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Opinião do dia 2

A ética e a culpa indireta

Ética não é um assunto sobre o qual qualquer de nós pode dizer que detém conclusões definitivas. É um assunto complexo. O filósofo James Rachels nos brinda com uma obra monumental (Elementos de Filosofia Moral), em que cada frase é fonte de reflexão. Misturando suas palavras com as minhas, destaco alguns temas que ele levanta.

Uma questão intrigante refere-se ao tratamento que devemos dispensar aos seres não-humanos, em especial àqueles que utilizamos para satisfazer nossas necessidades. Rachels nos diz que o tratamento dos seres não-humanos não tem sido encarado como uma questão moral de grande importância. A tradição cristã afirma que só o ser humano é feito à imagem de Deus, e que os animais nem sequer possuem uma alma. Assim, a ordem natural das coisas permite aos seres humanos usar os animais para qualquer propósito que quiserem. São Tomás de Aquino dizia que matar animais irracionais não era pecado, porquanto, pela providência divina, eles são destinados ao uso do homem.

Todavia, no uso e abate de animais ressalta o problema da crueldade. Uma vez que tanto os humanos quanto os não-humanos podem sofrer, temos iguais razões para não maltratar qualquer deles. Os animais têm estrutura nervosa, sentem dor, sofrem e são dotados de emoções. Muitos de nós acreditam que nada temos a ver com essa história pelo fato de usarmos os animais para nos alimentarmos. Errado! Existe a responsabilidade indireta, que também é um problema moral. Hitler não era dado a matar as pessoas com suas próprias mãos.

A maior parte das pessoas pensa, de forma vaga, que embora o matadouro seja um local desagradável, os animais para abate são bem-tratados. Mas, afirma Peter Singer em seu livro sobre o direito dos animais, que nada poderia estar mais longe da verdade. As crias de vitela, por exemplo, passam as suas vidas em celas tão pequenas que não conseguem voltar-se ou mesmo deitar-se de forma confortável. Mas, do ponto de vista dos produtores, isso é bom, porque o exercício enrijece os músculos, reduzindo a "qualidade" da carne. Nessas celas, os animais não conseguem realizar ações tão básicas como limpar-se, o que desejam por natureza fazer, porque não há espaço para poderem voltar a cabeça. Os vitelos desesperam-se com a falta das mães e, como os bebês humanos, precisam de algo para mamar e tentam, em vão, sugar qualquer aresta em suas celas.

Para manter a sua carne branca e saborosa, os vitelos são alimentados com uma dieta líquida insuficiente em ferro e forragem. Naturalmente, desenvolvem o desejo ardente dessas coisas. O desejo deles por ferro torna-se tão forte que, se puderem voltar-se na cela, eles lambem a sua própria urina, mesmo sentindo repugnância em fazê-lo. A pequena cela, que impede o animal de voltar-se, resolve esse "problema". O desejo de forragem é especialmente desesperador, uma vez que sem ela o animal não consegue formar uma massa de alimentos para ruminar. Não se pode colocar qualquer palha para eles dormirem, pois seriam tentados a comê-la, e isso afetaria o sabor da carne. Por isso, para esses animais, o matadouro não é apenas o fim desagradável de uma existência feliz: é uma vida tão terrível que o processo de abate pode, na verdade, revelar-se uma libertação misericordiosa.

Quando usamos carne de vitela como alimento, não somos culpados diretamente pelo sofrimento do animal. Todavia, temos culpa indireta, contribuímos para a manutenção da crueldade e, portanto, fazemos parte de um sistema antiético e de valores pouco nobres. Quanto mais a civilização evolui para melhor, mais as questões éticas se aprofundam e, entre elas, o tema da culpa indireta.

A ética é a ciência do homem evoluído e é por ela que se mede o grau de desenvolvimento de uma sociedade. Nesse mesmo contexto, encaixa-se o problema da solidariedade para com os menos favorecidos. A solidariedade não é de esquerda nem de direita; é apenas um ato ético-moral. Muitos políticos gostam de invocar seus pendores sociais para, com eles, amealhar mais vantagens para si do que para aqueles a quem dizem proteger.

José Pio Martins é professor de Economia e vice-reitor do Centro Universitário Positivo (UnicenP).

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