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A lição de Horácio: defensores da liberdade precisam avançar no campo cultural

O perigo atual não é apenas a hegemonia cultural da esquerda, mas também o anti-intelectualismo de grande parte da direita (Foto: Imagem criada utilizando Gemini/Gazeta do Povo)

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Roma conquistou a Grécia pelas armas. Com o tempo, porém, foi a Grécia que conquistou Roma – pela filosofia, pela poesia e pela arte - pela cultura. Horácio registrou esse paradoxo em um verso que ecoa há dois milênios: Graecia capta ferum victorem cepit – “a Grécia cativa capturou seu feroz vencedor”. Quem molda o imaginário acaba moldando a legitimidade.

Os próprios romanos o reconheceram. Cícero buscou aulas de retórica em Rodes. Quintiliano admitiu que sua eloquência se espelhava nos gregos. Juvenal resmungava que Roma se tornara uma cidade grega. A razão é simples: a política cede diante da cultura.

Os defensores da liberdade de hoje deveriam levar isso a sério. Muitas vezes, a luta se trava em terreno estreito. Uma resposta ao radicalismo à esquerda é a denúncia moral. Outra é o economicismo – invocar Menger, Mises e Hayek, como se a eficiência bastasse para inspirar lealdade. Ambas têm serventia, mas não são suficientes. A indignação se dissipa rápido. A economia explica muito, mas não satisfaz os anseios de sentido e dignidade que devem moldar a vida política.

A esquerda compreendeu isso há muito tempo. Os herdeiros de Marx não se limitaram à economia política. Escreveram romances, peças, poemas. Analisaram a sexualidade e a moral corrente. Lotaram salas de aula com teorias que remodelaram gerações. Mesmo quando suas doutrinas econômicas ruíram, sua influência cultural permaneceu. Haviam aprendido a lição de Horácio: derrotas políticas são temporárias, vitórias culturais são duradouras.

Se a liberdade quiser perdurar, precisa recuperar a ambição cultural. O que implica ensinar aos jovens não apenas oferta e procura, mas também Constant e Mill. Significa ainda levar a sério a literatura e a filosofia como recursos, não como enfeites

A tradição liberal também já teve essa confiança na cultura e no estudo do ambiente que a circunda. Benjamin Constant distinguiu a liberdade coletiva dos antigos da liberdade individual dos modernos. Alexis de Tocqueville viu promessa e perigo na emergente democracia americana. John Stuart Mill defendeu a igualdade e mesmo a excentricidade como fontes de grandeza. Isaiah Berlin lembrou que os valores são plurais e que a liberdade importa porque permite sua coexistência.

Constant ilustra bem o ponto. Além de tratados políticos, escreveu romances que expunham a fragilidade das paixões e os limites da razão. Para ele, a imaginação moral era tão importante quanto as instituições.

Tais pensadores falavam uma linguagem mais rica que a da eficiência. Mostravam por que a liberdade é nobre, e não apenas por que o planejamento central fracassa. Deram à sua causa uma voz capaz de inspirar tanto quanto instruir. Sem ela, a liberdade corre o risco de se reduzir à tecnocracia: apta a administrar, incapaz de inspirar devoção.

O perigo atual não é apenas a hegemonia cultural da esquerda, mas também o anti-intelectualismo de grande parte da direita. Literatura e filosofia são vistas como luxos. Livros cedem lugar a slogans e à autoridade supostamente inatacável de gurus; argumentos dão espaço ao ressentimento. A energia populista pode até ter alguma utilidade fugidia, mas sem profundidade corrói a tradição que pretende defender. Esse mal é especialmente assustador em nosso meio. Na pressa de formar opiniões categóricas, na adoção de posições irrefletidas, no horror às nuances e, direi mesmo, em toda uma encarniçada vulgaridade – em tudo veem-se traços do campo conservador brasileiro.

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Se a liberdade quiser perdurar, precisa recuperar a ambição cultural. O que implica ensinar aos jovens não apenas oferta e procura, mas também Constant e Mill. Significa ainda levar a sério a literatura e a filosofia como recursos, não como enfeites. Roma sem a Grécia podia vencer guerras, mas não conquistar corações. Uma política da liberdade sem cultura pode ganhar eleições, mas perderá gerações.

O paradoxo de Horácio continua um alerta vivo. Quem negligencia a cultura será vencido pelo espírito mesmo quando triunfa nas urnas. Quem investe em cultura pode resistir mesmo na derrota.

Rodrigo Jungmann é professor de Filosofia (UFPE) e membro da Sociedade Tocqueville do Brasil.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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