familiar e até a disposição mental das pessoas. Essas diferenças têm raízes profundamente espirituais.

A primeira diferença notável é a organização urbana. As cidades americanas são planejadas com um alto grau de padronização e compartimentação. Os bairros são delimitados, as casas seguem modelos semelhantes, e tudo parece obedecer a uma lógica prática e funcional. Esse tipo de estrutura contrasta fortemente com a realidade brasileira, marcada por improvisos arquitetônicos, caos visual e uma sensação constante de desordem.

Essa padronização urbana nos Estados Unidos não é apenas uma  opção técnica – ela está profundamente ligada ao ethos protestante que moldou a fundaç ão do país. Os Estados Unidos é uma nação que peculiarmente se desenvolve a partir de uma ótica protestante – coisa incomum ao desenvolvimento das demais nações ocidentais que tem profundas raízes católicas. Mesmo países como a Inglaterra e a Alemanha que passaram por uma ruptura com o catolicismo, tem como gênese a Igreja.

Essa origem protestante americana, caracterizada pela fragmentação denominacional, influencia não apenas a religião e os costumes, mas a maneira de organizar a sociedade como um todo. Assim como cada denominação vive isolada, com doutrinas e práticas próprias, a cidade se torna um conjunto de espaços separados, especializados, muitas vezes desconectados entre si. Isso gera um efeito de isolamento.

O Brasil ou os Estados Unidos não serão salvos por projetos urbanísticos, reformas políticas ou slogans de marketing. Serão salvos por biografias virtuosas. Pela repetição, em escala individual, de vidas que decidiram caminhar contra a corrente do vício nacional

Além disso, é comum nos EUA que se precise de carro para realizar qualquer tarefa cotidiana. Morar, estudar, trabalhar, ir à igreja ou ao mercado raramente acontece em um mesmo bairro. A vida urbana americana é segmentada – cada função num canto, cada atividade com sua zona específica. Essa compartimentação espacial contribui para uma experiência social mais  funcional, mas mais solitária.

A Europa oferece um contraste claro, principalmente nas cidades que ainda mantêm uma estrutura influenciada pelo catolicismo. Ali, é possível cumprir boa parte da vida cotidiana a pé. A mesma rua abriga residências, lojas, padarias, escolas e igrejas. A cidade é vivida como um todo, não como a soma de partes isoladas. Isso favorece a convivência, a comunidade e uma experiência urbana mais humana. Essa lógica urbana deriva da concepção católica do mundo: tende à integração onde o todo está presente em cada parte, e as partes estão ordenadas para o bem comum.

Nos Estados Unidos, a eficiência funcional substitui esse senso de comunidade integrada. E embora isso traga benefícios práticos – menos trânsito, mais padronização, melhores serviços –, o custo é uma vida mais isolada e menos orgânica.

O impacto dessa organização na vida pessoal é muito grande. Apesar do isolamento, ao se viver em um ambiente onde o básico já está resolvido – segurança e infraestrutura eficientes –, a mente se desocupa das urgências e abre espaço para outras atividades. Por isso, o ambiente americano é mais favorável para a vida intelectual e contemplativa. Foi aqui, nos Estados Unidos, por exemplo, que encontrei tempo e clareza mental para escrever com mais regularidade. Os problemas cotidianos, tão presentes no Brasil, deixam de consumir energia vital.

Essa diferença se torna ainda mais evidente quando consideramos a violência urbana. No Brasil, o simples ato de sair de casa, especialmente com filhos, carrega consigo uma carga constante de preocupação. A mente precisa monitorar o entorno, calcular riscos, antecipar ameaças. Mesmo em cidades menores, essa tensão está presente – não apenas pelo medo de assaltos, mas também por acidentes, falhas de infraestrutura, incertezas do trajeto. Essa vigilância constante consome energia emocional e reduz drasticamente a capacidade de relaxar, contemplar ou criar. Nos Estados Unidos, essa camada de preocupação desaparece e a ausência de medo libera espaço interior. Aquilo que antes era ocupado por alertas e suspeitas, agora pode ser preenchido com silêncio e atenção ao que é essencial.

