• Carregando...
 | Carlos Chávez/Free Images
| Foto: Carlos Chávez/Free Images

O mundo corporativo é a distopia perfeita. De um lado, um modo inequívoco de produção de riqueza que elevou a condição material de vida dos seres humanos a um nível jamais imaginável; do outro lado, um sistema que esmaga o sujeito obrigando-o a competir cotidianamente, sem descansar nunca. Se a perfeição da vida material é uma utopia contínua no mundo contemporâneo, essa mesma perfeição produz níveis elevadíssimos de mal-estar, provavelmente garantindo um futuro de mais riqueza regada a desespero a cada dia. Ninguém aguenta mais, mas ninguém pode parar.

Dentro desse quadro, chama atenção a obsessão pela ideia de “inovação”. Ela aparece em todos os níveis da vida, do corporativo às pressões psicológicas sobre os mais velhos e mais jovens, num nível epidêmico.

A ideia, profundamente inscrita no “DNA” (como gosta de dizer o mundo corporativo quando “reflete sobre identidades”) da modernidade, tem raízes filosóficas claras em obras como a do inglês Francis Bacon (1561-1626), entre outros. Seu projeto de “atar a natureza” a fim de conseguir as respostas necessárias para a melhoria das condições materiais de vida “na natureza” numa futura “Nova Atlântida”, associado aos avanços do saneamento básico de Londres ao longo do século 19, são fundamentos básicos dos ganhos técnicos e de gestão de problemas na modernidade. Da natureza ao esgoto, o projeto é o mesmo.

Essa epidemia da inovação aparece no modo nefasto como as pessoas buscam “se reinventar” a todo momento

Na vida pessoal, essa epidemia da inovação aparece no modo nefasto como as pessoas buscam “se reinventar” a todo momento. Ela obriga as pessoas a se verem como startups contínuas num mercado infinito de demandas que vão da saúde física permanente à beleza sustentável à custa de obsessões, à espiritualidade a serviço da commoditização da alma, enfim, a uma insatisfação existencial contínua como “motivação” para o imperativo da inovação.

É evidente que a proposta é patológica no nível humano, inclusive porque, apesar dos reais avanços tecnológicos na engenharia médica, marchamos para o envelhecimento e a morte, e isso tem impactos definitivos, mesmo que a indústria da inovação, regada à moda da Singularity University, a bola da vez, venda a ideia de que seremos imortais.

A epidemia da inovação no plano psicológico corrói a capacidade, principalmente dos mais jovens, de lidar com o tédio, o fracasso e a as frustrações “normais” da vida, impondo-nos o imperativo do sucesso crescente, que nos assola das nossas camas, a vida profissional, a lida com filhos até o esgotamento de nossas capacidades intelectuais e afetivas.

Do mesmo autor:Tipologia da direita contemporânea (2 de outubro de 2017)

Leia também:O direito a se desconectar do ambiente de trabalho (artigo de Janaina Eichenberger, publicado em 20 de fevereiro de 2017)

Um fato evidente nesse processo é o que muitos chamariam de “pressão do capital”. Essa pressão nos obriga a pensar em nós mesmos como uma commodity buscando “investimento” no mercado de um mundo em “movimento”, em direção à multiplicação do próprio capital que se expande à medida que habita a inovação como condição sine qua non de adaptação a ele.

No mundo corporativo, que gasta dinheiro com palestras circenses, a fim de fazer seus “colaboradores rirem”, assim como uma sessão de meditação em meio ao massacre cotidiano, a epidemia da inovação é um mercado em si mesma. Neste mundo, o futuro é uma commodity em si mesmo, vendido pelas consultorias de futuro. Citando casos conhecidos como a implantação de fake memories (diante destas, fake news é conversa de crianças), esse mercado da inovação vende a ideia de que num mundo próximo a indústria de implantação no cérebro de memórias falsas, mas “felizes”, eliminará a depressão e toda uma série de quadros clínicos indesejáveis.

Para além do absurdo da ideia, de um ponto de vista meramente médico, a própria noção de uma humanidade vivendo continuamente num parque temático “cognitivo” assusta não pelo suposto avanço médico em si, mas pelo modo como as consultorias do futuro vendem a ideia como o máximo da felicidade e da saúde. É a condição definitiva de idiotas cognitivos, sonâmbulos que caminham pela vida como um pós-humano em processo de extinção. Os neandertais, do alto de sua sabedoria de espécie já extinta, chorariam de pena de nós.

Luiz Felipe Pondé, escritor, filósofo e ensaísta, é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Faap.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]