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O filósofo escocês Alasdair MacIntyre.
O filósofo escocês Alasdair MacIntyre.| Foto: Sean O'Connor/Wikimedia Commons

Nos últimos dias de 2020, enquanto lia e meditava sobre o difícil ano que passou, fazendo um balanço mental de tantos desafios, uma expressão saltou aos meus olhos: “ano novo, luta nova”. No calor das emoções festivas, não é comum virar o calendário de 12 meses pensando em “luta”. Normalmente, a mudança de ano vem acompanhada de uma esperança quase infantil de que os problemas ficarão para trás e de que tudo se fará “novo”, afinal, algo mudou: um número.

Ter esperança é um bom sentimento, especialmente em tempos de crises. Porém, para que mudanças ocorram, de fato, é necessário mais do que meras alterações de mês, de ano, de década e as expectativas superficiais que, pura e simplesmente, trazem consigo.

O desejo de melhorar deve ser algo que nos acompanha todos os dias. Mas, para que não seja só um sentimento, é preciso ter planejamento, mudar atitudes, aprimorar uma nova maneira de encarar as dificuldades. Se eu não mudo, se o mundo não muda, o que vai ser diferente de um ano para o outro ou de um mês para o outro?

Agora, já se aproximando a data do carnaval, muitos deixaram de lado aquele anseio que havia no começo do ano e pode ser que nem lembrem aquilo que traçaram como objetivo. É sempre importante começar e recomeçar as nossas lutas, traçar objetivos e metas concretas e manter acesa a determinação para que isso se prolongue em todos os dias da nossa existência.

Desde que assumi a função de secretário de Estado, para mim ficou evidente que as metas pessoais não bastam. O bem comum tem sido, para mim, um referencial de análise, de avaliação e de decisão a ser seguido, noção que tenho buscado compartilhar com os demais servidores públicos com quem convivo.

Muito antes desta missão pública, aliás, o bem comum já me era objeto de estudo e de reflexão detidos, valendo o atual momento como uma oportunidade de experimentar novas dimensões do conceito e possibilidades de atuação.

Em uma pandemia, com todos os seus efeitos que temos sentido em nossas vidas, o desafio do bem comum tornou-se ainda maior do que aquele vivido nos ditos momentos de normalidade. Nesse contexto excepcional, é preciso confrontar o que já estava previsto ao novo e ao inesperado. Só assim, com tal boa disposição, tem sido possível verificar quais pontos de conduta permanecem fazendo sentido e quais devem ser redimensionados e alterados.

Assim, algo que vinha se afirmando muito normalmente deixa de fazer sentido. Às vezes, é preciso agir prontamente; em outros casos, é preciso aguardar para se ter mais informações. A atuação em crises não é uma receita de bolo.

Portanto, temos de ter cuidado com o sentimentalismo passional muitas vezes presente nas divergências políticas, que acabam sendo tratadas de forma utilitarista ou até mesmo irracional. A defesa das próprias ideologias políticas pode nos cegar para aquilo que a situação exige de fato. Agir com sabedoria é a melhor forma de superar grandes dificuldades.

A crise sanitária pela qual passamos mostrou que todos estamos conectados e o bem de todos depende dos esforços de cada um. A luta pela superação é uma luta conjunta. Nesse cenário, o planejamento se apresenta como um dos caminhos fundamentais para não apenas se realizar pontos de transição e de retomada, como também para se oferecer referências de segurança e de alguma previsibilidade diante de muitos riscos e de inúmeras incertezas.

A correlação direta de bem comum e do planejamento é imprescindível e se mostra como um ponto central de convergência. E o que permite essa união é a perspectiva do bem e uma mente sóbria capaz de reconhecer a melhor forma de atuar.

O filosofo escocês Alasdair MacIntyre nos apresenta que a excelência pessoal passa pela busca do bem de uma comunidade. O que é o bem para o indivíduo não é algo separado daquilo que é o bem comum. Portanto, uma ação boa do indivíduo é também aquilo que é bom para a comunidade. Uma sociedade política que é usada por indivíduos apenas para os seus próprios fins não conseguirá prosperar, tampouco se manter unida. É preciso haver pessoas que se sacrifiquem pelo bem da comunidade para que essa atinja o seu potencial.

O bem comum revela, ainda, quais sacrifícios nós fazemos uns pelos outros e, especialmente, quais lições aprendemos uns com os outros e que permitem pensar no que se pode considerar uma vida boa e decente. Há uma correlação intrínseca entre as ações éticas e políticas que sempre deve ser considerada.

MacIntyre expressa, ainda, que o uso da razão prática, ou seja, encontrar os melhores meios se atingir os resultados almejados, quando se dá em ações na sociedade, nunca são decisões meramente individuais. As decisões políticas e administrativas devem estar alinhadas com a sociedade e a sociedade deve atuar em conjunto para que isso possa levar ao bem comum almejado.

A relação do bem comum com a crise coloca em evidência, também, na leitura de MacIntyre, o modo como se lida com as relações entre individualismo e solidariedade, denunciando como e em quê a cultura do individualismo suprimiu os laços de solidariedade. Essa mesma e necessária solidariedade se afirma em momentos de crise, tal como em períodos de guerra ou de pandemias.

Desta maneira, o bem comum se relaciona intimamente com a capacidade global de se fazerem escolhas éticas responsáveis, ao mesmo tempo em que marca um estado de coisas pretendido com estas ações e decisões. Por isso, tenho insistido em diversas oportunidades que uma verdadeira política do bem comum não apenas é possível e desejável como, sobretudo, depende de uma série de caminhos e de intensos e legítimos compromissos de gestão e de governança para que possa, efetivamente, acontecer.

Aristóteles dizia que é próprio do ser humano o desejo do saber. Se o conhecimento é um dos meios clássicos para se buscar a felicidade, superar medos e dificuldades, valorizar as pessoas e promover o bem-estar, o conhecimento da realidade é, com muito mais força, via privilegiada para se tomar atitudes e promover mudanças.

A defesa do bem comum não acaba de um ano para o outro pela simples mudança do número de registro do tempo. É algo que deve ser permanente. Foi assim em 2020, continua sendo em 2021 e nos anos que virão. Se, de fato, precisamos escolher nossas batalhas, não abro mão dessa. Por isso, só posso concordar e repetir não só uma vez no ano, mas a cada dia: “ano novo, luta nova”. Mas que tenhamos claro que a luta não deve ser só individual, para o sucesso pessoal. Devemos buscar conjuntamente melhorar a nós mesmos, a nossa família, nossa comunidade, nosso estado e nossa nação. A busca pelo bem comum é uma luta de todos.

Valdemar Bernardo Jorge é secretário do Planejamento e Projetos Estruturantes do Paraná.

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