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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

O testemunho etnográfico dos séculos 16 a 20 enriqueceu substancialmente a nossa compreensão a respeito das diversas culturas. Esta pluralidade é um fato básico da riqueza espiritual humana sedimentada ao longo das gerações. Os Estados Unidos, por exemplo, figuram entre os países de imigrantes com forte teor multicultural.

Fenômeno distinto é o recente multiculturalismo: implica que de nenhum modo as expressões culturais podem ser julgadas por critérios que lhes são extrínsecos. Todas as manifestações do gênero são assumidas como equivalentes. Resulta, na prática (apesar do esforço de certas teses liberais), que as noções de verdade moral e hierarquia de valores ficam radicalmente comprometidas (para dizer o mínimo).

Em uma civilização assaltada por esta ideologia – ora promovida por vastas fileiras nas democracias liberais –, não espanta que os indivíduos, em razão do manto de esquizofrenia moral descido sobre a população, sejam levados a cumprir por automatismo o corpo de deveres outrora mais naturalmente assimilados, arrastados a uma atmosfera onde os acordos sociais estão por um fio de mera conveniência. Os espíritos passam a transpirar um indiferentismo niilista mal disfarçado, teatralizado.

Felizmente, a falência de tais políticas (supostamente) compensatórias já foi reconhecida por alguns líderes europeus

As dificuldades envolvendo essa concepção são de fato agudas. Podemos imaginar seus efeitos quando alçada ao status de política pública e disseminada em escala civilizacional. Paradoxalmente, nas fileiras multiculturalistas você encontrará os mais apaixonados críticos do modo de vida ocidental. Em nome do pluralismo, centenas de páginas na internet têm sido fechadas sem explicações, e pessoas são encarceradas por delitos de opinião; como num remake do “despotismo da liberdade” jacobino, hostes de justiceiros sociais e policiais da linguagem se arregimentam para impor as legislações mais draconianas sobre os assim considerados “intolerantes”; numa dialética perversa, “oprimidos” são confinados em estereótipos de classe – de que são representativos os dias do “orgulho gay” e congêneres – ou definições étnico-raciais, de sorte que, por exemplo, paquistanesas afeiçoadas à vida na Inglaterra e, deste modo, contrárias aos casamentos forçados característicos de seu país de origem, podem experimentar um duplo prejuízo quando buscam integrar-se à sociedade anfitriã europeia: ser vistas como afetadas pelo preconceito contra sua própria classe, e ao mesmo tempo encontrar pouco ou nenhum auxílio por parte das autoridades governamentais, já que estas autoridades temem ser estigmatizadas pelos mesmos justiceiros sociais.

Nos últimos anos, como numa espécie de Apartheid, algumas comunidades italianas têm considerado reservar praias para que muçulmanas não possam ser vistas por homens enquanto nadam; cientistas alemães sugeriram drogar a população com ocitocina a fim de torná-la mais hospitaleira com os refugiados; surgem iniciativas como o aplicativo Equitable, que reparte a conta do restaurante segundo a “dívida histórica”, caso um afrodescendente tenha sido convidado para o jantar; na Suécia, segundo reporta Paul Joseph Watson, foi lançada uma campanha para qualificar como racista a quem pergunte a alguém “de onde você vem?”; quando meninas foram sexualmente exploradas por britânicos de origem muçulmana durante um período de 15 anos em Rotherham, houve coletivos defendendo o abrandamento das acusações por causa da “opressão sofrida pela minoria muçulmana”. Isso para não citar os problemas de criminalidade diretamente ligados às absurdas políticas de imigração em massa. Multiplique por outros casos e grupos de demandantes e o leitor terá um vislumbre do quanto a civilização poderá suportar.

Leia também: O multiculturalismo como inimigo da civilização (artigo de Bruno Garschagen, publicado em 17 de janeiro de 2015)

Leia também: Termostato da diversidade (artigo de Flavio Gordon, publicado em 7 de janeiro de 2018)

O crítico italiano Daniele Giglioli nota que temos assistido a uma inversão do papel tradicional da vítima. Se antes a sua condição era fundamentalmente indesejável, tornou-se hoje, talvez, a forma de poder mais ardentemente almejada. Ao passo que os fanáticos dos opression studies selecionam grupos “historicamente vulneráveis”, justificam no ato o anseio maior daqueles indivíduos que têm (ou querem ter) poder sobre as demais pessoas: não precisar responder pelo que fazem – afinal, “de vítimas, nada se espera”! Evidentemente, a cultura de vitimização prejudica os genuínos necessitados, pois desacredita as demandas legítimas. Se todos são vítimas, diria um psiquiatra inglês, a verdadeira caridade se inviabiliza: é como tentar passar em milhares de pães o pouco de manteiga que se tem!

Felizmente, a falência de tais políticas (supostamente) compensatórias já foi reconhecida por alguns líderes europeus, e reações são esboçadas aqui e acolá. Resta-nos permanecer dizendo a verdade e apelando à coragem dos ocidentais contra a tirania do politicamente correto.

Glaucio Vinicius Alves é mestre em Ética e Filosofia Política e presidente do Instituto Leão XIII.
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