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Gostaria de retomar este assunto, sobre o qual já havia escrito em 2023, acerca do que é a inteligência. Creio que, agora, depois de termos discutido e refletido sobre muitos temas ao longo deste tempo em outros artigos, para aqueles que tiveram a oportunidade e a consideração de lê-los – o que para mim é uma honra –, podemos aprofundar os conhecimentos e fazer reflexões sobre este conceito, relacionando-o com a educação.
O entendimento do que seja a capacidade intelectual na atualidade não é muito bem compreendido. Talvez porque o conceito de ciência também o seja. Muitos acreditam que a única forma de adquirir conhecimento é por meio da ciência. Entretanto, como mostrei anteriormente, é possível ao ser intelectual realizar a apreensão da verdade sem necessitar de dados materiais coletados pela ciência. Ou seja, a inteligência vai muito além dos resultados científicos que consideramos e podemos adquirir conhecimento sem a ciência, mas por meio de reflexões intelectivas.
No fundo, não se sabe mais o que é o conhecimento, muito menos o que seja a inteligência ou a educação. Nosso sistema de ensino precisa de uma reforma profunda, mas quem faria isso? Temos profissionais sábios e com a capacidade pedagógica de reeducar nossos docentes?
Iniciando este artigo, gostaria de incluir uma observação tirada de um texto que li da educadora americana Diane Ravitch, em seu famoso livro The Death and Life of The Great American School System, onde ela comenta o fracasso da política americana que premia e pune os resultados avaliados no ensino, fazendo a observação de que cenouras e paus são para macacos, não para seres humanos. Ela se referia ao fato de que as leis daquele país, elaboradas por republicanos e democratas, preveem a punição ou recompensa aos professores e alunos de acordo com as avaliações realizadas. Tal fator foi e continua sendo um desastre para a educação americana.
Vamos, então, tentar fazer uma associação entre esta referência de Ravitch e a inteligência e a educação. Sabemos que existem os sentidos externos no ser humano, pelos quais temos contato com o mundo exterior. Muitos não sabem, mas há também sentidos internos, que, no entanto, não são o que chamamos de inteligência. Temos, assim, o sentido comum, o cogitativo, o imaginário e a memória. Esta estrutura foi visualizada por Aristóteles, que entendeu haver uma passagem do mundo real externo para o mundo interno do intelecto humano. Este entendimento filosófico está relacionado ao fato de que as coisas são o que são porque possuem uma matéria e uma forma que as define enquanto tal.
Para podermos captar algo exterior, precisamos despir a coisa de sua matéria, ficando apenas com a forma. Assim, ao “vermos” algo no nosso imaginário, estamos abstraindo a forma da matéria e, entendendo que a forma é o que dá a individualidade à matéria, estamos despindo a matéria da sua individualidade e “vendo-a” como ela realmente é, ou seja, em sua essência. Só dessa maneira conseguimos colocar na nossa memória um edifício com vários andares que ocupa materialmente muitos metros quadrados, mas que cabe perfeitamente no imaginário e na nossa memória. Resumindo: ao ver algo internamente no imaginário, estamos vendo algo desprovido de sua individualidade, da sua matéria.
Mas isso tudo é inteligência? Como já vimos, esta é uma faculdade espiritual da alma humana. Aqui, estamos falando dos sentidos internos, que ainda são materiais e estão dentro do cérebro, não sendo, portanto, ainda inteligência, mas ferramentas com as quais ela trabalha. Podemos também identificar essas capacidades internas nos animais irracionais. Ou seja, um cachorro ou uma baleia também têm imaginação e memória, além do sentido comum e da estimativa, que chamamos de cogitativo no ser humano.
Dessa forma, vemos muitos educadores utilizarem os animais para desenvolver técnicas de ensino nas escolas. Claro está que um ensino desenvolvido dessa maneira apenas irá adestrar os alunos, pois só atinge esse nível material da alma humana. Os animais não precisam de inteligência para viver, uma vez que agem exclusivamente por instinto natural, onde não se necessita da utilização da razão. E não é demais lembrar que os animais não possuem livre-arbítrio. Aqui, a cenoura ou o pau pode ser eficaz.
É necessário entender que o processo intelectivo se inicia com a abstração, e agora já sabemos o que isso significa. A partir desse ponto, o trabalho do cogitativo, juntamente com a imaginação e a memória, tem o seu real valor. O raciocínio começa a partir de uma abstração e passará para outra abstração até chegar a um julgamento, que também é abstrato e ficará arquivado na memória para ser acessado futuramente, se necessário.
É preciso entender que, depois de se abstrair a essência de algum ente, não será mais necessário ter contato físico com esse ente. Esta capacidade de trabalhar com todas as abstrações que fazemos diariamente é o papel da inteligência, utilizando os sentidos internos para tal, principalmente o cogitativo. Ao terminar um raciocínio com o julgamento, chegamos ao que os gregos chamavam de contemplação, que, no fundo, é um descanso de todo este trabalho intelectivo iniciado com a abstração da matéria.
Dentro deste entendimento do processo intelectivo do homem, podemos meditar as palavras de Sócrates, no livro A República, quando ele diz que o homem sábio saboreia todo gênero de conhecimento, mas a simples curiosidade humana é confundida com sabedoria. Os verdadeiros sábios contemplam a verdade, a justiça, a bondade e todas as ideias que existem, mas precisam distinguir essas ideias. E é aí que vemos a diferença entre um homem que vê a coisa bela e outro que vê a beleza, tal como ela é em si mesma. Aqui, sim, vemos a ação da inteligência humana.
