No dia 25 de março de 1884, o Ceará começou a Abolição da Escravatura, efetivada quatro anos e meio antes do resto do Brasil. Mas a cidade de Redenção, no mesmo estado, a aboliu ainda antes: no dia 1.º de janeiro, em 1883, quando todos os donos de engenho daquela região alforriaram seus escravos e selaram um pacto de que nunca mais voltariam a usar mão servil. Algo como um "tortura, nunca mais".
Na ocasião, um deles, o coronel Benvindo, declarou que "a mancha da minha vida foi ter sido senhor de escravo".
Aquele pacto começou meses antes, quando outro senhor de engenho, Gil Ferreira Gomes, decidiu alforriar seus escravos e convenceu os demais senhores a fazerem o mesmo. Poucos aceitaram seus argumentos; os demais disseram que, se quisessem a alforria, que comprassem seus escravos e os libertassem. Gil Gomes foi atrás do dinheiro, conseguiu o apoio da sociedade abolicionista em Fortaleza e comprou todos os escravos, sob a condição de que eles fossem substituídos por mão-de-obra assalariada.
Hoje, 124 anos depois, nós ainda não completamos a obra de Gil Gomes e dos demais senhores de engenho de Redenção que antes da abolição, se chamava Vila Acarapé , nem completamos a Lei Áurea, de cinco anos mais tarde. Porque a abolição só será completa quando os filhos da Casa Grande forem às mesmas escolas que os filhos da senzala; quando os filhos do condomínio freqüentarem a mesma escola dos filhos da favela. E todas de excelente qualidade.
O Brasil sabe como fazê-lo. Temos os recursos, não fazemos porque perdemos a capacidade de indignação, diante da exclusão, como tiveram Gil Gomes e seus colegas em 1881, diante da exclusão social e dos vícios da riqueza. Não dizemos que a mancha da nossa vida é viver em um tempo em que convivemos com meninos abandonados nas esquinas, meninas prostituindo-se nas praias, apenas 18% dos jovens terminando o ensino médio. Assistimos com naturalidade à brutalidade da desigualdade. Não nos revoltamos. Em vez de senhores de engenho escravocratas do século XIX, somos senhores da renda concentrada do século XXI.
Nós nos consideramos tão sem culpa hoje, diante da pobreza, quanto os brasileiros do século XIX diante da escravidão. Vemos a desigualdade como algo natural, importado do passado, permanente. Perdemos também a capacidade de sentir o interesse maior do país, da nação, do povo e do futuro. Ficamos individualistas e corporativistas. Não olhamos para o outro, nem para o conjunto.
Com tanto egoísmo, esquecemo-nos de buscar a igualdade da qualidade das escolas, de ricos e pobres, nem queremos abrir mão de recursos de outras fontes para fazer a revolução educacional.
Quando se fala que esta abolição adicional vai custar R$ 7 bilhões por ano, todos param, desistem, não fazem como Gil Gomes, ninguém vai atrás do dinheiro necessário para a alforria moderna a escola.
Perdemos a sensibilidade que tinham os senhores de escravos de Acarapé/Redenção. Naquela época, era até possível dizer que havia usineiros heróis. Hoje, só os pobres excluídos, analfabetos, bóias-fria são heróis, mas, no lugar de alforriá-los, pensamos em construir mais cadeias.
Se não fossem aqueles, e Nabuco, e Patrocínio, e uma princesa, 120 anos atrás; se eles não tivessem deixado esse legado para nós, dificilmente a abolição seria possível agora. A prova é que continuamos deixando de completá-la. Não somos capazes, como o coronel Benvindo, de reconhecer a mancha e gritar "deseducação, nunca mais".