As casas americanas, por sua vez, também trazem um contraste significativo se comparadas às brasileiras. Costumamos enxergar o americano como um indivíduo mais consumista e ostentador, mas as casas americanas são muito simples e modestas. Mesmo entre famílias de alto poder aquisitivo, o padrão costuma ser a simplicidade. Poucos excessos, materiais bem acabados, plantas residenciais pensadas para o uso familiar etc.

Isso contrasta com a mentalidade brasileira, em que cada casa é um projeto original, frequentemente sobrecarregado por preocupações estéticas e simbólicas. No Brasil, o exterior desorganizado – somado à violência urbana – força uma compensação no interior das casas. Elas se tornam refúgios carregados, às vezes até caricatos, com luzes de LED e elementos decorativos de gosto duvidoso. A casa brasileira é muito mais luxuosa do que a casa americana.

Essa diferença não é apenas arquitetônica. Ela revela traços morais e culturais mais profundos. No Brasil, a perda da formação cristã no último século – especialmente do catolicismo, que por séculos formou gerações com base em virtudes como sobriedade, humildade e senso de limite – deixou um vácuo educacional e ético. Esse espaço foi ocupado por uma outra cultura, que não enfatiza a aquisição de virtudes, mas aspectos mais sociais e ideológicos. Por essa falta de formação nas virtudes, os vícios do nosso povo começaram a se refletir em toda a cultura e, especialmente, na arquitetura. O lar, por ordem da vaidade, passou a servir como uma vitrine. O projeto arquitetônico se torna um esforço de diferenciação, muitas vezes exagerado, marcado por materiais chamativos e uma estética voltada mais à ostentação do que ao bem-estar. A preocupação com o que os outros pensam e a necessidade de chamar atenção moldam o espaço urbano brasileiro.

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Esse comportamento é parte de um fenômeno mais amplo. A ausência de uma formação nas virtudes faz com que a arquitetura, como expressão cultural, absorva e reflita os vícios predominantes. O desejo de status, o apego ao julgamento social, a vaidade e a insegurança se manifestam diretamente nas escolhas estéticas e estruturais das residências. Não é incomum, inclusive, que a decoração de novas casas brasileiras se assemelham a boates. Em contraste, nos Estados Unidos a casa tende a ser mais funcional e padronizada. Ainda que use materiais simples e soluções repetidas, ela expressa uma lógica prática, com menos espaço para excessos. Não se trata de bajular a educação americana, mas de reconhecer que, em sociedades com algum grau de formação moral mais evidente, a arquitetura se organiza em torno de critérios mais objetivos e razoáveis.

Esse é o ponto em que a reflexão de Vianna Moog, no livro Bandeirantes e Pioneiros, torna-se especialmente relevante. O escritor argumenta que os problemas de uma civilização não se resolvem apenas com políticas públicas, sistemas educacionais ou projetos urbanos. Eles se resolvem, antes de tudo, nas biografias. Cada povo tem seus vícios estruturais – formas repetidas de pensar mal, de agir mal, de se acomodar. No caso do Brasil, Moog aponta traços como o espírito resignado diante do caos, o desprezo pela ordem, a superficialidade emocional, a vaidade.

O escritor propõe uma resposta simples, mas profunda: ao invés de procurar ações externas, devemos olhar para aquelas pessoas que, vivendo nessa mesma cultura, conseguiram superá-la. Os santos, diz ele, são a resposta mais concreta. Porque são justamente os que enfrentaram, por dentro, as tentações do próprio povo e as venceram no máximo grau de perfeição possível. Não por discurso, mas por prática. O santo é aquele que sofreu os vícios da sua terra, foi tentado por eles, foi prejudicado por eles – e, ainda assim, transcendeu-os. Por isso, conhecer os santos de uma nação é conhecer sua cura. É descobrir, na carne, um caminho possível. E só quando um número razoável de indivíduos começa a imitar essas biografias – mesmo que de modo imperfeito – que um país começa a mudar de verdade.

Essa ideia continua atual. O Brasil ou os Estados Unidos não serão salvos por projetos urbanísticos, reformas políticas ou slogans de marketing. Serão salvos por biografias virtuosas. Pela repetição, em escala individual, de vidas que decidiram caminhar contra a corrente do vício nacional. Nosso futuro depende da nossa capacidade de imitar os santos.

Matheus Bazzo é fundador da Lumine e da Minha Biblioteca Católica.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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