A verdadeira beleza é aquilo que o autor da Criação colocou em cada item que existe neste universo criado, e o sábio será aquele que consegue ver o autor por trás de sua obra. A inteligência é uma faculdade interior que usa o cogitativo, a imaginação, os sentidos e a memória para ver além dos particulares das coisas e olhar o universal, fazendo a conexão entre todas as coisas criadas.
Diante dessa ideia, vemos que as paixões humanas, que são todas materiais, atrapalham o trabalho intelectivo. A realidade apaixonada, não ordenada, produz um homem desordenado. Como o imaginário não é uma máquina fotográfica, que retém fisicamente as imagens captadas, o imaginário não tem cor ou matéria; ele tem a capacidade de ver além das cores e do sensível, retirando a individualidade das coisas. Com essa capacidade, pode apresentar para a inteligência um material abstraído, e isso libera o raciocínio intelectual para passos mais profundos e elevados, sem os quais seria impossível raciocinar.
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Essa atividade complexa fica comprometida se as paixões não forem controladas. Por isso, uma educação deve começar com o regramento dessas paixões, por meio das virtudes. No caso dos animais irracionais, eles permanecem no nível do imaginário e não avançam, mas parece que é exatamente onde estamos hoje nas nossas escolas, apenas proporcionando aos alunos as sensações físicas e suas paixões como fim último do intelecto.
Gostaria agora, para exemplificar o que digo, de identificar um ato próprio da inteligência: o poder de inteligir o próprio ato intelectivo já realizado. Assim, o homem pode ir além do cogitativo ou do imaginativo e contemplar seu próprio ato de pensar. Isso é um exemplo claro de um ato intelectivo característico do ser humano, fato que um animal irracional não pode fazer, nem tão pouco um computador. Por isso, não são inteligentes, como por vezes querem nos convencer.
Aqui, poderíamos avançar e tentar caracterizar o que chamamos de um ato de fé, ou seja, um toque abstrato direto na alma humana. O contemplar a verdade, dos gregos, e os julgamentos que fazemos diariamente, que são as mesmas coisas, se processam como resultado dos raciocínios, como já dissemos. Assim, a luz que brilha na inteligência, provocada pela reflexão indutiva ou dedutiva, é uma contemplação de uma verdade trabalhada humanamente falando.
Mas o ato de fé ao qual me refiro é uma luz que brilha sem o esforço humano, provocada por uma ação não natural, mas sobrenatural. Entretanto, o ser humano crê efetivamente naquela verdade e a acolhe em seu processo intelectivo. Tal fato, muito corriqueiro no nosso dia a dia, é totalmente desprezado pela ciência, que não tem como explicar e, por isso, o afasta como um absurdo.
Somos obtusos a todos esses conceitos. O máximo da perfectibilidade da mente humana ficou para trás, com os gregos ou com os clássicos. O desenvolvimento do conhecimento se confundiu, hoje, com o desenvolvimento da inteligência, quando isso não é verdade, como mostrei. A prática escolar profissionalizante atual tornou-se a mais importante, mas não está construindo a sociedade; está apenas desenvolvendo habilidades profissionais entre seus integrantes, ensinando-os a ter uma ocupação laboriosa na sociedade.
Aqueles ideais de contemplação de verdades e reflexões abstratas, que são o âmago do trabalho da inteligência, ficaram para trás. O que é verdade ou fé não tem mais importância. Está-se, na prática, formando classes técnicas estanques e decorativas, sem favorecer um intercâmbio entre essas disciplinas. E, na prática, está se oferecendo a cenoura ou o pau, como se faz com animais, acompanhando o que disse Diane Ravitch.
Vemos que os conhecimentos atuais mudam tão rapidamente que a realidade parece mudar com a mesma velocidade. Mas seria isso correto? A novíssima teoria escolar pós-estruturalista traz a ideia de que não é mais importante o conhecimento. Poderíamos concluir dizendo que uma faculdade concluída terá seus conhecimentos ultrapassados poucos anos após a formatura. Dessa maneira, para quê fazer um curso desse tipo? Vamos realizar cursos de verão, os quais durarão até o próximo verão.
No fundo, não se sabe mais o que é o conhecimento, muito menos o que seja a inteligência ou a educação. Nosso sistema de ensino precisa de uma reforma profunda, mas quem faria isso? Temos profissionais sábios e com a capacidade pedagógica de reeducar nossos docentes? E estes teriam a docilidade de aceitar essa novidade, que, na realidade, é muito antiga? A modernidade não trouxe avanço, mas sim atraso. Porém, se não tivermos esse atraso agora, teremos mais tarde, quando tudo vier abaixo. Portanto, seria melhor parar agora e reiniciar corretamente.
Claudio Titericz, coronel reformado do Exército, é bacharel, mestre e doutor em Ciências Militares e bacharel em Teologia; estudante permanente de Filosofia da Educação e ex-integrante do Ministério da Educação e é um dos fundadores do Instituto de Biopolítica Zenith, autor do livro “O Problema da Educação Brasileira”.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



