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A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que inicialmente impôs a Jair Bolsonaro a proibição de se manifestar, direta ou indiretamente, nas redes sociais não apenas inaugurou uma nova modalidade de restrição cautelar — a suspensão da presença digital — como também pavimentou o caminho para uma escalada sem precedentes: a imposição de prisão domiciliar.
Além de calado, o ex-presidente encontra-se recolhido em casa, monitorado por tornozeleira eletrônica, proibido de se comunicar com terceiros, tendo seus dispositivos eletrônicos apreendidos. Não se trata mais apenas de impedir a voz, mas de neutralizar qualquer possibilidade de reverberação. O risco, ao que parece, deixou de ser o discurso e passou a ser sua circulação. O eco virou crime.
Do ponto de vista técnico, vivemos um claro ponto de inflexão no direito digital e processual brasileiro. O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) estrutura a responsabilização civil com base na lógica da intervenção mínima, exigindo ordem judicial específica e posterior à veiculação de conteúdo.
Já a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso IV, assegura a liberdade de manifestação do pensamento e veda, de forma categórica, qualquer forma de censura prévia. A jurisprudência consolidada, até então, consagrava esse equilíbrio: liberdade como regra; restrição como exceção, sempre fundamentada, individualizada e proporcional.
A decisão do STF, contudo, parece operar no plano das exceções convertidas em norma. A justificativa? Proteger investigações em andamento. Mas desde quando o risco de repercussão nas redes sociais justifica a supressão preventiva de qualquer manifestação, inclusive por meios indiretos?
É precisamente nesse ponto que reside o maior risco: transformar medidas extraordinárias em mecanismos ordinários, sob o manto sedutor da proteção institucional.
Quando o silêncio se justifica por uma suposta defesa da ordem pública, abre-se um precedente perigoso. Hoje silencia-se um ex-presidente; amanhã, talvez se cale um jornalista, um advogado, um acadêmico, ou qualquer cidadão que desafie o discurso dominante.
O problema não está apenas na restrição em si, mas na naturalização do poder de calar, concedido sem freios ao Estado
Em tempos de algoritmos, conteúdos virais e narrativas disputadas, silenciar alguém não é neutralizar sua fala, é politizar sua ausência. E nesse vácuo, o Judiciário passa de guardião da liberdade a curador do discurso permitido.
A democracia é resiliente à palavra dura. Mas fragiliza-se quando a toga decide quem cala. O silêncio imposto sob o pretexto de cautela pode se tornar o mais ruidoso dos abusos.
No fim, resta uma pergunta inquietante: a quem realmente serve o silêncio — ao processo penal ou ao projeto político?
Alexander Coelho é advogado, sócio do escritório Godke Advogados. Especialista em Direito Digital, Cibersegurança e Inteligência Artificial (IA), é membro da Comissão de Inteligência Artificial e Privacidade da OAB/SP. Pós-graduado em Digital Services pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal).



