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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

Ler Theodore Dalrymple é sempre um grande prazer. Não por acaso já li mais de dez livros do autor, com quem estive recentemente em Porto Alegre, com a honra de fazer as perguntas e ouvir as respostas. O foco era seu novo livro A faca entrou, lançado pela É Realizações.

Dalrymple, com seu estilo elegante, mergulha nas memórias de seus vários anos como médico prisional, além de testemunha nos tribunais, normalmente de regiões pobres de Londres. Ele fala, portanto, com autoridade sobre criminalidade. E a marca registrada de suas análises é justamente a constante tentativa de evasão de responsabilidade por parte dos criminosos.

Segundo seus relatos, a coisa mais comum que ele ouvia era que “a faca entrou”, como se o objeto inanimado tivesse volição independente e capacidade de ação, não o próprio indivíduo. Invertendo a causalidade, é como se a faca tivesse pego a mão do sujeito e a dirigido ao encontro do alvo, não o contrário.

Da mesma forma, muitos marginais repetiam que o problema foi terem caído na turma errada. Curioso, apontava o médico com ironia, ele conhecer tanta gente que “caiu” no grupo errado, mas ninguém do grupo errado em si. Na mesma hora em que fazia tal provocação, o bandido normalmente sorria, mostrando que pode ser cruel, mas não precisa ser burro. Eles entendiam perfeitamente o intuito do médico.

Essa talvez seja a sina dos conservadores: enxergar a realidade sem filtro ideológico, sem lente rosada

As histórias de Dalrymple retratam uma cultura em decadência, “um espelho cristalino e nada sentimentalista pelo qual vemos o progresso moderno como ele realmente é”, resume a contracapa. Quando perguntei a ele se essa fuga da responsabilidade era algo que havia piorado com o tempo, especialmente nessa marcha das “minorias oprimidas”, sua resposta foi simples e direta: quase tudo em termos culturais piorou.

Essa talvez seja a sina dos conservadores: enxergar a realidade sem filtro ideológico, sem lente rosada. O libertário Murray Rothbard achava que, no momento em que cedemos ao “pessimismo”, escorregamos rumo ao conservadorismo. Mas se vemos os valores morais se degradando, a alternativa é mentir para nós mesmos, fingir ser cego? Como explica Roger Scruton, há usos interessantes para o pessimismo.

A doença mais preocupante destacada no livro é essa vitimização de quem produziu apenas o mal, cometeu crimes terríveis, viveu uma vida de desvios. A culpa é sempre dos outros! E temos visto essa narrativa, que exime o indivíduo de responsabilidade, ganhando cada vez mais destaque na mídia. Basta pensar nos caminhões que matam em atentados terroristas, como se fossem os Transformers; nas armas que matam alunos, como se ninguém tivesse puxado aquele gatilho.

Um dos grandes divisores entre o grupo de indivíduos que cresce na vida e o grupo que apenas existe, como um animal instintivo, é a coragem de assumir erros. De um lado, aquelas pessoas virtuosas que admitem seus próprios defeitos, sempre na busca sincera pelo progresso. Do outro, aqueles que culpam o mundo ao redor pelos seus males, que se colocam como vítimas eternas. Uns são agentes ativos na vida, os outros são bestas selvagens.

Do mesmo autor: Os intelectuais fascistas de Mussolini (publicado em 25 de abril de 2018)

Leia também: C.S Lewis, natureza humana e a “abolição do Homem” (artigo de Carlos Adriano Ferraz, publicado em 3 de março de 2018)

As ações humanas, por mais influenciadas que possam ser por fatores exógenos, são sempre individuais. Indivíduos, não coletivos abstratos, agem. A responsabilidade, portanto, deve ser individual. A responsabilidade vem da habilidade de resposta, fazendo responsável pelo ato aquele que o praticou. Eximir um indivíduo da responsabilidade de seu ato é o caminho certo para a desgraça, para a prisão na bolha do vitimismo.

Pessoas fracassadas costumam sempre depositar a culpa dos seus erros nos outros, de preferência em algo bem vago, como sociedade, sistema, miséria, infância sofrida etc. Essas pessoas, segundo sua ótica, seriam apenas marionetes, executando ações sem qualquer livre arbítrio, autômatos guiados por uma força oculta qualquer. Compram assim a tranquilidade de espírito, jogando para outros a culpa dos próprios erros. Jamais saem da completa mediocridade, no entanto.

Extrapolando essa característica para nações inteiras, vemos que os países miseráveis costumam sempre adotar uma cultura de vítima, culpar bodes expiatórios externos pela sua desgraça. São sempre coitadinhos, transferindo a responsabilidade para outros agentes. A receita certa para se perpetuar a miséria. “Os que creem que a culpa de nossos males está em nossas estrelas e não em nós mesmos ficam perdidos quando as nuvens encobrem o céu”, alertou Roberto Campos.

O filósofo Schopenhauer já aconselhava nesse sentido: “Não devemos procurar desculpas, atenuar ou diminuir erros que foram manifestamente cometidos por nós, mas confessá-los e trazê-los, na sua grandeza, nitidamente diante dos olhos, a fim de poder tomar a decisão firme de evitá-los no futuro”. Um dos “pais fundadores” dos Estados Unidos, Benjamin Franklin, dizia que “os sábios aprendem com os erros dos outros e os ignorantes não aprendem nem com os próprios”. Esse foi um homem que buscou ser melhor a cada dia, sempre trazendo à tona seus próprios erros do passado, para com eles aprender.

Não escolhemos tudo que se passa ao nosso redor, mas escolhemos em parte como reagir às contingências do destino

Claro que tem gente que realmente enfrenta condições ruins, infortúnios terríveis até. Mas mesmo nesses casos não há motivo para jogar a toalha de vez, como se o destino estivesse selado. Viktor Frankl, preso pelos nazistas, concluiu que “entre o estímulo e a resposta, o homem tem a liberdade de escolha”. Ele decidiu reagir da melhor forma possível diante daquela terrível situação num campo de concentração.

Não escolhemos tudo que se passa ao nosso redor, mas escolhemos em parte como reagir às contingências do destino. E o nosso fracasso deve ser sempre uma lição. Uns ficam paralisados diante dos próprios erros e logo partem para as tradicionais desculpas, jogando o problema para fora de si. Outros assumem a rédea da própria vida, entendendo que os erros devem ser enfrentados, assimilados e transformados em valiosas lições, para jamais se repetirem.

Liberdade só pode andar junto com responsabilidade. Quem foge desta, se afasta daquela. E depois reclama: “doutor, a faca entrou”.

Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.
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