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A falsa reforma: nova distribuição de deputados distorce a representação popular

aumento número deputados
Plenário da Câmara dos Deputados: originalmente projetado para cerca de 300 parlamentares, hoje abriga mais de 500. (Foto: Kayo Magalhães/Câmara dos Deputados)

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Aumentar o número de cadeiras na Câmara sem rever o teto e o piso de deputados por estado mantém a distorção no peso do voto, aprofunda o desequilíbrio federativo e inviabiliza qualquer mudança de sistema de governo no Brasil. O regime parlamentar mais antigo do mundo nasceu na Idade Média, na Espanha. A tradição hispânica se distingue por garantir, desde muito cedo, o acesso de representantes populares à Cúria geral, em pé de igualdade com nobres e prelados. Exemplo disso são as Cortes de Aragão (1162), Saragoça (1163) e Leão (1188), nas quais já se esboçava um modelo de participação política institucionalizada.

Séculos depois, com a Revolução Francesa de 1789, a estrutura representativa foi radicalmente transformada: substituíram-se os antigos grupos intermediários – como corporações, municípios e ordens sociais – pela ideia de uma soberania una e indivisível, exercida por meio do mandato representativo. Assim, os parlamentares passaram a representar toda a Nação, e não mais apenas os eleitores que os haviam escolhido, rompendo-se com o antigo mandato imperativo, de natureza semelhante ao mandato civil, no qual o representante atuava como porta-voz de um grupo específico. Surgia, assim, o conceito moderno de representação política – base do Estado liberal contemporâneo

No Brasil, o sistema representativo está formalmente estruturado no Congresso Nacional, composto pela Câmara dos Deputados (representante do povo) e pelo Senado Federal (representante dos estados). Ainda que existam críticas filosóficas ao modelo atual – entendido por autores tradicionalistas como uma ficção racionalista e abstrata –, há um ponto de consenso: excetuando-se situações específicas justificáveis, todos os votos devem ter o mesmo peso. Quando esse princípio é violado, a legitimidade democrática é comprometida. Pois é exatamente isso que faz hoje a Constituição brasileira.

Recentemente, o Congresso Nacional aprovou uma proposta de alteração da Lei Complementar n. 78/1993, que regulamenta o parágrafo primeiro do artigo 45 da Constituição Federal, responsável por estabelecer a distribuição das cadeiras na Câmara dos Deputados com base na população dos estados. O texto foi aprovado pelo Senado em 18 de junho de 2024, com exatos 41 votos favoráveis – o mínimo necessário –, e agora segue para sanção presidencial.

A democracia representativa brasileira segue capturada por uma estrutura que distorce a vontade popular, privilegia minorias geográficas e desequilibra a federação

A proposta prevê o aumento do número total de deputados federais de 513 para 531, com base nos dados do Censo Demográfico de 2022. Isso implicará alteração na composição de 14 estados. A medida atende à determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), proferida no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 38, proposta pelo Estado do Pará. Na ocasião, o STF reconheceu a omissão inconstitucional do Congresso Nacional em atualizar a representação proporcional dos estados conforme os dados censitários, estabelecendo o prazo de 12 meses para a correção.

Mas, mesmo com sua aprovação, a nova lei está longe de representar uma verdadeira reforma. O principal problema permanece: o teto de 70 deputados e o piso de 8 por estado. Essa regra constitucional impede que a distribuição de cadeiras reflita de fato a população de cada unidade federativa, perpetuando uma desigualdade gritante no peso do voto.

De acordo com o Censo de 2022, o estado de Roraima tem cerca de 636 mil habitantes. Já São Paulo, o mais populoso do país, conta com mais de 44 milhões. Pela lógica da representação proporcional, São Paulo deveria ter cerca de 70 vezes mais deputados que Roraima. No entanto, devido ao teto e ao piso fixados pela Constituição, a diferença de cadeiras é de apenas 70 contra 8 – significando que, na prática, o voto de um eleitor roraimense vale até dez vezes mais do que o de um paulista

Essa distorção se escancara quando analisamos os resultados da eleição de 2022. No Amapá, a deputada Silvia Waiãpi (PL) foi eleita com apenas 5.435 votos – o menor número entre todos os eleitos naquele pleito. Já em São Paulo, o candidato menos votado a conquistar uma vaga na Câmara foi Tiririca (PL), com 71.754 votos. Assim, o representante paulista teve de obter mais de treze vezes o número de votos exigido da sua colega amapaense para alcançar o mesmo mandato.

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O problema não é apenas de justiça representativa, mas também revela um grave desequilíbrio federativo e fiscal. Os estados mais superrepresentados são, em geral, os menos populosos e economicamente mais dependentes da União. Muitos deles estão na Região Norte, onde os repasses federais representam parcela significativa das receitas locais.

Enquanto isso, estados mais populosos e subrepresentados – como São Paulo e Paraná – concentram a maior parte da arrecadação nacional. O resultado é perverso: quem mais contribui com recursos públicos tem menos poder de decisão sobre sua destinação. Quem menos arrecada, decide mais. Um desequilíbrio que, ao contrário do pacto federativo, aprofunda a desunião nacional.

Argumenta-se que o teto e o piso de deputados por estado são necessários para preservar a igualdade federativa, mas esse é o papel do Senado, onde todos os estados têm a mesma representação. Já a Câmara, por definição, representa o povo – e deveria refletir a proporção da população, sem exceções. Nos Estados Unidos, esse princípio é levado a sério. Cada estado tem um número fixo de senadores, como no Brasil, mas a Câmara dos Representantes segue uma lógica puramente proporcional. Estados como Wyoming, Vermont, Dakota do Sul, Dakota do Norte, Delaware e Alaska possuem apenas um representante federal – número compatível com a sua população. No Brasil, nada justifica que Roraima, com 636 mil habitantes, tenha oito deputados federais.

Esse arranjo desproporcional brasileiro gera uma consequência ainda mais profunda: inviabiliza qualquer reforma do sistema de governo. Com uma Câmara composta por parlamentares eleitos em um sistema que dá pesos diferentes aos votos de cada estado, qualquer proposta de adoção do parlamentarismo ou do semipresidencialismo esbarra em um problema de legitimidade. Afinal, nesses modelos, o chefe de governo deixaria de ser eleito diretamente pelo povo – com peso igual de voto – e passaria a ser eleito por um Parlamento assimétrico e desequilibrado.

A desproporção atual compromete qualquer tentativa séria de reforma política. Qualquer mudança de sistema exigiria, antes, um ajuste real na distribuição de cadeiras – e isso exige alterar as travas constitucionais do piso e do teto.

A democracia representativa brasileira segue capturada por uma estrutura que distorce a vontade popular, privilegia minorias geográficas e desequilibra a federação. Sem enfrentar o teto e o piso constitucionais de deputados por estado, qualquer reforma será apenas cosmética – ou, como neste caso, uma falsa reforma.

Jan Mertens é mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense (UFF), delegado de polícia civil do Estado do Rio de Janeiro e diretor acadêmico do Instituto Arariboia – Associação Brasileira de Humanidade.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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